Um OE para a classe média? "Divisões artificiais" incluem no conceito quem ganha salário mínimo
13-10-2023 - 07:00
 • Fábio Monteiro

O Orçamento do Estado para 2024 destina-se “à classe média”: palavra de ministro das Finanças. Mas é mesmo? OCDE diz que 60% da população portuguesa pertence à classe média. À Renascença, o economista Pedro Brinca lembra que Portugal “é um país pobre” e que tem uma “distribuição de rendimento diferente de outros países”.

O Orçamento do Estado para 2024, desenhado pelo Governo de António Costa, tem como objetivo “melhorar os rendimentos das famílias”, muito “em especial as classes médias”: eis a garantia deixada pelo Ministro das Finanças, na terça-feira, durante a apresentação do documento.

Mas é mesmo? Fernando Medina não explicou, em nenhum momento, o que entende por classe média. O conceito é calculado com base em critérios que, nas últimas décadas, foram “um pouco pervertidos”, conforme defendeu o sociólogo Elísio Estanque em declarações à Renascença, em janeiro deste ano.

Segundo a OCDE, 60% da população portuguesa pertence à classe média. Acontece que esta conclusão tem por base uma visão pura e estritamente económica. Com base no rendimento mediano nacional anual (10.128 euros, em 2021), a organização calcula duas fasquias: o limite mínimo (quem recebe pelo menos 75% do rendimento mediano) e o limite máximo (200%) para se ser considerado "classe média".

Ora, seguindo à linha a fórmula de cálculo da OCDE, em Portugal, uma pessoa que ganhe entre 7.607 euros e os 20.285 euros anuais brutos pertence à classe média; um casal que leve para casa entre 10.758 e 28.688 euros, idem.

E mais: quem recebe o Salário Mínimo Nacional (SMN) — atualmente fixado nos 760 euros, 820 a partir de janeiro do próximo ano — é classe média.

"Não há nenhum critério objetivo"

Os números da OCDE fazem, então, sentido? À Renascença, o economista Pedro Brinca, da NOVA SBE, lembra que diferentes países usam diferentes fórmulas de cálculo para apurar a classe média. “São divisões artificiais”, sublinha.

“Uma coisa é uma pessoa pegar num calhau e ele ser duro. É duro para mim, é duro para ti. Outra coisa é uma pessoa pensar o que é classe média. É 10% do rendimento mediano? É o intervalo entre o 3.º e o 7.º escalão [do IRS]? Não há nenhum critério objetivo que permita dizer que a minha definição é melhor que a tua.”

O economista dá como exemplo desta discrepância de critérios um artigo científico, que diz ter lido recentemente, relativo à realidade dos Estados Unidos da América, em que a classe média era definida como a margem de “50% acima do rendimento mediano e 50% abaixo”.

Pedro Brinca sublinha que Portugal “é um país pobre” e que tem uma “distribuição de rendimento diferente de outros países”. E aponta também que o sítio onde se mora — principalmente por culpa da habitação — pesa muito na qualidade de vida. “Uma pessoa que ganhe 800 euros em Viseu vive muito melhor do que alguém que ganhe 1500 euros em Lisboa.”

Em tom irónico, o economista afirma até: “Os salários em Portugal não valem uma Mérida.” E depois explica: “Se olharmos para as médias salariais por cidade, Lisboa é a cidade com maior média salarial e mesmo assim fica abaixo da cidade espanhola com menor média salarial, que é precisamente Mérida.”

"Uma potencial injustiça”

Economicamente falando, mais uma vez seguindo a linha da OCDE, com a redução das taxas de IRS do primeiro até ao quinto escalão, o Governo vai, na realidade, além da classe média. Após a aprovação do OE para 2024, o quarto escalão irá até aos 21.321 euros, enquanto o quinto chegará aos 27.146 euros.

“De facto, o quinto escalão em Portugal significa alguém que ganha acima da média, bastante acima da média até”, constata o economista Carlos Daniel Santos, em declarações à Renascença.

No entender do economista do ISEG, no OE para 2024 “parece que houve uma preocupação em que a redução das taxas marginais fosse mais forte nos primeiros escalões e depois à medida que os escalões aumentam foi reduzindo”. Dá-se o caso, porém, de tal gerar “uma potencial injustiça”, ao aumentar o fosso entre escalões nas contribuições fiscais.

“Se baixamos três pontos percentuais num escalão e não mexemos noutro, o que acontece é que a progressividade aumenta significativamente. Para o sistema fiscal português, que já é relativamente progressivo, significa que as contribuições das classes mais altas, que são quem na prática sustenta as contribuições para o IRS, vão contar ainda mais para a receita fiscal do IRS.”

De acordo com a Autoridade Tributária, em 2021, 41,59% das famílias portuguesas não pagaram qualquer valor de IRS.