"A desigualdade limita a capacidade de sonhar"
01-06-2023 - 12:20
 • Marta Pedreira Mixão

"São precisas cinco gerações para sair da condição de pobreza, é quase uma condenação", afirma o catedrático Fernando Alexandre na Conferência "O poder dos jovens na mudança global”, uma iniciativa da Renascença em parceria com a Santa Casa da Misericórdia de Lisboa.

Veja também:


"A desigualdade limita a capacidade de sonhar. Porque depende das condições que temos na nossa sociedade", afirmou Fernando Alexandre, professor da Universidade do Minho, num painel sobre "Economia e Qualificações", durante a Conferência “O poder dos jovens na mudança global”. A iniciativa da Renascença com a Santa Casa da Misericórdia de Lisboa decorreu, esta quinta-feira, no Centro Cultural de Belém, em Lisboa.

Para o catedrático, Portugal continua a ter "imensa desigualdade" e relembra que "muitos portugueses estiveram, durante demasiado tempo, sem possibilidade de sonhar, porque o sonho também precisa de condições".

Fernando Alexandre defende, por isso, que "uma das mudanças mais importantes na sociedade portuguesa, nos últimos anos, foi o alargamento da escolaridade obrigatória para o 12.º ano ou 18 anos, o que só aconteceu em 2009". Para o professor, "isso mudou completamente a capacidade de sonhar de muitos portugueses, porque até aí a quantidade de jovens que deixavam de estudar era imensa".

"Em termos de abandono escolar, caímos para níveis que até são melhores do que a media da União Europeia, ultrapassamos todos os objetivos que estavam fixados e isso permitiu com que muitas mais pessoas tivessem visibilidade sobre o que é o mundo e o que se pode fazer. Mas continua a haver muita desigualdade", critica.

Citando dados referentes à mobilidade social, Fernando Alexandre refere que "20% das crianças vivem em pobreza". "Depois, sabemos que são precisas cinco gerações para sair dessa condição, é quase uma condenação: temos 20% das crianças que nascem estão condenadas a viver na pobreza".

"Para podermos sonhar precisamos de ver que tudo à nossa volta está a mudar, porque se nascemos num bairro em que a maior parte das pessoas não têm essa possibilidade... há essa preocupação, porque a desigualdade limita a capacidade de sonhar e porque depende das condições que temos na nossa sociedade".

O docente defende ainda que a educação tem de ter uma maior proximidade à realidade, assegurando as competências necessárias, mantendo as que estão, atualmente, definidas, mas também desenvolvendo qualificações de "soft skills", através da criação de programas para fortalecer essa dimensão de formação.

No mercado de trabalho, descreve também a necessidade de criar condições para que as empresas possam aproveitar o talento que existe. Além disso, sugere a adaptação da gestão de recursos humanos, que considera estar desadequada, - já que a atitude dos jovens em relação ao trabalho é diferente e as melhorias necessárias não são só relativamente aos ordenados.

"Os jovens trazem formas diferentes não só de pensar, mas de viver", afirma, exemplificando co o equilibro "trabalho-lazer", que pode representar um aumento da produtividade.

“Esta geração nunca teve a hipótese de sonhar"

Marius Schlageter, vice-presidente do Conselho Federal de Juventude da Alemanha, falou sobre as dificuldades de uma "geração à rasca" e recorda a situação de amigo que, durante o período da crise económica de 2012, depois de finalizar o mestrado em Engenharia Civil e sem encontrar trabalho na área, acabou a trabalhar num supermercado.

O detalhe, conta, é que primeiro foi rejeitado por ser “hiperqualificado”, o que levou o jovem a “falsificar o currículo”, retirando a sua formação. Só depois de uma nova tentativa, na qual ocultava as suas qualificações, é que conseguiu o emprego.

“Esta geração, dos meus amigos, nunca teve a hipótese de sonhar, porque sabiam que não tinham condições de criar as suas vidas”.

O jovem alemão afina que considera “engraçado” ainda hoje se falar de uma “nova geração à rasca, em Portugal, mas também na Alemanha – onde temos uma taxa de pobreza de crianças e jovens de quase 25%, isto numa das maiores economias do mundo”.

“Falamos muito de participação, de os jovens serem ouvidos. Mas, no fim de contas, é uma questão de poder. Quem é que toma as decisões? Não são os jovens. Em relação à luta contra a crise ambiental vemos muito isso”, crítica.

Fazendo referência ao ativismo pelo clima, Marius Schlageter refere que, apesar de se apelar ao envolvimento dos jovens, pouco muda e que os ativistas que bloqueiam ruas e estações acabam a ser chamados de “terroristas climáticos”. “Aí, já não é tão interessante os jovens se envolverem”, afirma.

Por sua vez, Francisco Silva, da Erasmus Student Network Portugal, destaca a importância desta rede no desenvolvimento de competências interpessoais e refere que “o desenvolvimento de competências digitais aumenta após um período de mobilidade”.

O jovem defende, por isso, a relevância deste programa não apenas no desenvolvimento pessoal, mas também a nível profissional.

Questionado sobre as frustrações dos jovens - por não serem ouvidos e por não terem condições e económicas para concretizarem os seus sonhos -, Pedro Duarte, coordenador do Conselho Estratégico Nacional do PSD, sugere que, atualmente, faz sentido ser “mais otimista”, argumentando que nunca houve um tempo tão "propício" ao sonho. Por isso, apela a que "tenhamos consciência de que podemos passar a ação".

"Estamos a atravessar um momento de grandes mudanças e de viragem enquanto sociedade", afirma, defendendo que 2023 será um desses momentos da História que se concretiza, na sua opinião, com a Inteligência Artificial.

"Daqui a uns anos, vamos olhar para trás e perceber o impacto dessa mudança em relação a outras disrupções tecnológicas da humanidade, e tem que ver com a velocidade a que esta a acontecer", refere, salientando que "todos somos agentes nessa mudança". "Vamos acreditar que quem é mais jovem tem essa capacidade e essa energia mais ativa".

Destacando os riscos deste processo, Pedro Duarte refere que pode haver uma segmentação, agravando as desigualdades já existentes, ou pelo contrário, pode verificar-se um combate a essas mesmas desigualdades.

Marius, por sua vez, afasta para já uma preocupação imediata em relação à Inteligência Artificial, enumerando outras preocupações entre os mais jovens.

"A maior preocupação é a crise climática, depois a guerra na Europa, questões de saúde mental e talvez, daqui a um ou dois anos, a inteligência artificial venha a entrar na lista", clarifica, apelando a um maior investimento na educação não formal, para preparar os jovens para os efeitos da crise climática e da IA, através de mais dinheiro e apoio público, além do reconhecimento de trabalho voluntário, para que os jovens sejam vistos como seres humanos em vez de "bens económicos".

“Continuamos a somar capital humano, mas não o conseguimos transformar em valor económico"

Sobre as qualificações, Fernando Alexandre refere que Portugal não tem, "olhando o crescimento da produtividade e escolaridade, casos de sucesso que não estejam associados a um grande aumento da escolaridade da população". Destacando que até 2000 essas duas variáveis estavam intrinsecamente ligadas proporcionalmente, o docente da Universidade do Minho salienta que, desde então, essas duas variáveis ficaram desconexas.

“Continuamos a somar capital humano, a aumentar de forma significativa a escolaridade, mas não o conseguimos transformar em valor económico”, diz.

"Há muitos factores para isso, um tem que ver o 'matching' entre as qualificações das pessoas e as necessidades da economia. Podemos pensar que o Ensino Superior está a dar qualificações que não são aquelas de que as empresas precisam. Será que estamos a formar diplomados a mais? Há uma parte que pode ter que ver com isso… A estrutura da economia pode não ter feito a transformação necessária para aproveitar esse capital humano. Mas também há muitas dimensões na gestão das empresas que podem contribuir para isso".

Sobre a realidade alemã, Marius relata que o "racismo estrutural" que se verifica na sociedade alemã, e não só, não permite a definição de uma estratégia que recorra à migração para dar resposta às necessidades de mão de obra qualificada e jovem - já que também faltam jovens no país.

Marius refere ainda que o debate se foca muito na "qualificação dos jovens", mas que estamos perante uma das gerações mais qualificadas e que talvez a estrutura do mercado de trabalho deva passar a ser o foco do debate - a duração dos contratos de trabalho e as condições do mercado, que tem dificuldades em responder com condições dignas e contratos que ofereçam segurança.

"Há também uma descriminação estrutural contra os jovens, que chamamos de adultismo", realça.

Francisco Silva concorda com a ideia de Marius Schlageter e destaca a reivindicação dos jovens pelo fim dos estágios não remunerados, algo que, refere, tem sido defendido a nível europeu.