Perguntas e respostas. O que sabemos e o que falta explicar no caso Raríssimas
18-12-2017 - 12:45
 • Elsa Araújo Rodrigues com Lusa

TVI revelou alegada gestão danosa e aproveitamento pessoal de fundos. Paula Brito e Costa demitiu-se, ex-secretário de Estado da Saúde também. O que está em causa? E o que se segue?

O que é a Raríssimas?

A Raríssimas – Associação de Deficiências Mentais e Raras foi criada por Paula Brito e Costa em 2002, 14 anos depois do nascimento de Marco (o seu primeiro filho) com uma doença genética rara (síndrome de Cornélia de Lange).

Segundo a declaração de missão, a IPSS dedica-se a “dar uma resposta inovadora às necessidades dos portadores de patologia rara, famílias, cuidadores e amigos”.

Quatro anos depois da fundação, em 2006, a IPSS foi apadrinhada por Maria Cavaco Silva. Para além da então primeira-dama, outras figuras públicas têm ou tiveram o seu nome ligado à instituição – sobretudo no âmbito do Conselho Consultivo.

Deste conselho fazem partes nomes propostos pela associação e a lista inclui Leonor Beleza, presidente da Fundação Champalimaud (ex-ministra da Saúde Cavaco Silva), Maria de Belém Roseira, ex-candidata presidencial e também ex-ministra da Saúde (de António Guterres), Roberto Carneiro (ex-ministro da Educação de Cavaco Silva) ou Fernando Ulrich, presidente não executivo do BPI.

O espaço de referência da Raríssimas é a Caso dos Marcos, na Moita, distrito de Setúbal. É lá que funcionam o centro de actividades ocupacionais da instituição, bem como o lar e a residência autónoma de muitos doentes raros.

O que está em causa?

Uma investigação da TVI revelou, a 9 de Dezembro, alegada gestão danosa da actual direcção da associação, presidida por Paula Brito e Costa.

A reportagem baseia-se em três depoimentos de antigos funcionários da instituição, entre eles, uma ex-secretária, Paula Nunes, e dois ex-tesoureiros, Ricardo Chaves e Jorge Nunes.

Baseado em provas documentais, o trabalho da jornalista Ana Leal dá conta de vencimentos irregulares e milhares de euros em despesas pessoais da presidente da associação.

A reportagem dá conta que a Raríssimas, que não tem fins lucrativos, recebe anualmente cerca de 1,5 milhões de euros – metade dos quais pagos pelo Estado através de subsídios e outra parte proveniente de donativos.

Investigações feitas na sequência do trabalho da TVI referem que entre 2010 e 2016 a associação recebeu mais de 2,8 milhões de euros do Ministério do Trabalho e da Segurança Social.

O que está na origem do caso?

Segundo os documentos a que a TVI teve acesso, Paula Brito e Costa auferia mais de 5 mil euros de salário (entre rendimento base e complementos). Para além do que recebia, terá utilizado os fundos da instituição em proveito pessoal, recorrendo a mapas de deslocações fictícias, duplicação de facturas relativas a gastos com combustíveis, pedidos de reembolso de despesas pessoais (roupa e supermercado) e compras pagas com o cartão de crédito, que, apesar de estar em seu nome, é pago pela instituição.

A direcção da Raríssimas – Associação Nacional de Deficiências Mentais e Raras negou irregularidades com fundos. Declarou que “todas as acusações apresentadas na reportagem são insidiosas e baseadas em documentação apresentada de forma descontextualizada”. Sobre as despesas particulares que constam dos documentos avançados pela TVI, a direcção da IPSS justifica as mesmas com as necessidades de “imagem adequada da sua presidente”.

Menos de 72 horas depois da reportagem da TVI, Paula Brito e Costa anunciou a demissão do cargo de presidente da Raríssimas, afirmando que o escândalo em que o seu nome está envolvido está a prejudicar a instituição.

Paula Brito e Costa abandonou o cargo na direcção da associação, mas manteve-se como directora-geral da Casa dos Marcos. Em entrevista ao Expresso, explicou que uma saída da liderança da estrutura só irá acontecer “através de despedimento, pagamento de indemnização e subsídio de desemprego”.

O que se segue?

A alegada gestão danosa da Raríssimas está a ser investigada pelo Ministério Público desde Novembro, na sequência de uma denúncia anónima. Segundo o Departamento de Investigação e Acção Penal de Lisboa, ainda não houve lugar à constituição de arguidos.

O ministro do Trabalho e da Segurança Social, Vieira da Silva, que tutela as IPSS e que foi vice-presidente da assembleia geral da Raríssimas entre 2013 e 2015, declarou que apenas teve conhecimento do caso através da reportagem da TVI. E anunciou uma inspecção à Raríssimas.

Entretanto, foram conhecidas mais denúncias de alegados problemas na gestão da associação e, segundo a TVI, são já seis as queixas e que não tiveram seguimento. Uma das reclamações foi dirigida à Autoridade para as Condições do Trabalho (tutelada pelo Ministério do Trabalho e da Segurança Social) e outra ao Instituto do Emprego e Formação Profissional (IEFP, na tutela do Ministério da Economia).

As duas queixam partiram de um “grupo de associados” que referem abuso de autoridade da parte de Paula Brito e Costa e solicitaram uma investigação às funções do marido e filho, ambos funcionários da instituição.

A 16 de Dezembro, o IEFP confirmou ter recebido uma denúncia proveniente de um conjunto de sócios da Raríssimas sobre alegadas irregularidades em estágios profissionais e confirmou que a participação já foi analisada.

O instituto do emprego ressalvou, no entanto, que a queixa apresentada por email tem apenas a ver com alegado “uso abusivo de estágios profissionais”.

Desde 2011, dos 20 estagiários que foram colocados na Raríssimas, 18 concluíram o estágio. O IEFP relevou ainda que foi ainda solicitado aos seus serviços regionais que efectuassem uma visita de acompanhamento à instituição, a fim de verificarem a regularidade e conformidade dos processos de apoio em curso. As visitas serão feitas sem aviso prévio.

Para além de Paula Brito e Costa, de quem se fala?

As suspeitas de má gestão e desvio de fundos recaem sobre a actual presidente da Raríssimas, mas há outros implicados. O marido, Nelson Oliveira Costa, e o filho, César da Costa, também trabalham na associação e recaem sobre os dois suspeitas de favorecimento. Segundo a reportagem da TVI, o filho seria mesmo considerado o “herdeiro” do lugar da mãe.

Uma semana depois da primeira reportagem da TVI, Paula Brito e Costa (já na qualidade de ex-presidente) acusou em entrevista à RTP a ex-vice-presidente da delegação da Maia de desvio de fundos.

Entre 2013 e 2016, Joaquina Teixeira terá desviado cerca de 131 mil euros de bolsas sociais destinadas a crianças carenciadas para o próprio filho e para familiares de colaboradores da região norte.

Uma situação que terá sido prontamente denunciada por Paula Brito e Costa ao presidente do conselho fiscal e depois à assembleia-geral da Raríssimas.

O desvio estará documentado no processo de auditoria realizado pela empresa PKF à delegação do norte da associação e revela irregularidades financeiras no valor de 270 mil euros.

O Ministério Público confirmou, entretanto, que está a investigar o caso desde Julho e que o processo está em segredo de Justiça.

Ao Expresso, Paula Brito e Costa reafirmou o pedido de auditoria externa e refere também que informou o ministro do Trabalho, Solidariedade e Segurança Social, Vieira da Silva, dos resultados da mesma.

Paula Brito e Costa disse ainda que descobriu “a única fraude que existiu” na associação Raríssimas, salientando que estão envolvidos “centenas de milhares de euros”.

E na esfera política?

Fora da esfera familiar, a deputada do PS (e mulher de Vieira da Silva) Sónia Fertuzinhos foi apontada como tendo usufruído de uma viagem à Suécia no âmbito de uma conferência paga pela Raríssimas. Em nota enviada às redacções, a deputada esclareceu que nunca teve uma ligação formal à instituição e que a viagem foi devidamente reembolsada. A associação apenas fez o pagamento adiantado dos bilhetes de avião, garantiu Fertuzinhos.

Outra viagem à Suécia foi também colocada em causa quando veio a público a informação de que o ministro Vieira da Silva e Paula Brito e Cunha estiveram nas instalações da fundação sueca Ågrenska (também especializada em doenças raras), no mesmo dia (16 de Novembro de 2015).

O gabinete de Vieira da Silva justificou a coincidência com um possível convite da própria associação sueca, uma vez que a ex-presidente da Raríssimas não fazia parte da comitiva do Governo.

Na sequência das revelações da TVI e após entrevista à estação de televisão, o ex-secretário de Estado da Saúde Manuel Delgado pediu demissão do cargo a 12 de Dezembro alegando "razões pessoais". A saída de Delgado do Governo acontece após a denúncia da TVI sobre os valores que terá recebido na qualidade de consultor técnico da instituição.

Manuel Delgado foi consultor da Raríssimas entre Abril de 2013 e Dezembro de 2014, época em que participou no processo de abertura da instalação da associação, a Casa dos Marco. Segundo a TVI, Delgado terá recebido pagamentos no valor de mais de 60 mil euros. Uma parte desse valor terá vindo das verbas do Estado, numa época em que a associação passava por graves dificuldades financeiras, segundo depoimento do ex-tesoureiro da Raríssimas Jorge Nunes.

Em comunicado, o ex-secretário de Estado da Saúde explicou que “nunca participou em decisões de financiamento da associação”.

O deputado do PSD Ricardo Baptista Leite, que tinha sido convidado por Paula Brito e Costa, para o cargo de vice-presidente da Raríssimas anunciou que não vai tomar posse. Alegou falta de condições para ocupar o cargo face às alegadas irregularidades de gestão da direcção liderada por Paula Brito e Costa.

A Segurança Social tinha conhecimento do caso?

O ministro do Trabalho, Segurança Social e Solidariedade, Vieira da Silva tem sido repetidamente questionado sobre o grau de conhecimento que teria da situação da Raríssimas, uma vez que aprovou as contas da associação (na qualidade de vice-presidente da assembleia-geral da Raríssimas - função que desempenhou entre 2013 e 2015).

Vieira da Silva vai ser ouvido, esta segunda-feira, no parlamento sobre o caso, na sequência de um pedido de esclarecimentos que partiu do PS.

O ministro já repetiu por diversas vezes estar “tranquilo” em relação à sua ligação à Raríssimas.

Para além das alegações feitas no âmbito da reportagem da TVI, terá existido pelo também outra denúncia à Segurança Social implicando Paula Brito e Costa, mas enquanto presidente das Federação das Doenças Raras (Fedra).

Até ao momento, a Segurança Social não confirmou a recepção de uma carta que terá sido enviada em Janeiro passado pela então secretária da direcção da Fedra, Piedade Líbano Monteiro. O documento põe em causa uma viagem ao Brasil de Paula Brito e Costa paga pela associação. Segundo a denúncia, as despesas da deslocação incluem um tratamento de spa de centenas de euros.

A TVI noticiou que a denúncia estará “em parte incerta”, na sequência da resposta oficial do presidente do Instituto da Segurança Social, Rui Fiolhais, que disse “não haver registo” da chegada da carta aos serviços.

Segundo o “Público", entre 2013 e 2017, a Raríssimas terá recebido mais de 2,5 milhões de euros do Ministério do Trabalho e Segurança Social no âmbito de vários protocolos – desde a participação na rede de cuidados continuados a acordos de cooperação no contexto da manutenção de várias valências, como actividades ocupacionais.

Que reacções provocou o caso?

O escândalo provocou uma onda de críticas na sociedade portuguesa, a começar pelas redes sociais. A página de Facebook da Raríssimas foi desactivada devido à avalanche de comentários negativos.

Foi criada uma petição pública a favor da demissão imediata da presidente da Raríssimas, que conta já com mais de 10 mil assinaturas.

O Presidente da República, Marcelo Rebelo de Sousa, reagiu ao caso, afirmando que não chegou a Belém “nada de específico, de concreto", sobre eventuais irregularidades ou ilegalidades na associação.

Entretanto, Marcelo Rebelo de Sousa considerou ser uma "questão de bom senso" manter a Raríssimas em funcionamento, salientando que as crianças e adultos que usufruem do trabalho daquela instituição "não têm culpa" do que se tem passado na associação.

A ministra da Justiça foi uma das primeiras a reagir publicamente às denúncias. Francisca Van Dunem alertou para a necessidade de realizar mais controlo e auditorias a instituições que financiadas pelo Estado e apelou a cuidados redobrados “na gestão de dinheiros públicos”.

Que futuro para a Raríssimas?

No imediato, associados da Raríssimas devem eleger uma nova direcção e conselho fiscal. Todos os que queiram apresentar listas devem fazê-lo até ao dia 29 deste mês, sendo a Assembleia-Geral da instituição no dia 3 de Janeiro.

Segundo a ordem de trabalhos da Assembleia, vão ser eleitos os membros da direcção até ao máximo de nove até ao final do mandato em curso (2016/2019) e designar entre eles o presidente, vice-presidente, tesoureiro, secretário e um máximo de cinco vogais efectivos, “em substituição dos membros da direcção que renunciaram ao cargo e dos que, tendo sido oportunamente eleitos, declararam não pretender tomar posse”.

A Assembleia Geral Extraordinária foi convocada na sequência da demissão de Paula Brito e Costa.

Não são elegíveis para cargos da direcção ou do conselho fiscal os associados que tenham sido removidos de cargos directivos ou tenham sido declarados responsáveis por irregularidades cometidas no exercício dessas funções.

O mesmo acontece para os que tenham sido condenados em processo judicial por crime doloso contra o património, abuso de cartão de garantia ou de crédito, apropriação ilegítima de bens do sector público, corrupção ou branqueamento de capitais.

Os candidatos também não serão elegíveis se ocuparem outro cargo na Raríssimas.

Na sequência da investigação à gestão de Paula Brito e Costa, a Rede Europeia de Doenças Raras (EURORDIS) suspendeu a associação Raríssimas e a Federação das Doenças Raras de Portugal (FEDRA). Em comunicado, a EURORDIS refere que até ao momento as alegações atribuem apenas responsabilidades a uma única pessoa, a presidente que se demitiu do cargo, após a sua conduta na gestão das instituições ter sido revelada pela TVI em 9 de Dezembro último.

[Artigo actualizado às 12h43 de 18/12/2017)