Os quatro sonhos do Papa para a Amazónia
12-02-2020 - 11:07
 • Filipe d'Avillez , Aura Miguel

Uma região com mais justiça social, em que a cristianismo não elimina mas enriquece as culturas locais, em que a ecologia é defendida e em que missionários não se envergonham de Cristo. São estes os sonhos de Francisco em “Querida Amazónia”.

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O Papa Francisco tem um sonho para a Amazónia.

Melhor, o Papa Francisco tem quatro sonhos para a Amazónia que abrangem a dimensão social, cultural, ecológica e eclesial da região a que a Igreja dedicou um sínodo de bispos em outubro de 2019.

A exortação apostólica pós-sinodal “Querida Amazónia” foi publicada esta quarta-feira. Nela o Papa resume os trabalhos do sínodo e apresenta a sua visão para a região que descreve como um lugar de esplendor, drama e mistério.

“Sonho com uma Amazónia que lute pelos direitos dos mais pobres, dos povos nativos, dos últimos, de modo que a sua voz seja ouvida e sua dignidade promovida”, começa por dizer Francisco, afirmando que é necessário a Igreja, e a humanidade, indignarem-se perante os crimes e as injustiças que são cometidos naquele lugar.

“É preciso indignar-se, como se indignou Moisés, como Se indignava Jesus, como Se indigna Deus perante a injustiça. Não é salutar habituarmo-nos ao mal; faz-nos mal permitir que nos anestesiem a consciência social”, clama Francisco, referindo-se, entre outros, “às operações económicas, nacionais ou internacionais, que danificam a Amazónia e não respeitam o direito dos povos nativos ao território e sua demarcação, à autodeterminação e ao consentimento prévio”.

Contudo, o Papa não ignora que possa ter havido crimes cometidos pela própria Igreja e seus representantes ao longo dos séculos e, por isso, pede perdão, ao mesmo tempo que se sublinham os bons exemplos.

“Como não podemos negar que o joio se misturou com o trigo, pois os missionários nem sempre estiveram do lado dos oprimidos, deploro-o e mais uma vez ‘peço humildemente perdão, não só pelas ofensas da própria Igreja, mas também pelos crimes contra os povos nativos durante a chamada conquista da América’ e pelos crimes atrozes que se seguiram ao longo de toda a história da Amazónia.”

No segundo capítulo da exortação, Francisco pede a preservação das culturas amazónicas e responde aos críticos que tentam contrapor o cristianismo à cultural local da Amazónia, como se os missionários que levam o Evangelho aos povos da floresta amazónica fossem responsáveis por prejudicar a cultura dos povos indígenas.

“O objetivo é promover a Amazónia; isto, porém, não implica colonizá-la culturalmente, mas fazer de modo que ela própria tire fora o melhor de si mesma”, escreve Francisco, sublinhando que o Evangelho não pretende substituir, mas sim enriquecer a cultura local. “Convido os jovens da Amazónia, especialmente os indígenas, a ‘assumir as raízes, pois das raízes provém a força que fará crescer, florescer e frutificar’. Para quantos deles são batizados, incluem-se nestas raízes a história do povo de Israel e da Igreja até ao dia de hoje. Conhecê-las é uma fonte de alegria e sobretudo de esperança que inspira ações válidas e corajosas.”

A preservação e proteção dos indígenas que o Papa propõe, explica, não passa pelo isolamento. “A identidade e o diálogo não são inimigos”, escreve, “não é minha intenção propor um indigenismo completamente fechado, a-histórico, estático, que se negue a toda e qualquer forma de mestiçagem”.

O Papa dedica uma boa parte da sua exortação apostólica à questão ecológica, dando particular destaque às ameaças globais da destruição da Amazónia, incluindo as irremediáveis perdas para a humanidade que resultam da destruição e extinção de espécies, até as mais pequenas.

“Não basta prestar atenção à preservação das espécies mais visíveis em risco de extinção. É crucial ter em conta que, ‘para o bom funcionamento dos ecossistemas, também são necessários os fungos, as algas, os vermes, os pequenos insetos, os répteis e a variedade inumerável de microorganismos. Algumas espécies pouco numerosas, que habitualmente nos passam despercebidas, desempenham uma função censória fundamental para estabelecer o equilíbrio dum lugar’. E isto facilmente se ignora na avaliação do impacto ambiental dos projetos económicos de indústrias extrativas, energéticas, madeireiras e outras que destroem e poluem. Além disso a água, que abunda na Amazónia, é um bem essencial para a sobrevivência humana, mas as fontes de poluição vão aumentando cada vez mais.”

Francisco defende que haja um diálogo entre as tradições ancestrais dos indígenas e a modernidade, para melhor poder cuidar da Amazónia e realça a importância de uma noção de “ecologia humana”, que não olha apenas para a flora e a fauna, mas sim para a humanidade também e respeita a natureza desta.

Por fim, Francisco parece apaziguar alguns dos Governos dos países amazónicos, assegurando-lhes que não defende a “internacionalização” da floresta. “Além dos interesses económicos de empresários e políticos locais, existem também ‘os enormes interesses económicos internacionais’. Por isso, a solução não está numa ‘internacionalização’ da Amazónia, mas a responsabilidade dos governos nacionais torna-se mais grave.”

O Papa explica no texto da exortação que quer uma Igreja insculturada na Amazónia, em que as tradições locais, o Evangelho e a liturgia se possam enriquecer mutuamente.

Neste capítulo Francisco descarta a possibilidade de ordenar homens casados, como chegou a ser proposto no documento final do sínodo, bem como a clericalização das mulheres, e recorda aos missionários que o seu papel é partilhar o Evangelho e não impor culturas alheias.

Ao mesmo tempo, diz o Papa, a Igreja não pode ter vergonha de partilhar Jesus Cristo. “Perante tantas necessidades e angústias que clamam do coração da Amazónia, é possível responder a partir de organizações sociais, recursos técnicos, espaços de debate, programas políticos… e tudo isso pode fazer parte da solução. Mas, como cristãos, não renunciamos à proposta de fé que recebemos do Evangelho. Embora queiramos empenhar-nos lado a lado com todos, não nos envergonhamos de Jesus Cristo. Para quantos O encontraram, vivem na sua amizade e se identificam com a sua mensagem, é inevitável falar d’Ele e levar aos outros a sua proposta de vida nova”

“Este anúncio deve ressoar constantemente na Amazónia, expresso em muitas modalidades distintas. Sem este anúncio apaixonado, cada estrutura eclesial transformar-se-á em mais uma ONG e, assim, não responderemos ao pedido de Jesus Cristo”, escreve ainda Francisco.

O Papa apresenta assim a evangelização não como um direito dos missionários, mas dos próprios indígenas.

“O caminho continua e o trabalho missionário, se quiser desenvolver uma Igreja com rosto amazónico, precisa de crescer numa cultura do encontro rumo a uma ‘harmonia pluriforme’. Mas, para tornar possível esta encarnação da Igreja e do Evangelho, deve ressoar incessantemente o grande anúncio missionário”, diz ainda Francisco

Sem abordar diretamente a polémica que surgiu na altura do sínodo em torno de alegadas cerimónias pagãs no Vaticano, o Papa não deixa de criticar quem olha com desconfiança para as manifestações religiosas e culturais dos indígenas. “É possível receber, de alguma forma, um símbolo indígena sem o qualificar necessariamente como idolátrico. Um mito denso de sentido espiritual pode ser valorizado, sem continuar a considerá-lo um extravio pagão. Algumas festas religiosas contêm um significado sagrado e são espaços de reunião e fraternidade, embora se exija um lento processo de purificação e maturação.”

Neste sentido Francisco lamenta que não se tenha avançado quase nada desde o Concílio Vaticano II na inculturação litúrgica, que permite incluir certos aspetos das culturas locais nas celebrações católicas.

O Papa conclui a exortação apostólica “Querida Amazónia” com um apelo ao diálogo ecuménico e inter-religiosos e, apesar de reconhecer que a devoção mariana separa os católicos de outros cristãos, fecha o texto com uma longa oração a Nossa Senhora.