Paternalismo e conservadorismo
O porquê das palavras de Pedro Nuno Santos é fácil de compreender. O socialista não quis “alienar” eleitores, criar mais divisões. O que fez na noite eleitoral, porém, é um exemplo clássico de “negação do racismo”, um problema estrutural, em Portugal, defende Miguel Vale de Almeida.
“Negação no sentido da recusa que exista racismo na sociedade portuguesa, que é uma coisa já muito antiga, que vem do tempo do salazarismo e do colonialismo. Que é obviamente um argumento falacioso, capcioso, e é uma forma de não enfrentar um problema que efetivamente existe.”
Ainda antes de conversar com a Renascença, o antropólogo já havia sinalizado a ocultação de Pedro Nuno Santos, num texto, “O desaparecimento mágico do racismo (e não só)”, publicado na plataforma Medium.
Aí, escreveu: “Mal se verificou o sucesso eleitoral da extrema-direita e imediatamente comunicação social, comentadores e partidos — da esquerda à direita — concordaram no seguinte diagnóstico: trata-se de um voto ‘de protesto’, de um voto “antissistema”, de um voto de ‘descontentamento’ com a política.”
No entender de Miguel Vale de Almeida (que teve uma curta passagem pelo Parlamento enquanto deputado do PS), a leitura do voto do Chega apenas como sinónimo de protesto é limitada. Até porque existiam alternativas.
“Se a questão central do voto fosse a sensação de estar marginalizado na distribuição dos meios e dos recursos na nossa sociedade, provavelmente as pessoas votariam num partido igualitarista de esquerda. Se a questão é o efeito de toda esta perceção da corrupção, há partidos que não tiveram nenhum envolvimento em casos de corrupção - que sejam notórios ou graves”, lembra à Renascença.
O antropólogo alerta, por isso, para “uma espécie de paternalismo elitista” nas análises do voto do Chega que “vão acabar por acicatar mais ainda o próprio partido”.
“É como se estivessem a tratar as pessoas como os tais deploráveis de que Hillary Clinton falava. Não, não são deploráveis. São pessoas como você ou como eu. Só moral e eticamente, a meu ver, cometem um erro gigantesco ao darem voz a quem defende aquelas ideias”, diz.
Miguel Vale de Almeida admite até que, quando alguns eleitores do Chega forem inquiridos, podem dizer, claro, que optaram por votar no partido de André Ventura por causa da medida X (corrupção) e não da medida Y (políticas anti-imigração). Todavia, isso não os iliba de responsabilidades.
“Quando se vota num partido não é propriamente um menu em que se escolhe umas coisas e não outras. Está-se a dar poder a quem defende determinadas ideias.”
Também Jorge Vala, psicólogo social e autor do livro “Racismo, Hoje: Portugal em Contexto Europeu” (ed. FFMS, 2021), assume que, entre as várias motivações do eleitorado do Chega, “com certeza” que uma delas será “as posições anti-imigração, racistas e xenófobas, da direção do Chega e sobretudo do seu programa”.
No entanto, o investigador não afasta outras explicações como o “sentimento de frustração”, o “voto de agressão ao PS”. E traz para cima da mesa outro ângulo de interpretação do resultado do Chega (que não exclui o racismo): o conservadorismo da população.
“Portugal, pelas pesquisas que tenho feito, é um país que continua numa larga medida como um país conservador. Digamos que 20 a 30% das pessoas têm posições muito conservadoras no plano político. A sua orientação para a democracia talvez seja em muitas circunstâncias menos forte do que a sua orientação para o autoritarismo”, conta.
No plano cultural, essas pessoas estão “muito ligadas no plano do credo cristão radical, que tem reemergido nos últimos tempos na Igreja”.
“São pessoas que, no plano social, defendem a hierarquia social: cada um tem o seu lugar pré-definido na sociedade, e esse lugar tem estado a ser ameaçado por um conjunto de convulsões sejam elas ideológicas, sejam até pelo bem-estar económico que muitas pessoas têm obtido.”