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Fundo da ONU para a População

“Não faltam recursos, estão estupidamente mal distribuídos”

07 out, 2024 - 22:58 • Sandra Afonso

Mónica Ferro, diretora do Fundo das Nações Unidas para a População em Londres, explica em entrevista à Renascença como podemos combater a pobreza. Fala ainda do fenómeno da migração, da violência entre os jovens e dos movimentos populistas.

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“Não faltam recursos, estão estupidamente mal distribuídos”. Entrevista a Mónica Ferro

Mónica Ferro acredita que não é necessário mais dinheiro para garantir o essencial e atacar a pobreza, é preciso distribuí-lo melhor. Aos políticos, a diretora do Fundo das Nações Unidas para a População pede mais iniciativa.

Em entrevista à Renascença, Mónica Ferro fala ainda da falta de respostas que hoje minam a vida dos jovens e cria ansiedade. Vivem “ensanduichados” entre bons exemplos que vão encontrando, até nas redes sociais, e as muitas dificuldades que sentem e observam, o que explica a facilidade com que os movimentos populistas estão a chegar até esta camada da população. Prometem soluções fáceis e convencem com mentiras.

Mónica Ferro sublinha também que os jovens, as futuras gerações, estão fragilizados pela desinformação online, “que os faz sentir que pertencem a uma comunidade”. Isto está a facilitar a radicalização de comportamentos violentos, como ataques a escolas.

A diretora do Fundo das Nações Unidas para a População, em Londres, alerta ainda para os efeitos desta violência online nos próprios jovens.

“A violência online tem consequências na vida real, é tão devastadora como a violência na vida real, basta ver a quantidade de suicídios e depressões associado a estes fenómenos”, avisa.

Critica ainda a forma como a migração está a ser tratada, “como uma mercadoria”, até porque está longe de representar este fenómeno. Além dos que vêm para a Europa trabalhar, há os que vêm para estudar, fazer investigação, a acompanhar alguém.

Defende que a Europa já tem os trabalhadores de que precisa, mas para isso tem de garantir a igualdade de género, que ainda não está consagrada em nenhum país europeu.

“Se garantirmos às mulheres as condições para virem para o mercado de trabalho – se trabalharem de forma não discriminatória, se ganharem o mesmo que os homens, se não forem penalizadas nas carreiras pela maternidade – vamos ter mais mão-de-obra disponível", indica Mónica Ferro, que será uma das oradoras este ano nas Conferências do Estoril, que vão decorrer entre 24 e 25 de outubro.


Tendo em conta a evolução da sociedade, como avalia a necessidade de ainda discutirmos temas como os direitos das mulheres ou a desigualdade de género?

Vivemos num mundo cheio de informação. Temos provas de que o investimento na igualdade de género é o que resulta para quebrar ciclos de pobreza, para empoderar comunidades, para aumentar o bem-estar económico dos países e das suas populações. Ou seja, há dados que provam que são investimentos de grande retorno.

É alarmante haver um grupo crescente de pessoas que afirma que esses valores devem ser discutidos, que o valor da igualdade de género é algo que pode ser posto em causa. Isso faz com que no século XXI, em 2024, ainda tenhamos que estar a discutir se é importante ou não ser feminista ou medir o impacto das políticas no género. Estamos a discutir de novo o essencial, quando já devíamos estar a ter uma conversa sobre como acelerar o progresso.

O relatório das Nações Unidas sobre a execução dos Objetivos do Banco Sustentável diz que são precisos 300 anos para atingir a igualdade de género. Isto, se não tivermos em consideração o efeito combinado e cumulativo de guerras, alterações climáticas, regimes populistas que vão fazer retroceder os direitos das mulheres. São 300 anos na melhor das hipóteses. Isto só nos pode apelar à ação.

Assistimos a uma regressão em algumas geografias?

Há uma regressão, de facto.

No Fundo das Nações Unidas para a População, temos tentado monitorizar, ao longo dos anos, os grandes progressos e desafios na promoção do acesso universal à saúde sexual e reprodutiva e aos direitos sexuais e reprodutivos para todas as pessoas. Temos razões para celebrar, sabemos que a mortalidade materna mundial diminuiu em 34%, há cada vez mais países a adotar legislação contra a violência doméstica. Mas, sabemos também que a cada dois minutos morre uma mulher por causas ligadas ao parto e pós-parto e que 99% dessas causas são evitáveis.

Nós achamos que isto tem muito a ver, de uma maneira geral, com a nossa incapacidade, enquanto estruturas mundiais, de desmantelar o racismo sistémico, a desigualdade económica e a desigualdade de género e de chegar às pessoas que estão discriminadas.

Sabemos muito bem quem é que são as pessoas que têm ficado para trás do desenvolvimento e sabemos como lhes chegar. A nossa incapacidade de o fazer faz com que, para essas pessoas, a situação não tenha evoluído, em alguns casos até retrocedeu.

Os movimentos migratórios ajudam a corrigir estas desigualdades, através da integração de imigrantes de países menos desenvolvidos em sociedades mais evoluídas? Ou, pelo contrário?

Essa é a pergunta mais importante que podemos fazer hoje.

A Europa está longe de ser o grande destino, os movimentos de população fazem-se sobretudo dentro do mesmo continente, este número impressionante de pessoas que vimos chegar à Europa não é significativo quando comparado com a migração no continente africano, mas são números importantes, sobretudo na perceção das pessoas.

Esses movimentos têm que ser regularizados, as pessoas têm que chegar à Europa e ter um projeto de vida que lhes permita dignidade. Não significa fechar a porta, nem significa impor cotas, significa garantir que quando as pessoas chegam elas têm os mecanismos para poder viver com dignidade, que têm acesso ao mercado de trabalho, que têm acesso à escola, que têm acesso à saúde. Uma sociedade que consiga fazer isto, vai conseguir equilibrar até os seus déficits demográficos.

No fundo, é esse o argumento que tem sido utilizado para derrubar a resistência à entrada de imigrantes - o envelhecimento da população.

A Europa tem uma taxa de fertilidade abaixo do tal mítico 2.1, que, insistimos, é uma referência, não é um valor de ouro. A Europa está abaixo do 2.1 há mais de 30 anos, não é de agora.

A Europa nunca sentiu falta de mão-de-obra porque teve sempre um fluxo constante de pessoas que queriam vir trabalhar para o continente europeu e que dessa forma nos permitiu manter a sociedade a funcionar no mesmo patamar. Porque, além das pessoas que vêm para a Europa para trabalhar, há pessoas que vêm estudar, vêm fazer investigação, há pessoas que se apaixonam por pessoas que vivem na Europa. Esta ideia da migração como uma mercadoria é uma ideia que nos dá uma visão errada de quem são as pessoas que estão a chegar e de quem são as pessoas que estão a partir, não é?

E a migração é a única solução para preencher a necessidade de trabalhadores?

Digo muitas vezes que os países que agora estão a perceber que têm alguma falta de mão-de-obra porque têm taxas de fertilidade mais baixas e têm algo que é de celebrar, uma população a envelhecer, a mão-de-obra que aqui falta pode ser compensada de facto com migrantes, mas pode ser compensada também garantindo a igualdade de género.

Não há nenhum país na Europa que tenha a igualdade de género consagrada. Se garantirmos às mulheres condições para virem para o mercado de trabalho, de forma não discriminatória, se ganharem o mesmo que os homens, se não forem penalizadas nas suas carreiras pelo facto de serem mães ou pela possibilidade de virem a ser mães, vamos ter aqui mais mão-de-obra disponível.

Às vezes é difícil de explicar, mas a verdade é que nós temos nos próprios países, entre migrantes e pessoas que já estavam no país, nós temos o necessário para equilibrar as economias. Os modelos de sustentabilidade da nossa segurança social não são compatíveis com essas dinâmicas.

Medidas como cotas de género, apesar de redutoras, continuam a ser necessárias?

Quando estava no Parlamento, às vezes diziam-me que a sociedade não se muda por decreto. Eu respondia que os decretos ajudam, porque os decretos dão força anímica à mudança.

A questão das cotas é isso. Ninguém diz que vai mudar uma sociedade do ponto de vista da representação política por ter cotas para mulheres no Parlamento, porque para já as cotas são para as mulheres, um género menos representado.

Mas, a verdade é que, se uma menina que está em casa a ver televisão vir muitas deputadas no Parlamento, a primeira coisa que ela vai pensar é: eu também posso ser. E as mulheres, de facto, trazem outras agendas para a política.

Ainda sobre política... Assistimos neste momento ao crescimento dos movimentos populistas, das soluções fáceis e dos partidos extremistas. Preocupa-a, no cargo que ocupa? Que impacto pode ter a médio e longo prazo na sociedade? É um fenómeno temporário ou está para ficar?

Infelizmente, acho que é um fenómeno mais longo do que gostaria, no sentido em que as soluções muito fáceis nunca resistem ao teste da prática.

Por exemplo, as baixas taxas de fertilidade. Esta ideia de que os países podem definir números ótimos populacionais e depois podem ter políticas para atingir esses números, são ideias muito perigosas na maior parte das vezes. Nós defendemos que os países devem olhar para as variações demográficas que estão a acontecer por todo o mundo e devem adequar as suas políticas sociais, de economia, de habitação, de educação e de saúde a essas populações que estão em mudança. É o que chamamos de resiliência demográfica.

Uma sociedade tem que ser resiliente para acomodar as mudanças demográficas que vão continuar a acontecer. Se em vez disso um país se fixar num número ideal para a população, as políticas quase de engenharia demográfica que vai desenhar vão violar os direitos das pessoas, porque o pensamento de base é muito simplista.

Aumentar o número de creches, facilitar a conciliação familiar e uma melhor educação, todas essas são políticas baseadas em direitos humanos. Os partidos populistas são os que têm as soluções fáceis para tudo.

Num podcast recente, defendeu que aumenta a ansiedade entre jovens devido a desafios como mudanças climáticas e conquista de direitos. Os jovens não estão a encontrar respostas para eles?

Não encontram respostas, sentem-se muitas vezes fora dos processos de tomada de decisão, sentem que a decisão política se passa numa esfera à qual não têm acesso. Pior, queixam-se muito da opacidade nos processos de acesso a esse patamar. Estou, por exemplo, a falar da quantidade de jovens que não percebe como é que um dia podem ser candidatos aos parlamentos.

Além disso, como estão mais interconectados do que nunca, vão vendo experiências de outros países e têm muita noção de que os direitos estão a retroceder em determinados países, enquanto noutros países avançam. Ou seja, vivem um pouquinho sanduichados entre o muito de bom que se está a fazer em alguns sítios e o mal que está a acontecer nos outros, vivem pressionados por ter que lutar pelo direito ao emprego, pelo direito à saúde, pelo direito à identidade de género, e ainda por cima têm esta crise climática. António Guterres, secretário-geral das Nações Unidas, disse uma vez que é como se nós estivéssemos a caminhar para o inferno climático com o pé no acelerador. Sentem que tudo tem de ser feito muito depressa, porque a iminência de uma catástrofe faz com que tudo na vida deles seja urgente.

Daí a ansiedade?

Isto só pode gerar ansiedade e deixa-os muito suscetíveis a narrativas simplistas.

Eu tento perceber como é que os jovens estão a ser seduzidos para partidos xenófobos, para partidos anti-migração, por exemplo, o que para mim é o contrário do que é um jovem, alguém com uma cabeça muito aberta. Uma das explicações que encontro é que eles não se sentem refletidos nas políticas atuais, estão com uma grande ansiedade que alguém lhes diga que um futuro melhor é possível.

Esses partidos prometem-nos isso e ficam muito seduzidos por estas mentiras de que é fácil resolver o problema das alterações climáticas, ou melhor, que elas nem existem, ou que é fácil resolver o problema da integração das comunidades migrantes.

Nunca é fácil. Se parece fácil demais é porque provavelmente não é verdade.

Infelizmente, estamos habituados a assistir a ataques violentos em escolas noutros países, pela televisão, agora tivemos uma situação dessas em Portugal. Esta reação violenta decorre de estímulos que estão a ser dados às crianças e aos jovens, ainda que inadvertidamente?

Eu tendo a pensar que isto vem do mesmo foco, do ter acesso às plataformas de desinformação. Porque não é só informação incorreta. Muitas vezes há uma tentativa de construir uma realidade alternativa desinformando, que os fazem sentir que pertencem a uma comunidade, mesmo que seja uma comunidade mobilizada para a violência.

Não tenho outra explicação para, por exemplo, relatos de que há, em algumas plataformas sociais, grupos destinados apenas a incitar à violência contra as mulheres ou a discutir se a igualdade foi longe demais. Acho que é este tipo de chão que facilita esta radicalização também em comportamentos violentos. É capaz de vir tudo do mesmo sítio, ao mesmo tempo que estes jovens sentem que não têm respostas.

Sabemos que há sempre uma percentagem de comportamento que não tem a ver com socialização, que tem a ver com falhas de respostas ou até, talvez, com patologias. Mas, hoje em dia, é muito claro o papel das redes. Basta ver que estes jovens recebem informações sobre como fazê-lo, depois partilham nas redes sociais o sucesso das suas atividades.

Há comunidades que não estamos a conseguir monitorizar que se galvanizam para estes atos. E é preocupante porque era algo que nós, em alguns países, tínhamos rotulado como lá fora, não é? Hoje percebemos que não é lá fora.

No Fundo das Nações Unidas para a População, temos muito chamado a atenção que o online tem propiciado uma série de violências e é como se a violência online não tivesse consequências na vida real. A violência online tem consequências na vida real. É tão devastadora como a violência na vida real. Basta ver a quantidade de suicídios e de depressões associados a estes fenómenos.

Gostava que terminássemos com uma nota positiva. O que é que podemos fazer? O que está ao nosso alcance, enquanto sociedade, e o que podem fazer os governos para melhorar algumas destas questões que temos vindo a abordar?

Quando olhamos hoje para o mundo, vemos que as pessoas, de uma maneira geral, vivem melhor, vivem mais tempo e com mais qualidade. Há mais mulheres a ter acesso ao ensino, há mais mulheres a trabalhar, há mais participação política do que em qualquer outro momento da nossa história. Aliás, somos hoje mais pessoas no planeta do que em qualquer outro momento da nossa história.

Sabemos quais são os investimentos certos. Sabemos que os investimentos na saúde, nos direitos humanos, no trabalho digno, são investimentos altamente produtivos. Sabemos também, até de uma forma mais granular, quais é que são as comunidades que mais precisam que esse investimento seja acelerado.

O que falta hoje é vontade política, não faltam recursos. Estão estupidamente mal distribuídos. A riqueza controlada por poucos permitiria que muitos vivessem com muito mais qualidade e com muito mais dignidade.

Basta ver as alterações climáticas. Quem é que são os países que poluem e quem é que são os países mais afetados por essa poluição? A minha diretora executiva diz muitas vezes que uma mãe de sete no Sahel que não teve nada a ver com as alterações climáticas, foi a que menos contribuiu, é das pessoas mais impactadas pela desertificação, pela falta de recursos.

É preciso construirmos este valor, o que nos faz mais humanos, que é a empatia. Sabemos como resolver estes problemas e há recursos para resolvê-los. Às vezes, falta esta consciência global e, muitas vezes, falta a vontade política de resolver os problemas. Mas é possível.

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