“Ordens profissionais têm de se sentar à mesa com o Governo”, diz Adalberto Campos Fernandes
19-02-2021 - 15:49
 • Pedro Mesquita , Filipe d'Avillez

O antigo ministro da Saúde considera os números do excesso de mortalidade “impressionantes e preocupantes”, mas entende que as ordens - como a dos médicos - e as associações profissionais passam o tempo a mandar recados ao Governo quando deveriam envolver-se mais no combate à pandemia.

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O antigo ministro da Saúde Adalberto Campos Fernandes lamenta que as ordens profissionais, como a Ordem dos Médicos, dos Enfermeiros e outras, não estejam sentados à mesma mesa do Governo e dos responsáveis pelo combate à pandemia.

Em entrevista à Renascença, Campos Fernandes confirma, contudo, que os recados e alertas que têm sido dados pelas organizações são certeiros e que a situação "é grave".

“Creio que as ordens e outras instituições têm razão neste alerta que têm repetidamente feito de que nós estamos a ter algum distanciamento em relação à outra pandemia que é a pandemia não-Covid. Os números são impressionantes, são muito preocupantes, temos um excesso de mortalidade que se acentua, temos seguramente um atraso no diagnóstico e na intervenção terapêutica que vai ter custos pessoais, individuais e coletivos brutais. Portanto é altura de todos se sentarem à volta de uma mesa e encontrarem uma solução. Esse plano de recuperação é, de facto, imperioso”, conclui.

O problema tem sido repetido por muitos. A pandemia está a distrair de situações de saúde graves e o preço a pagar será caro, a médio longo prazo.

“Situações de exceção requerem soluções de exceção e até comportamentos de exceção. Não temos nenhuma dúvida de que essa redução brutal do número de consultas está, por exemplo, a iludir aquilo que possa ser um crescimento menos acentuado das listas de espera em cirurgia, porque se os doentes não chegam à consulta, não chegam ao diagnóstico e não são inscritos. Portanto esse problema existe, existe em toda a Europa e existe em Portugal.”

“Portugal já tem um histórico de dificuldades que foi muito agravada pela pandemia, temos uma população muito idosa, somos um dos países mais envelhecidos da Europa, e uma população muito doente que nos últimos dez anos acumula uma grande carga de morbilidade. Portanto esse plano tarda, como seguramente tardará um plano para o desconfinamento que será escrito em cima de uma matriz de risco claramente percetível por todos.”

“Portanto esse apelo deve ser tido em conta, mas deve ser tido em conta à volta de uma mesa”, sublinha o ex-ministro, para quem esta tendência de troca de recados será prejudicial.

Ainda esta sexta-feira o Bastonário da Ordem dos Médicos voltou a levantar o problema novamente, em declarações à Renascença.

Adalberto Campos Fernandes diz que “estamos num país livre e a liberdade de expressão tem de ser respeitada até ao limite, mas no caso das associações socioprofissionais que até têm competências delegadas pelo Estado, e no caso de associações como os médicos de saúde pública e as redes hospitalares, o país teria ganho muito se desde o primeiro minuto todos estivessem sentados no mesmo gabinete de crise e a trabalhar e a resolver os problemas em prol do cidadão.”

“O que é que o cidadão ganha com, ao longo dos meses, estarmos a ouvir soluções, pistas ou recomendações constantemente na praça pública, de fora. Claro que as recomendações são pertinentes, fazem sentido, são razoáveis, mas a sensação que as pessoas têm, visto de fora, é que não há diálogo e que as pessoas não se entendem”, critica.

Admitindo que não faz ideia porque é que esse diálogo não existe já, Adalberto Campos Fernandes diz que cada agente deva assumir as suas responsabilidades.

“Toda a gente provavelmente tem sensibilidades, por vezes reconhecemos que as ordens profissionais assumem atitudes que podem ser criticáveis, mas não pode haver, na governação nem na direção, deste tipo de entidades, estados de alma. O que está em causa é muito maior do que as sensibilidades de natureza individual. Portanto cada um deve assumir as suas responsabilidades e pôr-se no seu lugar.”

“O Governo tem responsabilidade máxima porque tem legitimidade democrática. Mas as ordens também têm competências delegadas em nome do povo pelo Estado, portanto têm de ser, e são, responsáveis. Há coisas que as ordens não podem e não devem fazer. Mas podem e devem lutar pelo interesse público e pelo bem comum, numa concertação permanente. Estes assuntos deviam estar a ser tratados desde o primeiro minuto, porque o problema está aí.”

A correr atrás do problema

Mas o ex-governante avisa que é um grave erro o Governo deixar de fora os pontos de vista e a experiência de quem está no terreno. “O que é que acontece quando deixamos de fora os atores que intervêm ter responsabilidade neste setor? Andamos sempre a correr atrás do problema! E isso é mau para as pessoas, para os cidadãos, porque por um lado pensam que ninguém se entende, segundo que não dialogam e não falam uns com os outros e finalmente, vendo que há argumentos que são razoáveis e que são sensatos, as pessoas ficam na dúvida sobre o que é que se passa.”

É urgente pensar num programa de recuperação para o atraso nesta dimensão do sistema de saúde, considera Adalberto Campos Fernandes, ainda que já seja tarde.

“O sistema de saúde não aguenta estar muito mais tempo parado para os não Covid. Mais uma vez, ainda que tarde, poderá sempre imperar o bom senso, chamando rapidamente os doentes que estão esquecidos. É preciso não menosprezar, e ninguém o faz, seguramente, os sinais de alerta, a diminuição dos acessos à via verde coronária, olhar para os indicadores específicos da mortalidade, nomeadamente a doença cardiovascular, a doença oncológica. Os sinais de alerta estão aí e já estão há vários meses.”

“A pergunta que fica, para nós que estamos de fora, é, mas não falam uns com os outros?”, conclui.