23 jul, 2024 - 00:20 • João Carlos Malta
Numa eleição dominada pelo divino na sequência do atentado a Donald Trump, o futuro de Kamala Harris, que se prepara para ser a primeira mulher negra a concorrer à presidência dos EUA, podia até acreditar-se estar escrito nas estrelas. Mas a realidade é que o passado e a história familiar talvez sejam pistas mais seguras para perceber de onde vem esta mulher que quer tornar-se na líder da maior potência mundial.
Ainda a pequena Kamala não andava e já os pais, ambos estudantes na Universidade de Berkeley, e defensores entusiastas dos direitos civis, a levavam de carrinho para manifestações.
Nascida em Oakland na Califórnia, em 1964, é fruto de uma mistura genética que hoje é também vista como uma mais-valia política ꟷ pai jamaicano e a mãe indiana. Deu-lhe dois grupos de identificação, os afroamericanos e os asiáticos, que fazem dela imagem de uma América miscigenada e multicultural.
Aliás, o nome Kamala foi escolhido por influência da ascendência hindu, e significa “lotus”, um outro nome dado à deusa Lakshmi, que significa e corporiza a força feminina.
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E se os pais, que se separaram quando ela tinha sete anos, a levaram a manifestações desde cedo, foi ainda na adolescência, em Montreal, onde estudou até ao secundário, que aos 13 anos, juntamente com a irmã mais nova, Maya, liderou um protesto bem-sucedido em frente ao seu prédio contra uma política que proibia as crianças de brincar no relvado.
Este passado marcado por lutas contra as injustiças com que se foi deparando, fez com que Biden a descrevesse, quando a escolheu para o “ticket” a levar a eleição em 2020, como uma defensora e representante “dos que menos têm”.
Desde muito cedo que os amigos mais próximos lhe anteviam caraterísticas que a poderiam levar a conquistar palcos que pareciam inalcançáveis. Além das capacidades retóricas, os que a conhecem lembram-se do sorriso e o sentido de humor que ajudavam a desbloquear muitas situações.
Talvez tenha sido a procura de justiça que a levou a estudar direito e a conseguir ser a primeira em vários marcos da sua vida pública. Foi a primeira mulher negra a ocupar quase todos os cargos que desempenhou: promotora distrital de São Francisco, procuradora-geral da Califórnia, senadora pela Califórnia e vice-presidente.
Será agora a segunda a derrotar Trump e a primeira mulher negra na Casa Branca?
Pelo menos, inclinação para o confronto público é certo que tem. O seu lado combativo foi bem visível quando já no Senado, rapidamente se tornou conhecida a nível nacional pelas capacidades de inquiridora em audiências de comités, submetendo testemunhas experientes e bem informadas a interrogatórios forenses que várias vezes foram notícia por si só.
Entre eles estavam os dois procuradores-gerais nomeados por Trump, Jeff Sessions e Bill Barr, e o juiz indicado para o Supremo, Brett Kavanaugh.
Mas o percurso de Kamala é tudo menos linear e não é só feito de sucessos ou predestinações. Se é verdade que agora, e depois de terem sido confrontados com a inevitabilidade da saída de Joe Biden da corrida, a pouco mais de cem dias da eleição, o nome da ex-vice-presidente parece ganhar consistência como nomeada dos Democratas, também não pode ser omitido que Kamala nunca foi consensual dentro do partido.
Harris descreveu-se, no passado, como uma “procuradora progressista” ꟷ os republicanos definem-na como extremista ꟷ mas marcou poucos pontos na ala mais liberal do partido Democrata.
E isso tem algumas razões e episódios. Quando o tema foi a pena de morte, Kamala chegou a defender a aplicação mesmo sendo pessoalmente contra.
O seu gabinete enquanto procuradora-geral da Califórnia também trabalhou para evitar a libertação de mais detidos, apesar da enorme sobrelotação nas prisões da Califórnia.
Outros exemplos, em que as decisões que tomou não foram bem compreendidas, aconteceram quando o Departamento de Justiça da Califórnia, recomendou em 2012, que Harris iniciasse uma ação civil contra o OneWest Bank por “má conduta generalizada” na sequência de um processo de execução a hipotecas de casas.
Harris, no entanto, recusou-se a processar o banco ou o seu então CEO, Steven Mnuchin, que foi secretário do Tesouro durante a presidência de Donald Trump.
Noutra situação, alguns advogados dizem que Harris não fez o suficiente para lidar com a brutalidade policial enquanto era procuradora-geral, especialmente depois de esta recusar investigação a tiroteios policiais contra dois homens negros em 2014 e 2015.
Há muito aclamada como o futuro do Partido Democrata, Harris também enfrentou críticas por não ter correspondido às expectativas. Os detratores dizem que ela não tem carisma para mobilizar o partido. A acusação voltou a florescer depois de o nome dela voltar a ser falado nas últimas três semanas, enquanto a desistência de Biden ia ganhando força.
A falta de reconhecimento público do trabalho como vice-presidente e consequente falta de popularidade para combater um oponente que se diz “salvo por Deus”, depois de um atentado que quase lhe tirou a vida, é outra questão que deixa a democrata sob pressão.
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Depois, há temas em que Kamala assumiu posições muito vincadas que a ajudaram a construir a imagem que tem, mas também serão alvo de ataques dos republicanos e das fações mais conservadoras da sociedade norte-americana.
De longe, o aborto é o tema político em que a posição de Kamala Harros é mais conhecida e segue a linha de argumentação de que as mulheres devem ter acesso a cuidados médicos quando querem.
Para Kamala, esta é uma luta em que estão em causa os direitos e liberdades mais fundamentais. “Esta é uma luta pela liberdade – a liberdade fundamental de tomar decisões sobre o próprio corpo e não ter o governo que lhes diz o que devem fazer”, disse ela num evento recente na Flórida.
Neste aspeto, os democratas acreditam que Harris tem a oportunidade de traçar um contraste mais nítido contra Donald Trump, nesta matéria, do que aconteceria com Joe Biden.
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O tema da fronteira sul do país será uma das armas mais afiadas que os republicanos têm para lhe arremessar. Isso mesmo já foi inclusive dito por Stephen Moore, um dos conselheiros de Trump.
No início da presidência de Biden, Biden pediu a Harris que tentasse resolver os problemas profundos da migração na fronteira, com foco em países da América Central e do Sul.
"Não venham. Serão mandados de volta”, disse Harris aos potenciais migrantes que se dirigiam para a fronteira entre os EUA e o México, durante uma viagem à América Latina em junho de 2021. Ficou desde logo conhecida como a czarina da fronteira.
Não é claro que tenha sido bem-sucedida nesta matéria e foi criticada pelos democratas da região por não ter visitado a fronteira mais cedo.
Se quando em 2020 concorreu contra Biden para a nomeação democrata, Harris fez campanha por grandes cortes de impostos para a classe trabalhadora, benefícios fiscais para arrendatários e uma grande expansão do sistema de saúde. Agora o mais natural é que siga a política económica de Biden, bastante mais ao centro.
Os Estados Unidos apresentam a melhor recuperação económica do mundo após a pandemia: os gastos dos consumidores têm sido elevados; há mais americanos empregados do que em meio século; e os salários cresceram para ajudar a acompanhar a inflação.
Um outro tema que promete aquecer a corrida eleitoral é o do clima. Kamala é uma defensora das causas climáticas, e foi mesmo mais radical do que o seu partido na questão da prospeção de petróleo, defendendo a proibição de novos furos. Estas ideias entram em choque completo com as linhas da campanha de Trump que assenta em dar ainda mais força às energias fósseis e à indústria do petróleo.
Certo é que em pelo menos um ponto, Kamala conseguirá virar a narrativa dos republicanos centrada na idade e na força de Trump. Harris tem 59 anos e Donald Trump tem 78 anos, quase menos 20 anos. Ela é vista como uma “pessoa enérgica”. Chegará para vencer?