Eutanásia. Quem tem medo do debate?
13-02-2020 - 20:20

Uma coisa é um médico aferir a gravidade de uma doença. Outra, bem diferente, é assimilar todas as variáveis psicológicas e sociais de uma pessoa em choque, vivendo uma roleta de emoções, suscetíveis de transformar desabafos em decisões e estados de alma em manifestações de vontade, das quais pode não ter, posteriormente, oportunidade de se arrepender.

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Os projetos sobre a eutanásia que o Parlamento se propõe discutir no próximo dia 20 de fevereiro levantam questões de diferente natureza. Mas todas elas são graves, merecem respostas, exigem reflexão.

Os partidos que agendam estes projetos, sem suscitar uma reflexão alargada no país, contrariam as mais elementares regras de transparência e debate que devem caracterizar as sociedades democráticas. Por que motivo o fazem? O que leva PS, Bloco de Esquerda, PAN, PEV e Iniciativa Liberal a quererem aprovar, com urgência, no Parlamento, um tema que não assumiram como bandeira durante a recente campanha eleitoral? Em campanha recearam os eleitores e uma vez eleitos procuram esquivar-se ao debate.

A coisa não é para menos, convenhamos. Liberalizar a morte, a pedido de pessoas colocadas em situação de extrema fragilidade, tem muito que se lhe diga. E, seguramente, nenhum destes partidos o ignora.

Em questões de saúde, quando as más notícias batem à porta, as emoções misturam-se e provocam um turbilhão de reações. E as emoções suscitam decisões que, numa ocasião de maior serenidade, mereceriam outra ponderação. No caso da eutanásia, a emoção pode originar uma decisão irreversível. E esta decisão irreversível diz respeito – apenas e só – ao termo da vida de uma pessoa.

Os jornalistas sabem do que falo. Pelo artigo 10.º do Código Deontológico aprovado pelos jornalistas portugueses, os profissionais desta área estão obrigados, antes de recolherem declarações e imagens, a atender às condições de serenidade, liberdade e responsabilidade das pessoas envolvidas. Este preceito deve ser aplicado pelo jornalista, quando uma pessoa que se desejaria entrevistar ou filmar possa estar verdadeiramente privada das condições de serenidade, liberdade, dignidade e responsabilidade. Com estes cuidados, o jornalista defende a opinião pública, porque a sociedade não vai ouvir declarações ou ver imagens que não correspondem a uma vontade esclarecida, serena e, portanto, livre, do seu autor. Mas ao aplicar esta regra do código deontológico, o jornalista também ajuda tal pessoa a defender-se de si própria. Por mais que uma pessoa deseje falar ou deixar-se filmar numa situação de grande stress emocional, tais declarações ou imagens não corresponderiam a uma vontade assumida em verdadeira liberdade.

Mas se isto é assim para o jornalismo - em situações, apesar de tudo menos graves - como não fazer o paralelo quando se joga o mais importante de tudo, isto é, a vida de uma pessoa?

Não se trata de bens materiais nem de negócios. Nesses casos, o legislador admite mudanças de opinião, alterações contratuais, reversão total de um negócio. Em tais circunstâncias, há situações de força maior que permitem mudar a agulha de uma decisão empresarial e negocial seriamente tomada. Mas no caso da eutanásia, pode não haver tempo nem ocasião para reverter uma decisão que implica, tão somente, a morte.

O stress psicológico de uma doença – sobretudo de uma doença grave - provoca um caleidoscópio de reações diferentes e inesperadas. Em rigor, quem as consegue dirimir e avaliar?

Uma coisa é um médico aferir a gravidade de uma doença. Outra, bem diferente, é assimilar todas as variáveis psicológicas e sociais de uma pessoa em choque, vivendo uma roleta de emoções, suscetíveis de transformar desabafos em decisões e estados de alma em manifestações de vontade, das quais pode não ter, posteriormente, oportunidade de se arrepender.

E se juntarmos à pressão (ou depressão) psicológica de uma doença, fatores como a fragilidade económica e a pobreza, o abandono familiar, a solidão, o isolamento, a ignorância sobre a evolução da patologia, o medo inerente a todas estas circunstâncias, a idade avançada ou a idade precoce? Será legítimo pensar - tudo isto ponderado - que essas pessoas, quando pedissem para morrer, dispunham de todas as condições de serenidade, liberdade e responsabilidade para o fazerem?

E os profissionais de saúde, nomeadamente médicos e enfermeiros, cujo juramento primeiro é o de cuidar da vida, devem agora ser agentes da morte de pessoas, cuja saúde se comprometeram a defender?

E o sistema de saúde – designadamente, o Serviço Nacional de Saúde que não investe nos cuidados paliativos o suficiente e o necessário - deve agora ser colocado, ainda que circunstancialmente, ao serviço da promoção da morte?

Quantas pessoas - a quem o Estado falha, ao não garantir os cuidados paliativos - se sentirão então coagidas - ou resignadas - a optar pelo caminho da eutanásia?

O Serviço Nacional de Saúde está manifestamente subfinanciado. Faltam recursos humanos e materiais e funciona à custa de um esforço desmedido dos profissionais de saúde. E neste quadro é prioritário sobrecarregá-lo, ainda mais, com processos administrativos, comissões médicas e procedimentos clínicos que visam a morte dos doentes?

Os impostos que pagamos já não chegam para sustentar o funcionamento escorreito do Serviço Nacional de Saúde. Quanto mais devemos pagar para financiar o devaneio ideológico de uma parte do Parlamento?

E a Constituição, neste caso, serve exatamente para quê? A Constituição da República portuguesa é clara no artigo 24, nº1 ao dizer que “a vida humana é inviolável”. Não acrescenta mais nada. Não formula condições, não sugere restrições, não insinua limitações. Pelo contrário, proclama a inviolabilidade incondicional da vida humana. Não é assim, por exemplo, na Holanda, um dos poucos países do mundo a permitir o recurso à eutanásia. De facto, a Constituição holandesa, no artigo 11, prescreve que “todos têm o direito à inviolabilidade da sua pessoa”. Mas logo a seguir completa a frase: “sem prejuízo das restrições estabelecidas” por uma lei do Parlamento. Os constituintes holandeses entenderam expressamente que o direito à vida poderia vir a ser restringido pelo poder político. Dito de outro modo, na Holanda não é inconstitucional que os deputados decidiam limitar a inviolabilidade da vida.

Acontece que os constituintes portugueses decidiram – e bem! – de outro modo. A clareza do texto constitucional português neste domínio é tal que deveria bastar para que os partidos não propusessem algo que manifestamente o contradiz.

De resto, se o juízo jurídico não for contaminado pela obstinação ideológica, o Tribunal Constitucional, uma vez consultado, deveria decidir sem dificuldade pela inconstitucionalidade da eutanásia.

Claro que a Constituição Portuguesa pode ser revista, por vontade de dois terços dos deputados, mas até o ser, a aprovação da eutanásia é claramente inconstitucional.

Afogada pela precipitação política de uma parte do Parlamento, a sociedade civil está finalmente a reagir. A proposta de um referendo surge neste contexto. Não se trata de referendar a vida, mas sim de referendar uma legislação que potencia a morte.

Ao contrário do que se diz na gíria, cada pessoa é, na sua essência, verdadeiramente insubstituível. E uma só vida é infinitamente mais importante do que a soma de todas as vontades políticas conjunturais.

Se neste momento, no Parlamento, estivesse em causa a morte de animais, em vez dessa coisa insignificante chamada ‘vida humana’, como reagiriam aqueles que agora propõem a eutanásia para as pessoas?

Não respondam. A resposta é demasiado chocante.