Emissão Renascença | Ouvir Online

D. Manuel Clemente

O menino que fazia funerais para os passarinhos

13 fev, 2015 • Matilde Torres Pereira (texto) e Joana Bourgard (vídeo)

Do rapaz de Torres Vedras que sonhava ser padre ao universitário "rato de biblioteca" que discutia com os colegas marxistas. O retrato do homem da Igreja que foi criado cardeal pelo Papa, este sábado.

O menino que fazia funerais para os passarinhos

Manuel Clemente cresceu nesta casa. Fica numa praceta pequena no centro de Torres Vedras, no largo da Igreja de Santiago, entre árvores banhadas pelo sol e um par de cafés, que já cá estão desde o tempo do pai Clemente, dono da fábrica de moagem que fica de frente para a igreja.

A vida da família fazia-se neste triângulo – casa, igreja, fábrica, com a mãe que parava na sapataria do largo a fazer conversa com os donos e as crianças a brincar entre as carroças dos operários da fábrica.

No sábado, em Roma, D. Manuel, outrora rapaz de Torres Vedras, hoje Patriarca de Lisboa, vai ser criado Cardeal pelo Papa Francisco.

A entrada na casa faz-se por um hall escuro e fresco. Subindo as escadas, a entrada é para uma salinha cheia de luz. Vários sofás forrados de azul convivem com as molduras de fotos antigas - desde os pais Clemente aos vários Papas que D. Manuel foi conhecendo.

Quem recebe é Sofia, irmã mais nova, habituada já a abrir a casa e a contar as histórias de infância. "Estamos muito perto, temos uma diferença de três anos. A memória que tenho é de andar sempre atrás dele."


Os irmãos Manuel e Sofia, com apenas três anos de diferença. Foto: Joana Bourgard

Brincar aos padres
Os pais conviviam bem com as brincadeiras das crianças. "A mãe, sempre com um olhar de supervisão, deixava. Isto era uma casa cheia de gente." No terraço que dá para a praça, à saída da cozinha, o "Manel" jogava à bola ou ao pião, quando não ia com a irmã para o sótão fazer explorações.

Nos fins-de-semana, a quinta da família, perto da cidade, abria as possibilidades para a brincadeira. Foi lá que aos oito anos D. Manuel começou a treinar os primeiros passos no caminho que traçou mais tarde: "Morria um passarinho - era normal numa quinta no campo. Ia à procura de uma caixa, metia lá o passarinho e fazia o funeral, com tudo. E ele era o padre", conta a irmã.

"E depois às vezes também fez procissão. Nós brincávamos com os jovens da aldeia, e lembro-me que havia uma que tinha tranças. Então, o meu irmão dizia-lhe para desfazer as tranças para fazer de Nossa Senhora. E ele era o padre, e ia sempre à frente."

O pai não gostava daquilo. Sonhava ter um filho formado em Direito. E D. Manuel acedeu, até que chegou a hora de trocar para História e dizer aos pais: "Já fiz a vossa vontade, agora vou fazer a minha".

A mãe, católica activa, suavizou a transição. O pai não chegou a ver o caminho que o filho fez na Igreja. E ninguém na família alguma vez imaginou que D. Manuel viesse a ser Patriarca.

Mesmo então, não deixou de vir todos os fins-de-semana visitar as irmãs a casa. "Quando ele estava no Porto [onde foi bispo], vinha ao domingo à noite, jantava e depois a segunda-feira passava toda aqui a trabalhar, ia a Lisboa, mas estava aqui. Agora vem para aquilo a que chama o fim-de-semana alargado: chega sábado para jantar, janta, conversa, quer saber tudo o que se passa na família e em Torres. Sempre bem-disposto, cansado, mas bem-disposto. E depois passamos o serão, vemos um filme ou conversamos, dorme e eu no domingo já não o vejo", conta Sofia.


D. Manuel com a mãe, Maria Sofia, e as irmãs Margarida e Sofia. Foto: arquivo da família

O miúdo "alegre" e "simples"
O escritório de D. Manuel na casa de família é um quarto pequeno, com uma secretária à janela e as paredes decoradas com os vários diplomas que foi angariando ao longo dos anos.

Destaca-se um grande quadro com a flor-de-lis, símbolo dos escuteiros, onde Clemente foi muito activo.

Como chegar a todo o lado? Valem-lhe as características que Sofia diz serem inatas: "É uma pessoa muito, muito simples, de uma simplicidade espantosa, muito organizada e disciplinada, e gosta muito das pessoas, naturalmente. Gosta de andar na rua, falar, ir a muitos sítios. E acho que esta abertura a ouvir os outros é muito importante para ele."

"A minha mãe era uma pessoa muito muito atenta. E aqui nunca se fez diferença; pobres, ricos - todas as pessoas que calharam passaram por esta casa e não fazia diferença", lembra a irmã. Nas divisões da casa, cheias de livros e fotografias, não há um único retrato do Patriarca em que não esteja a sorrir. "Ele é uma pessoa muito alegre e era um miúdo muito alegre. Não me lembro de ver o meu irmão maldisposto."

D. Manuel está, pela sua vida e maneira de ser, muito exposto, diz Sofia. "É muito independente, vai no seu carro, anda a pé ou vai de metropolitano. Agora, ele é uma pessoa pacata por natureza, portanto tudo isto é um pouco a remar contra a sua pacatez natural. Acho que se ele pudesse passar, por vezes, mais despercebido, gostaria. Mas é impossível", diz. E sorri.

Entre a Praça da Batata e as carroças da moagem
Na rua, dizem-nos o mesmo. Do café à frente de casa, na antiga Praça da Batata, Deolinda Valentim acompanha as idas e vindas da família. "Ele é muito discreto. Quando vem a Torres gosta mesmo é de ficar em casa, descansar, sair um bocadinho à noite e dar uma voltinha com as irmãs quando o tempo está bom. Quando está frio fica em casa”, conta.


D. Manuel na escola em Torres Vedras. Foto: arquivo da família

Os pais de Deolinda conheceram D. Manuel ainda de calções. Cativa as pessoas a assistirem às missas que celebra quando passa por Torres Vedras. "E é a humildade que sempre teve, vem de famílias abastadas e continua a ser sempre humilde. Se as pessoas sabem que ele vai celebrar cá em Torres vão mais à missa. Dá homilias curtas, mas diz tudo o que quer dizer e as pessoas percebem, desde os mais novos aos mais velhos", garante a proprietária do café.

São esses gestos que deixam marca, mesmo desde que é Patriarca de Lisboa. "É fantástico. Pára o carro para nos cumprimentar."

As Galerias Clemente
Um pouco mais à frente ficam as Galerias Clemente, uma fileira de lojas nas antigas instalações da fábrica de moagem do pai. D. Manuel é o senhorio da galeria comercial.

Um dos lojistas, Jorge Cunha, o sapateiro que outrora trabalhava numa oficina no largo, recorda-se dos tempos antigos. "Eu vinha brincar para aqui e via o pai dele com os cavalos."

"Há um mês ou assim ele veio aqui buscar umas coisas, e eu até achava que era outra pessoa que vinha mexer e fui lá, e quando vejo era ele. E cumprimentei-o. É muito simpático. E as irmãs também", diz. Quando Jorge e a esposa Leocádia foram ter com as irmãs para alugar a loja, "ficaram tão satisfeitas que deram uns desenhos para por na montra".

Quanto a D. Manuel ser feito cardeal, Leocádia mostra na cara o orgulho que sente. "É muito bonito. E há quem diga que ele ainda vai ser Papa", sorri.

O "Macário Clemente, rato de biblioteca"
Nos anos da universidade (a Católica, em Lisboa), D. Manuel, conhecido na altura como o "Macário Clemente", instalou-se nas residências universitárias do Colégio Pio XII, em Lisboa. O actual director, o padre claretiano António Oliveira, faz questão de explicar que este não é apenas um local para dar comida e dormida as estudantes: aqui, tenta-se aprofundar as sensibilidades humana e social, bem como o diálogo entre fé e cultura.

O colégio foi fundado pelo padre Joaquim António Aguiar, com uma pedagogia de base, "liberdade e responsabilidade". Diz o padre Oliveira que "no tempo do cardeal Cerejeira, a Universidade não era tão exigente como hoje. Os estudantes tinham muito tempo livre e havia uma série de propostas em que uma percentagem do colégio participava activamente, do ponto de vista literário, do ponto de vista fotográfico, até com alguns jogos florais. No nosso jornal da época, o 'Communitas', pode-se ver que o nosso actual Patriarca era director".


D. Manuel Clemente, ainda jovem, a ler um jornal no jardim. Foto: arquivo da família

O "Macário Clemente" fazia parte do grupo de estudantes que acompanhava as famílias das barracas que existiam perto do colégio. Ao almoço e ao jantar, nos anos quentes de 1969 a 1975, as discussões reinavam no refeitório.

"Todos os dias sentavam-se à mesa um que é engenheiro, outro que é advogado, outro que é de literatura… havia as revoltas na universidade, a guerra colonial, o Maio de 68 em Paris", recorda o director. "Quem não era marxista era considerado um bota-de-elástico. Eu mesmo assisti aqui a alguns rapazes a aparecerem de cabeça ligada porque levavam umas 'porradas' da polícia quando havia aquelas manifestações universitárias.”

Um antigo aluno que se lembra bem dessas discussões é Fernando Seara, que entrou, vindo de Viseu, no ano em que D. Manuel ingressou no Seminário dos Olivais. "Marxistas, neomarxistas, maoistas, neokantianos, democratas-cristãos e derivados, havia de tudo. O colégio nesse tempo era a síntese da juventude", recorda o ex-presidente da Câmara de Sintra. "Foi muito útil para o aprofundamento das suas [de D. Manuel Clemente] próprias convicções", diz o padre Oliveira.

Os grupos que se reuniam na cantina exibiam "todas as clivagens que marcavam o tempo final do salazarismo e do marcelismo". Sentado na biblioteca, onde passou muito tempo com o amigo "rato de biblioteca" D. Manuel, Fernando Seara descreve as conversas. "A palavra certa seria discussão, mas por vezes a palavra exacta era discussão acalorada e, por vezes, a palavra exacta era discussão violenta", ri-se. "Até chegou a haver missas na nova capela interrompidas por movimentos 'anti-Deus', que deram alguma polémica na altura."

À entrada do colégio, um enorme projector de cinema atesta os tempos das sessões de filmes na cripta, películas escolhidas a dedo pela Comissão de Cinema, da qual fazia parte Fernando Seara. Cada sessão tinha de ser acompanhada por um bombeiro, de tal maneira aquecia o projector. E quando aquecia a temática, o padre Aguiar prontificava-se a pôr fim à brincadeira. "O padre Aguiar reagia, nalguns casos dizia que não, e explicava porquê."

Era o padre Aguiar que zelava pela boa ordem de todos os departamentos. Nos jogos de futebol, era uma peça-chave, recorda o padre Oliveira. "Houve algumas vezes pequenos torneios - mas regra geral não dava bom resultado, sobretudo tudo jogos entre estudantes dos nossos colégios. Naquela altura eu era estudante e o padre Aguiar entrava com a sua batina e com a sua capa para impor a ordem que os árbitros não conseguiam!" (risos).


Nos escuteiros, grupo a que pertenceu desde pequeno. Foto: arquivo da família

D. Manuel preferia jogar noutros terrenos. "Era uma pessoa simples, discreta e disponível. Já evidenciava as qualidades humanas que o salientavam muito. A sua disponibilidade, o seu espírito de diálogo com todos, até do ponto de vista eclesial via-se que tinha convicções profundas", lembra o sacerdote.

"Uma vez, o actual D. Manuel Clemente, numa das conversas no gabinete do padre Aguiar, terá dito que na altura no Seminário dos Olivais eram oito e passaram a 11 naquele ano. Era o tempo do despovoamento do seminário. Em 73,  o chamamento por Deus era uma busca freudiana. De certeza absoluta", comenta Fernando Seara.

O colégio foi ponto de partida para a vida eclesial. "Ficou aqui do colégio a saudade, os amigos, o enriquecimento, e ficou essa palavra que para mim é palavra síntese do novo cardeal D. Manuel - Macário - Clemente - a sabedoria. E para mim, a sabedoria é síntese da virtude."

Fernando Seara não tem dúvidas: "Estou certo que a sua sabedoria vai ajudar o Papa Francisco, porque é um bem que ele trouxe de casa, de Torres Vedras, desenvolveu aqui nesta biblioteca e nos vários momentos da Igreja, onde quer que tenha estado."

O padre António Oliveira concorda. Sentado no seu gabinete, com vitrais que retratam os padres que lhe servem de modelo, considera que "hoje encontramos uma sociedade com muita dificuldade em conciliar a sua vida com a fé que professa". Com D. Manuel, vê uma janela para uma Igreja de "espíritos abertos, dialogantes, ao estilo do Papa Francisco".

O director dá o exemplo do Porto. "A população do Porto apercebeu-se de um gesto dele que era muito normal, mas não para um bispo: saía da residência e todos os dias fazia o percurso para a Sé a pé. As pessoas pelo caminho conversavam, punham problemas, foi um contacto muito importante. Essa profundidade e simplicidade deve continuar na vida dele", exorta.

O padre esboça um sorriso, com o olhar desfocado. "Penso que este Patriarca vai ficar para a história da nossa Lisboa", conclui.