A Madeira presa entre a doença e a cura

02/11/2020 — Joana Gonçalves

As medidas de combate à Covid-19 na região resultaram no mais baixo número de vítimas do país. A resposta positiva à pandemia teve um preço sem precedentes para o Turismo, um setor que luta agora pela sobrevivência.

A Madeira registou este domingo a primeira morte por Covid-19. Durante oito meses, o arquipélago resistiu ao novo coronavírus e mantém-se a segunda região com menor número de infetados. As autoridades de saúde regionais apontam a antecipação de um plano de resposta, o impedimento da mobilidade dos profissionais de saúde, a testagem dos grupos mais vulneráveis e a proibição das visitas aos lares como as principais medidas que definem os resultados positivos da região.

Pela primeira vez, a “Pérola do Atlântico” fechou portas ao turismo e sentiu a solidão das ruas, habituadas a ter mais estrangeiros que residentes. O encerramento de fronteiras foi uma das estratégias adotadas para combater a pandemia. Mas a melhor cura para a doença revelou-se a maior ameaça para o turismo, que representa 26% do PIB regional.

Empresários pedem que o encerramento de portos, marinas e aeroportos não se repita, mas a maioria dos residentes acredita que essa é a única solução para travar a epidemia. Encontrar o equilíbrio entre duas forças que puxam para lados opostos é a chave para impedir o colapso da economia local. Na ausência de uma solução capaz de nivelar a balança, o Governo regional definiu uma prioridade.

O Funchal foi o primeiro concelho a registar casos de infeção pelo novo coronavírus, na Madeira.
Pontos representativos de número de casos por concelho

Os primeiros 15 casos foram importados.

Cinco da Holanda, três dos Emirados Árabes Unidos, um do Reino Unido, um de Espanha e cinco da região de Lisboa e Vale do Tejo.

Câmara de Lobos foi o segundo concelho a registar infeções.

Seguiram-se Ponta do Sol, Porto Santo e Santa Cruz.

A 16 de abril foi confirmado o 54.º caso. Tratava-se de um residente em Câmara de Lobos.

Na sequência deste caso foram confirmadas mais 33 infeções, nos dias seguintes. Estava instalado um surto neste município.

Capítulo 1

MEDO DO RESULTADO

"Ao meu terceiro teste positivo não consegui mais e comecei a chorar"

Os sintomas surgiram no início da terceira semana de abril. Confundidos com uma alergia, típica da época primaveril, os primeiros indícios de uma infeção pelo novo coronavírus foram desvalorizados.

No final da semana, sexta-feira dia 17, um familiar testa positivo. Soam os alarmes. Será? As autoridades de saúde iniciam a investigação epidemiológica e determinam que todos os contactos deste caso confirmado sejam testados. No dia 18 chega o resultado: positivo. Célio estava infetado com Covid-19.

O isolamento foi imposto no próprio dia e a mulher, Ana Lucrécia Gonçalves, e o filho, Salvador, de quatro anos, foram submetidos à mesma avaliação. A 20 de abril, sem surpresas, recebem um diagnóstico pouco animador. Também eles estão infetados. São isolados, três dias depois, num quarto de hotel, longe dos restantes familiares. O pai de Ana viria a testar positivo 15 dias mais tarde.

“Eu já estava um bocadinho à espera, porque desde o momento em que o meu marido testa positivo, eu deduzi logo que dentro de [alguns dias] iria estar [infetada]. Pensei: se ele tem, eu tenho”, conta Ana Gonçalves.

“Mamã, eu vou morrer? Tenho coronavírus. Vou morrer?”

Foi esta a pergunta que Salvador fez, vezes sem conta, quando soube que tinha testado positivo à Covid-19. O “menino esponja”, como lhe chamam os pais, por ser capaz de “captar tudo o que ouve entre conversas de adultos”, cumpriu 39 dias de isolamento, com a mãe, num quarto de hotel em Câmara de Lobos, o único concelho que adotou uma cerca sanitária, na Madeira.

“O Salvador já tinha noção do que era a Covid, porque como a escola fechou tive de lhe explicar que existia um novo vírus. Ele diz que é um bichinho que entra no nosso organismo”, explica a mãe.

O Governo regional decretou a cerca sanitária no concelho no mesmo dia em que Ana soube que estava infetada. A escola de Salvador tinha encerrado dias antes. A 22 de abril ambos dão entrada no Village Cabo Girão.

“É diferente, porque não é o nosso espaço. Não é a nossa casa. Estávamos super bem instalados, sentimo-nos muito bem, mas não é o nosso espaço, é diferente”, desabafa.

A somar ao desconforto de estar longe da família, sem data prevista de reencontro, Ana tinha ainda uma segunda fonte de preocupação: "no início, eu costumava dizer que tinha de dar um bocadinho o corpo às balas. Tinha uma criança de quatro anos comigo e outro a gerar dentro de mim”.

“Ao meu terceiro teste positivo não consegui mais e comecei a chorar. É uma situação difícil”

Ana estava grávida quando testou positivo à Covid-19. “É um bocadinho complicado, porque nós quando estamos grávidas somos mais lamechas. Ficamos mais sensíveis, é normal. Tentei reagir da melhor forma e pensei: não me vou abaixo, tenho de resolver. Isto vai passar, é uma fase, vai correr tudo bem”.

“Só que também houve uns dias em que, claro, fui-me abaixo. Ao meu terceiro teste positivo não consegui mais e comecei a chorar. É uma situação difícil”, relembra, hesitante.

Ana foi a segunda a testar negativo, depois do marido. “Testei negativo mais cedo, mas tive de esperar pelo Salvador. Não ia sem ele”. A 31 de maio regressaram a casa, ambos recuperados da doença, que nunca se manifestou. Mãe e filho estiveram sempre assintomáticos.

Depois de um período tão longo de confinamento, chega a vontade de sair e com ela o receio do reencontro. “ Nós, quando apanhamos isto, ficamos sempre um bocadinho com um pé atrás, sem saber como é que as pessoas vão agir connosco a partir daí. Eu compreendo e respeito que as pessoas tenham medo”, afirma.

No primeiro dia em que saiu de casa, depois do isolamento, Ana encontrou uma amiga, junto à baía de Câmara de Lobos. Sem hesitar, a colega cumprimentou-a com um abraço. “Não estava à espera. Saí no primeiro dia e aconteceu isto. Pensei: ah afinal...”, conta entre risos.

Quatro meses depois do regresso a casa, a jovem de 31 anos recebeu uma surpresa. O Vicente estava preparado para conhecer a família. Nasceu a 4 de setembro. É um bebé saudável e está longe de imaginar que, quando nasceu, o mundo atravessava uma pandemia que, até esta segunda-feira, já tinha feito mais de 46 milhões de infetados e mais de um milhão de mortos.

A Madeira soma, até ao momento, mais de 400 infetados com o novo coronavírus.

Cerca de 85% são casos importados, a maioria detetados à chegada ao aeroporto em Santa Cruz.

O primeiro caso confirmado no arquipélago tratou-se de uma turista holandesa, que chegou ao Funchal a 12 de março.

Recebeu a confirmação do diagnóstico quatro dias mais tarde, a 16 de março.

Capítulo 2

O PRIMEIRO CASO

“O receio de contágio é uma preocupação constante"

Duas semanas depois de confirmado o primeiro caso de Covid-19 em Portugal, uma turista holandesa dava entrada no hospital Dr. Nélio Mendonça, no Funchal.

João Caires, um dos enfermeiros destacados para a unidade Covid do Serviço de Saúde da Região Autónoma da Madeira (SESARAM), foi quem recebeu esta doente. A mulher, de 61 anos, apresentava já alguns sintomas de uma possível infeção.

Dias antes, o mesmo enfermeiro acompanhou uma jovem madeirense “que chegou de Itália e que tinha critérios epidemiológicos e clínicos”. Foi tratada como um caso suspeito, mas não se chegou a confirmar a infeção por Covid-19.

Na esperança de obter um desfecho semelhante, João realizou o teste à turista holandesa, que viria a receber um resultado positivo, confirmando-se, assim, o primeiro caso de infeção pelo novo coronavírus no arquipélago.

“Nenhum de nós estava preparado. Tínhamos tido formação, sabíamos aquilo que tínhamos de fazer, mas foi muito complicado lidar com a situação em si”, explica o profissional da equipa por onde passam todos os doentes com Covid-19 que necessitem de internamento na Madeira.

“Quando foi sinalizada como uma situação suspeita, nós equipamo-nos. Chegou cá a ambulância com a doente e encaminhamo-la para uma sala de isolamento. Fizemos o teste e tratamo-la como um caso positivo até sabermos o resultado”, conta. Este é o procedimento habitual para todos os casos suspeitos que chegam a este hospital.

Sala de isolamento para doentes com Covid-19, no hospital Dr. Nélio Mendonça.

Desde o início do ano, foram registadas mais de 1.800 notificações de casos suspeitos de Covid-19 no arquipélago. Menos de 20% acabaram por se confirmar.

A 17 de março, esta unidade hospitalar apoiava quatro doentes infetados com o novo coronavírus. O pico de ocupação foi atingido poucos dias depois, entre 20 e 23 do mesmo mês, com oito doentes internados. Apenas dois necessitaram de assistência na unidade de cuidados intensivos. Até ao momento, apenas um dos casos de Covid-19 confirmados na Madeira teve um desfecho fatal.

“Tivemos alguma sorte, porque nenhum dos doentes agudizou o seu estado clínico. Temos, também, a sorte de sermos uma ilha e de conseguirmos fechar as nossas portas. Foi a nossa grande vantagem”, defende o enfermeiro de 33 anos.

Cerca de 80% dos casos confirmados na região são importados, a maioria detetados à chegada ao aeroporto. Foi também esse o caso dos primeiros doentes que deram entrada neste hospital. “Eram cidadãos de outras nacionalidades. Falavam mal inglês e foi muito complicada essa gestão. O sistema de saúde deles, e nós tínhamos essa noção, é muito diferente do nosso. Foi muito difícil lidar com isso”, relembra.

“As pessoas, de alguma forma, não se sentiam muito bem cá, mas nós tentámos fazer o nosso melhor, de forma a recebê-los da melhor forma possível, com todas as condições que tínhamos, que são, modéstia à parte, muito boas”, acrescenta.

Para além desta, o SESARAM montou também uma unidade de cuidados intensivos dedicada apenas a doentes com o novo coronavírus, “com outra equipa de enfermeiros e médicos especializados".

“Estar na linha da frente é um desafio e é preciso ter muita vontade. Temos uma equipa excelente de médicos e enfermeiros a trabalhar connosco. Este é um vírus desconhecido. Não há medicação, nem há vacina. O que nos resta é a prevenção”, defende Ana Paula Reis, coordenadora da unidade polivalente de contingência do hospital Dr. Nélio Mendonça.

A equipa conta com 25 enfermeiros e 22 assistentes operacionais. Localizada no terceiro piso do edifício, com uma vista privilegiada sobre a ilha, esta unidade soma 29 camas, três camas de pediatria, duas neonatais, nove para cuidados intensivos e três isolamentos com pressão negativa.

Ana Paula Reis, coordenadora da unidade polivalente de contingência do hospital Dr. Nélio Mendonça.

Com 28 anos de experiência, esta não é a primeira vez que Ana Paula enfrenta uma crise semelhante. "Já passei por algumas, desde a gripe das aves à dengue, em 2012/2013”, recorda a especialista em medicina interna e infecciologia.

Desta vez, há um fator que não consegue deixar de referir e fá-lo várias vezes, com notória emoção na voz.

“Estes enfermeiros são do que há de melhor. Eles vão a qualquer lado fazer colheitas. Fazem-nas ao domicílio, vão aos internamentos, ao serviço de urgência, a qualquer hora do dia e da noite. Quando tivemos a cerca sanitária em Câmara de Lobos, eles foram ao concelho durante a noite. São excecionais. Tivemos aqui profissionais que estiveram afastados da família”, nota.

João Caires foi um deles. “Estive dois meses sem estar com o meu filho e com a minha mulher. Foi uma situação muito complicada, pela qual não quero vir a passar outra vez”. O enfermeiro desta unidade de contingência conseguiu isolar-se na mesma casa onde vivem o filho e a esposa, num quarto separado de ambos.

“São medidas que temos de tomar. Não há outra hipótese. O receio de contágio é uma preocupação constante e o risco é efetivamente muito grande, mesmo com tudo o que temos feito. Se eu me sentisse completamente seguro, nunca teria ficado sem estar com o meu filho e a minha esposa. Só que é impossível garantir a 100% que não me vou contaminar. É impossível”, defende.

E se o isolamento é duro para estes profissionais, não é menos custoso para os doentes que chegam a esta unidade, reconhece João. “Aqui, na região, tivemos um internamento muito longo, de uma residente cá da Madeira. De alguma forma, essa senhora marcou-nos muito, porque esteve cá mais de duas semanas, num quarto de isolamento”.

Com paredes brancas, uma bancada metálica e um espelho uns centímetros abaixo de três pequenas janelas, junto ao teto, um quarto de isolamento pouco mais tem que uma cama coberta em material descartável e uma cadeira branca a um canto. E se o último elemento parece sugerir que são bem-vindas visitas, desengane-se. Apenas profissionais de saúde estão autorizados a entrar nestas divisões.

O equipamento, que os cobre dos pés à cabeça, torna ainda mais difícil uma interação próxima com o doente. “Enquanto profissional e na minha prática diária foi muito difícil a utilização de equipamentos de proteção individual, que são muito eficazes, mas que de alguma forma são muito penosos para nós. Provocam imenso calor. É muito difícil trabalhar com eles. O facto de não podermos estabelecer a ligação que estamos habituados a estabelecer com o doente é muito complicado”, explica o enfermeiro.

“Mas se não é agradável para nós, para aquelas pessoas que estão ali não é mesmo nada agradável. Nós tentamos minimizar essas situações e proporcionar o máximo de conforto às pessoas”, acrescenta.

A doente Covid-19 com o internamento mais longo, na Madeira, tinha cerca de 60 anos. Teve alta num dos turnos de João. Foi encaminhada para casa.

“Vivemos um misto de emoções. A doente estava um pouco ansiosa, porque como não tinha necessidade de internamento, mas ainda estava positiva, tinha medo de ir para casa. Na altura foi encaminhada para um hotel. Aqui sentia-se protegida porque tinha os profissionais de saúde. Foi um misto de emoções, mas de alguma forma senti-me feliz por ela ir embora. Porque isto, efetivamente, é um hospital e as pessoas só devem usá-lo quando precisam.”

Desde fevereiro, quatro profissionais de saúde da Região Autónoma da Madeira testaram positivo à Covid-19. Nenhum dos casos conhecidos teve origem em contexto laboral. Todos os quatro infetados foram diagnosticados à entrada na RAM. O cumprimento do isolamento à chegada impediu que fossem originadas cadeias de transmissão em meio hospitalar.

O número de infeções na Madeira aumentou significativamente, depois da abertura do aeroporto a 1 de julho

No dia 1 de Outubro foram confirmados os primeiros casos de infeção pelo novo coronavírus em S. Vicente.

Capítulo 3

A VÍTIMA FOI O TURISMO

“Se não morremos da doença, morremos da cura”

Aproxima-se o Natal. As avenidas estão vazias. Um observador atento e paciente talvez consiga ver uma ou outra pessoa que se apressa a fazer compras de última hora. O tempo passa e ao cair da noite já não resta ninguém na rua. As lojas estão fechadas e os restaurantes encerraram mais cedo. É assim que Miguel Freitas descreve o cenário que encontrou no Funchal, durante os “meses de confinamento”.

Em 25 anos de vida, passados neste arquipélago, nunca assistiu a uma coisa assim. “Estranheza é a primeira coisa que me vem à cabeça. Seja no Inverno, seja no Verão, nunca antes tinha acontecido uma paragem total como esta. Inicialmente até foi um cenário um pouco apocalíptico, na medida em que não se via ninguém nas ruas, a não ser mesmo para as necessidades básicas. Por esta altura eu percebi: ok, é uma situação real”, explica o jovem madeirense.

De 13 de março a 1 de julho, o movimento no aeroporto da Madeira esteve condicionado e, durante sete meses, o porto do Funchal não recebeu um único navio de cruzeiro. O encerramento de fronteiras foi uma das estratégias adotadas para combater a pandemia. A melhor cura para a doença revelou-se a maior ameaça para o turismo, que representa 26% do PIB regional e tem um impacto em mais de 20 mil empregos, diretamente dependentes deste setor.

Localizado em S. Vicente, no norte da ilha, o Solar da Bica abriu portas, como alojamento local, em 2000. Quatro anos mais tarde, o espaço inicial com três quartos foi expandido e adaptado a um regime “bed & breakfast”, com 11 quartos e um apartamento.

Miguel é um dos proprietários deste negócio familiar. A 24 de março, o alojamento turístico fechou portas. Nas semanas que se seguiram, até à reabertura, a 1 de julho, as quebras atingiram os 100%. Os cinco elementos que constituem esta equipa viram-se obrigados a recorrer ao “lay-off” simplificado.

“É impensável para qualquer empresa, três meses completamente fechados, com custos, porque existem sempre custos associados, e sem receita nenhuma”, explica Miguel Freitas.

À perda de rendimentos acrescem as despesas na implementação de novas medidas de higiene e segurança sanitária.

“Penso que aumentamos os custos, em comparação com os meses homólogos do ano passado, em cerca de 15% a 20%, só na parte da limpeza. Porque depois tivemos que investir, também, em algum material de EPIs [equipamentos de proteção individual] e fizemos algumas modificações na casa, de forma a garantir o cumprimento dos distanciamentos”, refere o jovem empreendedor.

A Madeira tem cerca de 260 mil habitantes, e perto de 150 mil estão “na cidade do Funchal e arredores”. Destes 150 mil, cerca de 10% ou menos conseguiram escapar ao impacto desta crise e não registaram quebra de rendimentos “ao final do mês”. Sobram 15 mil para distribuir por toda a ilha, com “disponibilidade para fazer férias cá dentro”. A maioria deverá optar por Porto Santo. As contas são de Joel Freitas, pai de Miguel.

“Não sou economista, estou a fazer umas contas de merceeiro, mas acho que o impacto do turismo no PIB regional ultrapassa os 26%. Perante este cenário, e não estou a ser pessimista, mas antes realista, as perspetivas para o negócio são muito baixas”, garante. “ A nível turístico podemos considerar um ano perdido. Esperemos que, em 2021, a retoma seja total e que voltemos todos ao normal”.

Hóspedes alojados na Madeira nos primeiros oito meses de 2019 e 2020
Fonte: Direção Regional de Estatísticas da Madeira

Com ou sem especialização em Economia, a visão de Joel está longe de fugir à realidade. Eduardo Jesus, secretário regional de Turismo e Cultura da Madeira, reconhece o impacto “sem precedentes” das medidas de combate à pandemia no setor do Turismo.

“O impacto é muito grande. Cerca de 1⁄4 daquilo que produzimos vem deste setor. Cada semana que passa, em que o setor está inativo, perdemos de todo o PIB da região mais de 0,5%. Se a paragem for de três meses, temos um impacto direto de 6,6%. É qualquer coisa de extraordinário, que nunca nenhum de nós viveu”, esclarece o membro do executivo madeirense.

A Madeira regista, em média, 1,5 milhões entradas pelo aeroporto e mais 525 mil pelos portos, todos os anos. Desde o início da pandemia, “chegámos a uma fase em que não tínhamos turistas na Madeira”, conta Eduardo Jesus.

“Sem população visitante no território, o impacto deu-se na hotelaria, no alojamento local, na restauração, na animação turística, nas marítimo-turísticas, em todo o setor sem qualquer exceção”, adianta o secretário regional.

A família Freitas não escapou à crise e o conceito de turismo rural, que parece ter triunfado no continente, não beneficiou da mesma compaixão na Madeira. As portas foram reabertas, mas a retoma está longe de atingir os níveis pré-Covid.

“Apesar de muita gente dizer que este tipo de unidades pode ser o menos prejudicado com esta crise, porque as pessoas vão optar por espaços mais pequenos, eu acho que há aqui outro fator que veio desvirtuar o conceito de turismo rural”, revela Joel Freitas.

Estas pequenas coisas, como o conceito de “honesty bar”, em que cada hóspede se pode servir à vontade, por exemplo, e a questão da proximidade com o cliente, desvirtuam completamente o conceito de turismo em espaço rural. Muita coisa mudou. Só o facto de ter de se usar máscara ou viseira é uma barreira”, assegura o empresário.

O Indicador Regional de Atividade Económica (IRAE) da Madeira atingiu no mês de junho o valor mais baixo desde que há registo (-10.1%).

Para fazer face a esta crise, Miguel optou por investir no digital e, nos últimos meses, seguiu uma estratégia de readaptação ao novo cenário.

"Criámos um blogue e temos previsto para novembro ‘pop ups’ de gastronomia com produtos locais, ao fim de semana. A expectativa é que consigamos chegar a mais pessoas, mas não há dinheiro para sermos muito criativos", afirma.

Em julho, dois membros da equipa adotaram o regime de “lay-off” parcial, que foi entretanto alargado a todos os funcionários, mas com as reservas previstas para os próximos meses “o mais certo é que metade regresse ao ‘lay-off’ total”.

“No mês de novembro não ultrapassamos os 5% a 10% de ocupação e em dezembro ainda estamos a zero. A situação está muito complicada. Não temos perspetivas de recuperação, pelo menos até ao final do ano”, adianta o proprietário do Solar da Bica.

No final de abril, foi aprovada, pelo Governo Regional da Madeira, a primeira linha de apoio ao tecido empresarial no valor de 100 milhões de euros. Denominada INVEST RAM COVID-19, a iniciativa “permite que, havendo uma quebra de faturação de pelo menos 40%, e mantendo-se os postos de trabalho, as pessoas que acedem a esta linha recebam um financiamento de 30% da massa salarial até seis meses, um empréstimo que converte em fundo perdido”, explica o secretário regional do Turismo.

“Não podemos admitir que para sair de uma crise desta dimensão vamos substituir receita por empréstimos. Não há empresa que aguente”, acrescenta.

O empresário Joel Freitas garante que, apesar de algum atraso e vários obstáculos burocráticos, todos os funcionários do alojamento têm recebido o complemento do “lay-off”.

“É a única solução que temos para aguentar o barco, até esperamos uma possível retoma no final do ano. Se não, penso que muita gente vai fechar completamente. E nós provavelmente seremos um dos casos”, desabafa.

No início de julho, o aeroporto internacional da Madeira foi reaberto e o Governo regional passou a assegurar o custo dos testes à chegada, para todos os passageiros que não tivessem efetuado um teste à Covid-19 nas 72 horas anteriores ao embarque. A previsão de custo desta medida ultrapassa o meio milhão de euros.

“O medo tomou conta das pessoas. Temos de fazer tudo para restaurar a confiança, para que as pessoas se sintam bem a viajar. Foi também por isso que implementámos esta política dos testes à chegada”, adianta Eduardo Jesus.

Para o empresário, pai de Miguel, a solução passa pela reabertura total da economia. “Se nós não morrermos da doença, vamos morrer da cura. Nós não temos outra hipótese. O turismo movimenta toda a restante economia. Temos de correr esse risco”, apela.

Nenhum dos três, Miguel, Joel ou Eduardo, se atreve a fazer previsões. Todos partilham a ideia de que “se há uma coisa que este tempo nos ensinou é que temos de viver dia após dia e qualquer exercício de previsões é pura especulação”.

O Solar da Bica tem futuro incerto e o turismo da Madeira também. “É óbvio que chegar aos níveis do ano passado ou de 2017, que foi o melhor ano de sempre para o turismo da Madeira, vai levar tempo”, conclui o secretário regional. Quanto tempo ainda ninguém sabe responder.

Entre março e agosto, a Madeira perdeu mais de quatro milhões e meio de dormidas, face ao mesmo período do ano anterior.

As quebras atingiram os 99,9% em Abril.

Desde o início da pandemia, o pico foi atingido em Agosto.

Mas a quebra chega aos 62%, com cerca de 64 mil passageiros. Uma valor distante dos habituais 170 mil.

Capítulo 4

A PRIORIDADE DA ILHA

“Se vierem todos para cá o sossego pode terminar”

Habituados a estarem separados, a distância ganha uma nova dimensão quando a perspetiva de reencontro não tem data marcada. Samuel e Sandra Nóbrega, residentes na freguesia do Caniço, concelho de Santa Cruz, sentiram o impacto da pandemia de forma muito particular.

Os dois filhos do casal, André e Leandro, estudam e trabalham no continente. O primeiro estava a terminar a tese de mestrado, na Universidade Nova de Lisboa, quando o novo coronavírus chegou a Portugal. O segundo trabalha no hospital de São João, no Porto, um dos hospitais que recebeu os primeiros casos confirmados de Covid-19 no país.

A última reunião familiar tinha acontecido na passagem de ano. A 1 de janeiro, já os dois irmãos estavam a caminho do continente. O regresso estava planeado para início de maio, mas a Covid-19 estragou-lhes os planos.

A circulação no aeroporto da Madeira foi condicionada em março e quando em abril os casos começaram a aumentar, no Norte e na região de Lisboa e Vale do Tejo, a família percebeu que o reencontro teria de ser adiado.

“Na altura em que o Governo se preparava para decretar estado de emergência, comecei a ponderar regressar à Madeira e avançar com o meu trabalho longe de Lisboa. Falei com os meus pais e achei que era melhor continuar lá, porque havia o risco de na viagem poder contrair o vírus e passá-lo à minha família”, conta André Nóbrega, o mais novo dos irmãos.

O estudante de Comunicação de Ciência acabou por ficar na capital por mais dois meses. Só a 18 de maio conseguiu regressar ao arquipélago. “Quando eu cheguei à Madeira tive de ficar duas semanas em quarentena num hotel em Machico, perto do aeroporto. Estive lá durante 14 dias e no fim fui testado, para ter a certeza de que podia vir cá para fora”, relembra.

O resultado foi negativo e a 1 de junho voltou a abraçar os pais, desta vez sem medo de um possível contágio. “Saí, encontrei a minha mãe à saída e voltamos a estar juntos”.

“Foi estranho, porque normalmente nós cumprimentavamo-nos com um abraço e um beijo e desta vez não foi possível. Só consegui vê-lo de longe. Sabia que era temporário, mas foi estranho”, desabafa Samuel Nóbrega, ao recordar o momento em que viu o filho chegar.

Samuel Nóbrega viu adiado o reencontro com os dois filhos, devido à pandemia.

A mãe, Sandra, partilha o sentimento. “Foi um pouco complicado, mas tive que superar isso tudo, porque era para o bem deles e para o meu bem, não estarmos juntos”. Leandro regressou dois meses depois do irmão, a 13 de julho,

Apesar das saudades, todos reconhecem que a resposta do Governo regional à pandemia, com medidas como o encerramento parcial do aeroporto e, na altura, a imposição de um período de quarentena à chegada, foram necessárias e úteis para o controlo da propagação do novo vírus na Madeira.

“Não só foi a resposta mais adequada, como a única possível. Se for preciso voltar atrás, temos que voltar. Há que salvaguardar as pessoas. E eu também sei que a proteção das pessoas tem inibido a economia. Não é fácil, mas temos que fazer uma escolha”, defende Samuel.

A “Pérola do Atlântico” enfrenta uma decisão difícil. Por um lado, a sobrevivência do turismo, que é a chave para impedir o colapso da economia local, por outro, a defesa da saúde de todos os residentes no arquipélago. O equilíbrio entre estas duas forças ainda não foi alcançado, mas na ausência de uma solução que agrade a todos, o Governo regional definiu uma prioridade.

“Num caso de saúde pública há uma hierarquização de valores. A liberdade não é um valor absoluto, pode entrar em conflito com outros valores, como a saúde pública e a vida dos nossos concidadãos”, defende o presidente do Governo Regional da Madeira.

Miguel Albuquerque vai mais longe e adianta que “há restrições constitucionais perfeitamente compreensíveis à liberdade de circulação, como a imposição de uma cerca sanitária, para a prevenção da saúde pública. Neste momento, o valor prevalente é a vida dos nossos concidadãos.”

Sandra Nóbrega confessa-se confiante na estratégia adotada pelas autoridades de saúde locais, mas teme que a retoma do turismo represente um risco para os madeirenses. “Sempre me senti segura aqui. Ao pé de nossa casa passa muita camionete e vejo que vão em segurança, não vão cheias. As pessoas que andam de transportes públicos são muito respeitadoras. O turismo vindo para cá é bom para a economia, mas vai ter coisas negativas. Vai ser um pouco complicado. Já fico um pouco receosa”, diz.

Os filhos, Leandro e André, regressaram ao continente nos dias 19 de julho e 7 de setembro. Desta vez, não foram feitos planos para o regresso.

A Madeira foi a primeira região do país a fechar marinas e aeroportos.

Foi, também, a primeira a implementar o uso obrigatório de máscara na rua, a 1 de agosto.

A realização de testes antes do embarque ou à chegada ao arquipélago foi outra das medidas que definiu a estratégia do Governo regional no combate à pandemia.

O impedimento da mobilidade dos profissionais de saúde e a testagem de grupos vulneráveis definiram o resultado positivo da resposta à Covid-19.

Capítulo 5

O SEGREDO PARA O TRIUNFO

“O vírus não escolhe regiões, não escolhe pessoas”

Menos de 15 minutos separam o bairro da Nova Cidade da baía de Câmara de Lobos. Se o percurso for feito de carro, a duração da viagem não ultrapassa os três minutos. Um trajeto curto, a que se habituaram muitos camaralobenses, em tardes de verão tropicais.

Da Taberna dos Lobos ao Farol Verde, é comum, em dias de calor, ver vizinhos partilharem uma nikita, entre a rua Nossa Senhora da Conceição e o largo do Poço.

O ritual tornou ainda mais difícil o confinamento entre os dias 19 de abril e 3 de maio - data em que o Governo Regional decretou cerca sanitária em todo concelho.

“Nós madeirenses sempre fomos pessoas muito livres e sempre conseguimos passear, ver as nossas paisagens maravilhosas. Tivemos 15 dias praticamente presos e condicionados da nossa liberdade. As pessoas ficaram mais assustadas”, conta João Oliveira, jovem estilista residente em Câmara de Lobos.

O bairro da Nova Cidade soma 156 apartamentos onde residem cerca de 600 pessoas. Quando no dia 19 de abril, a cadeia de transmissão ativa com origem num morador ultrapassou os 10 casos com ligação epidemiológica, as autoridades de saúde optaram por implementar a cerca.

“Foi instituída uma cerca sanitária e foram realizados testes em todo o complexo habitacional onde residia a maior parte das pessoas diagnosticadas com Covid-19”, lembra Bruna Gouveia, vice-presidente do Instituto de Administração da Saúde (IASAÚDE) da Região Autónoma da Madeira (RAM).

Para controlar o surto na região e evitar uma situação de transmissão comunitária, foram feitos cerca de 900 testes “de forma sistemática”. A investigação epidemiológica permitiu concluir que menos de 5% dos residentes testados estavam infetados.

Bruna Gouveia, vice-presidente do IASAÚDE é presença habitual nas conferências de imprensa de acompanhamento da epidemia.

“Tivemos 34 casos identificados naquele contexto de risco”, esclarece a especialista.

Foi uma das maiores cadeias de transmissão de que há registo, na Madeira. “Isto foi tudo muito rápido. Foi dormir e acordar com esta notícia”, relembra João, um dos moradores do bairro.

Durante duas semanas o jovem esteve afastado da avó com quem vivia. “A minha avó estava doente e, como precisava de cuidados maiores, durante a cerca sanitária foi viver para casa da minha tia.”

Habituados à companhia um do outro, a distância não foi fácil, mas, como André, Sandra e Samuel Nóbrega, também João reconhece que a separação provisória foi a melhor solução no combate à doença e a única forma de assegurar um reencontro.

É também por isso que o residente do bairro da Nova Cidade reconhece a eficiência das medidas adotadas pelo Governo e aplaude, com maior ânimo, o comportamento de todos os madeirenses. “ Acho que o Governo fez um trabalho esplêndido, mas acima de tudo as pessoas tiveram comportamentos que não é em todo o lado que conseguimos ver”, diz.

As autoridades de saúde regionais apontam a antecipação de um plano de resposta, o impedimento da mobilidade dos profissionais de saúde, a testagem dos grupos mais vulneráveis e a proibição das visitas aos lares como as principais medidas que definem os resultados positivos da região.

Origem da infeção dos casos de Covid-19 na Madeira
Fonte: IASAÚDE

“Os resultados positivos que a Madeira até agora apresenta - porque não se sabe qual será a evolução da pandemia -, resultaram de uma antecipação da Madeira em relação à preparação de um plano de resposta e contingência regional”, defende o secretário regional de Saúde e Proteção Civil, Pedro Miguel Ramos.

Três dias depois de o diretor geral da Organização Mundial de Saúde (OMS) ter declarado uma “pandemia de Covid-19”, a 11 de março, as autoridades de saúde da Madeira apresentaram um primeiro plano de contingência para o combate ao novo coronavírus. Sete dias mais tarde, estava já disponível no site do IASAÚDE uma página com dados de acompanhamento da epidemia no arquipélago.

“Nós começámos a ver que a pandemia atingia todos os continentes no mundo, ao contrário do que disse a Diretora-Geral da Saúde. A dra. Graça Freitas disse que, provavelmente, esta pandemia poderia não chegar a Portugal”, aponta o antigo diretor do serviço de urgência do hospital Dr. Nélio Mendonça.

“Acho que os resultados que estamos a ter agora [no continente] resultam de uma negligência da situação. Nós negligenciamos esta pandemia”, acrescenta.

A segunda vaga de Covid-19 em Portugal já ultrapassou o pico registado em março e abril. Com uma média diária que se aproxima dos 4 quatro mil casos, e previsões que apontam para mais de 8 mil infeções por dia dentro de algumas semanas, o novo coronavírus já vitimou mais de dois mil portugueses.

A Madeira é a única região do país que escapa a esta tragédia e regista apenas uma morte devido à doença - uma idosa de 97 anos, com várias comorbilidades associadas. Pedro Miguel Ramos destaca dois fatores fundamentais que justificam os resultados do arquipélago: “o impedimento da mobilidade dos profissionais de saúde, no sistema público, privado e social e a proibição das visitas aos lares”.

Até julho, quase 10% da população da Madeira tinha sido testada, incluindo grupos vulneráveis, desde a Educação, à Saúde, Proteção Civil e lares, ou estruturas residenciais para idosos.

Evolução de Casos Ativos e Internamentos na Região Autónoma da Madeira
Fonte: IASAÚDE

“É muito importante termos um sistema de ‘contact tracing’ de todos aqueles que visitam a Madeira, no sentido de aferirmos qual é o estado dos nossos visitantes”. Para cumprir este objetivo, a RAM criou a app MadeiraSafe, uma aplicação web que permite ao utilizador trocar pontos por experiências na ilha e às autoridades de saúde regionais acompanhar o estado clínico dos visitantes.

Desde o dia 1 de julho, data em que foi reaberto o aeroporto com obrigatoriedade de teste negativo à Covid-19 para circular no arquipélago, foram contabilizados mais 200 mil registos individuais nesta plataforma online.

Foram, ainda, submetidos e validados pelas autoridades de saúde 92.342 testes de PCR efetuados por viajantes na origem e processados 96.364 testes com colheita efetuada nos aeroportos da Madeira e Porto Santo, até 28 de outubro.

“Nós sabemos que vamos ter mais casos, mas para termos o controlo desses casos e continuarmos a ter as nossas cadeias de transmissão perfeitamente conhecidas temos de testar à chegada”, reitera secretário regional de Saúde e Proteção Civil.

Até ao momento, não há evidência de transmissão comunitária do novo coronavírus na Madeira, ou seja, as autoridades de saúde conseguiram identificar todas as cadeias de transmissão e a origem de todos os casos.

Nos últimos meses, o número de infeções tem registado um aumento significativo na “Pérola do Atlântico”. Cerca de 80% dos casos foram confirmados nos últimos quatro meses, depois da reabertura dos aeroportos, e perto de 85% dos atuais casos ativos foram detetados à chegada. Ao todo, o IASAÚDE regista, apenas, 96 casos de transmissão local.

Os números parecem sossegar os madeirenses e também os turistas que os visitam. “Acho que agora estamos a voltar à normalidade. As pessoas já não têm tanto medo de sair e de viver”, confirma João. “Nós não podemos parar de viver, temos simplesmente de nos adaptar à situação."

A Madeira sobreviveu ao vírus, mas pouco dela ainda se vê. Neste “cantinho do céu”, as multidões de agosto estão longe da vista e o Natal parece nunca mais chegar.

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Reportagem, Vídeo e Fotografia
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Novembro 2020 - Direção de Informação © Renascença