Portugal é mesmo o país onde o fosso salarial mais cresceu entre 2011 e 2016?
08-03-2018 - 19:22

O relatório do gabinete de estatísticas da UE refere que o fosso salarial entre homens e mulheres cresceu 4,6%, entre 2011 e 2016. Sara Falcão Casaca, ex-presidente da Comissão para a Cidadania e Igualdade de Género, alerta para a necessidade de uma leitura mais cuidada dos números e afirma que "o ‘gap’ não tem vindo a aumentar”.

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Os dados do Eurostat indicam Portugal foi o país onde o fosso salarial entre homens e mulheres mais cresceu, entre 2011 e 2016. O relatório europeu indica um crescimento de 4,6% na diferença salarial entre homens e mulheres.

Em 2016, essa mesma diferença atingiu os 17,5%, menos 0,3% do que no ano anterior. A Renascença quis perceber o que justifica esta diferença. E, para isso, é preciso saber exatamente o que dizem os números.

Um ponto importante a destacar do relatório do gabinete de estatística da União Europeia tem a ver com a nota metodológica que os acompanha, como explicou Sara Falcão Casaca, a ex-presidente da Comissão para a Cidadania e a Igualdade de Género.

A primeira consideração a ter em conta, é que “os números dizem respeito às remunerações à hora e só se referem a estabelecimentos e entidade empregadoras com mais de 10 trabalhadores e trabalhadoras”, afirma.

Esta limitação dos dados do Eurostat relativos ao número de empregados das empresas consideradas têm impacto na realidade portuguesa porque “excluem 85% por cento do tecido empresarial português”, explica Sara Falcão Casaca.

Outro ponto importante em relação ao diferencial entre o salário de homens e mulheres que surge no relatório tem a ver com o facto de ser “sempre uma média”, o que quer dizer que “é bastante vulnerável aos extremos da distribuição”, ou seja, entre os salários mais altos e o salários mais baixos.

Na prática, isto quer dizer que durante o período abrangido pelo relatório do Eurostat “pode ter havido uma maior concentração designadamente dos homens, nos níveis remuneratórios mais elevados”, admite Sara Falcão Casaca.

“Isso é o que pode explicar, de acordo com essa fonte estatística, o aumento do diferencial entre mulheres e homens”, avança a economista.

O "gap" salarial em Portugal não está a aumentar

Sara Falcão Casaca considera que existem addos mais exatos em Portugal, que tanto as universidades e os investigadores que analisam o mercado laboral, como a Comissão para a Igualdade no Trabalho e no Emprego, “utilizam sistematicamente”.

São os dados que decorrem dos quadros de pessoal, que "embora não sejam perfeitos" têm uma vantagem relativamente aos dos Eurostat porque são reportados obrigatoriamente pelas empresas ao Ministério do Trabalho.

A informação inclui não só os dados sobre as remunerações de base mas também aos ganhos, em geral, dos trabalhadores. “Quanto é que as mulheres e os homens levam efectivamente, ao fim do mês, para casa, contando não só com as remunerações de base, mas também suplementos, bónus e prémios”, explica a professora do ISEG.

Sem surpresa, os dados recolhidos em Portugal são mais completos e a história que contam é um pouco diferente dos números europeus.

“De acordo com esses dados, o ‘gap’ não tem vindo a aumentar”, diz Sara Falcão Casaca que reforça que a diferença salarial entre homens e mulheres em Portugal “tem estado relativamente estagnada, apesar de ser elevada”.

“Os dados de 2016 apontam para um diferencial nas remunerações base de 15,8% e nos ganhos reais de 19,1%”, diz a professora no ISEG, que acrescenta que “a média entre dois valores até está próximo do valor que o Eurostat apresenta”, que é 17,5%.

Sara Falcão Casaca destaca que a principal diferença entre os dois conjuntos de dados - nacionais e europeus - é que o “gap” não tem vindo a aumentar, “até porque os últimos anos foram de contenção na remuneração dos homens”.

Diferencial salarial aumenta com o nível de qualificação

Não obstante a diferença dos números, a investigadora destaca a importância da elevada diferença entre o que ganham os homens e as mulheres e outro factor que “causa ainda mais perplexidade”.

“O facto de o diferencial salarial aumentar com o nível de qualificação, um padrão que se mantém”, o quer dizer que quanto mais qualificadas são as mulheres e os homens maior é a diferença salarial entre eles.

Sara Falcão Casaca refere que entre mulheres e homens qualificados, a diferença nas remunerações base chega aos 26% e entre os ganhos em geral, aos 28%.

As diferenças entre os números sobre os salários femininos e masculinos em Portugal dão conta da necessidade de “ter, com urgência, um dado fidedigno, rigoroso sobre qual é realmente o diferencial remuneratório em Portugal”, considera a ex-presidente da Comissão para a Cidadania e a Igualdade de Género.

As diferenças salariais são maiores na remuneração variável

O diferencial salarial entre homens e mulheres continua elevado apesar de existirem leis que definem tabelas salariais, muitas divulgadas publicamente.

Sara Falcão Casaca explica que a diferença se deve, sobretudo, à componente variável das remunerações. “Na componente que tem a ver com bónus, horas suplementares, prémios”, diz. “É sobretudo naquela parte remuneratório, que regra geral, é menos transparente ou que deixa espaça para uma maior discricionariedade”, refere.

Para minimizar a diferença entre o que ganham os homens e as mulheres, Sara Falcão Casaca não tem dúvidas sobre o que é preciso fazer: “as direcções de recursos humanos precisam de estar mais atentas, não só à remuneração fixa, mas fundamentalmente à componente de remuneração variável”.

É na componente variável do salário que pode “existir mais enviesamento em função do género”. A lei prevê salário igual para trabalho igual, mas Sara Falcão Casaca considera que devia dizer “salário igual para trabalho de valor equivalente”, porque na definição das funções é onde está, muitas vezes, a raiz do problema.

“Por vezes, há componentes das funções laborais das mulheres que ficam invisíveis”, explica Sara Falcão Casaca. Um exemplo é a forma como as próprias funções são definidas.

“Por vezes, homens e mulheres fazem exatamente o mesmo, mas eles podem ser classificados como ‘especialistas de manutenção do saneamento em espaços públicos’ e elas como ‘empregadas de limpeza’. Do ponto de vista das funções as características são muito semelhantes, mas houve sobrequalificação no caso dos homens”, nomeadamente com a introdução da categoria ‘especialista’, descreve Sara Falcão Casaca.

Para a ex-presidente da Comissão para a Cidadania e a Igualdade de Género, resolver o problema do diferencial salarial entre homens e mulheres é uma “questão bastante complexa” e envolve também “redefinição de carreiras, com ênfase para as funções realizadas”.