Siga-nos no Whatsapp
A+ / A-

Euro 2024

Entrevista a Katanec: "Esta geração não tem um Zahovic. Precisamos de um milagre"

01 jul, 2024 - 11:30 • Hugo Tavares da Silva

Srečko Katanec foi o primeiro (e único até 2024) a levar a Eslovénia a um Europeu. A conversa com Bola Branca, para além do Portugal-Eslovénia dos 'oitavos', navegou por todo o lado: futebol moderno, Klinsmann, Sampdoria de Boškov e Mancini-Vialli, 'danish dynamite', Maradona e ballet.

A+ / A-

Pouco depois de gravador e telefones perderem o pio, uma incursão à rede social X deu conta de que Julian Nagelsmann (36 anos, 327 dias) bateu contra a Escócia o recorde de juventude de Srečko Katanec (36 anos, 330 dias) no Euro 2020. E este que vos escreve enviou-lhe a imagem. “Eu sei”, respondeu o atual selecionador do Uzbequistão poucos segundos depois. “Não é um grande problema 😂😂😂”.

Este esloveno, nascido em Liubliana há 60 anos, foi o primeiro homem a levar a um Campeonato da Europa a Eslovénia, que agora, na segunda participação, encontra Portugal nos oitavos de final do Euro 2024. Antes disso, foi um futebolista importante da Jugoslávia, participando em dois Jogos Olímpicos, um Mundial e um Europeu, e fez parte 'daquela' Sampdoria.

A conversa teve como ponto de partida o Portugal-Eslovénia desta segunda-feira, em Frankfurt, mas falou-se um pouco de tudo: do futebol pós-covid, de Klinsmann, Mancini e Vialli, daquele 0-5 contra a ‘danish dynamite’, do mago Zahovic e, claro, da seleção portuguesa e de Cristiano Ronaldo.

Onde é que está, mr. Katanec?
Na Croácia, na costa.

Férias?
Booooom, sim... mas é mais porque, com a seleção, só temos jogo a cada dois meses, agora é uma pausa. Jogámos em junho, jogamos em setembro. Então temos, sim, férias, vamos dizer assim. Depois fico só um ou dois dias na Eslovénia, no resto do tempo estarei na Croácia.

Anda a ver o Europeu?
Sim, normal, mas não vejo todos os jogos. Vejo a maioria. A minha opinião é que tem sido assim-assim. Sabes porquê? Porque todas as equipas começaram a seguir o estilo do futebol do Guardiola, que eu não aprecio muito. O Guardiola consegue fazê-lo com os jogadores que ele tem, e talvez outros o consigam, mas o resto imita e começam as jogadas do guarda-redes. Eu não gosto disso.

O futebol está aborrecido?
Sim, sim. Sabes, há muita tática, muita defesa. É normal que uma equipa que não seja tão forte jogue à defesa, sem problema. Eles sabem as suas qualidades e querem contra-atacar, mas agora em quase todas as equipas, quando recuperam a bola, o primeiro toque é para trás. E para trás, e para trás, outra vez e outra vez...

Hmm.
Quando eu fui selecionador da Eslovénia pela primeira vez [teve duas passagens: 1998-2002 e 2013-2017], estávamos atrás mas quando ganhávamos a bola queríamos ir o mais rápido possível para a frente e tentar marcar golos. A minha filosofia é jogar para marcar golos e tentar defender bem para não sofrer. Ou seja, todas as outras coisas, com posse de bola ou sem posse de bola [risos]... a sério, eu fico nervoso quando vejo equipas que chegam à frente, só têm de fazer um cruzamento, mas não, vão de um lado para o outro e depois voltam ao guarda-redes [risos]. Uau.

Outro dia falei com amigos sobre Klinsmann, vocês jogaram juntos em Estugarda. Pergunto-me como seria se ele jogasse nesta Alemanha, chega tão pouca bola ao avançado...
Sim, sim, sim.

Ele matava-os, não?
Sim [risos]! Sim! Eu aceitei a seleção do Uzbequistão porque joguei contra eles dois particulares pelo Iraque, em poucos meses, e fiquei impressionado com a técnica. No primeiro jogo, na primeira parte, nem vimos a bola. Guardaram a bola, tau, tau, tau, tau, mas não marcaram. Na segunda parte, eles caíram fisicamente, jogámos a bola longa e marcámos dois golos, ganhámos. No segundo particular foi igual. Eles queriam desfrutar do futebol, queriam fazer 1.000 passes entre eles.

Hmm, hmm.
Quando cheguei pedia-lhes todos os dias para, quando chegassem à linha, que fizessem o cruzamento, talvez marquemos, talvez encontres o nosso jogador. Tentem marcar... Facilmente começaram a perceber, agora estamos muito bem. Somos duros na Ásia. Espero ter possibilidades para alcançar o Campeonato do Mundo pela primeira vez na história do Uzbequistão. Temos qualidade, temos alguns jovens, muito técnicos e, o que é mais importante, tenho jogadores rápidos. Tenho muitas soluções, posso jogar também em posse de bola, mas normalmente somos compactos e depois, quando ganhamos a bola, tentamos avançar o mais rápido possível e marcar golos. Marcámos alguns golos muito bons. Este é o meu futebol, não gosto de andar às voltas e às voltas.

Percebo.
Talvez porque tenha sido ensinado assim pelo Ivica Osim. Ele ficava louco quando estávamos num lado e íamos para o outro.

Como vê esta Eslovénia?
A Eslovénia é muito pragmática. Sabem a qualidade deles, sabem que não competem contra equipas mais fortes com posse de bola. Não jogam bonito, mas estão compactos. Ficam bem atrás, têm um bom guarda-redes e depois tentem fazer algo no contra-ataque. Esse é o estilo da Eslovénia. Também era assim antigamente.

É melhor do que a sua equipa em 2000?
É muito difícil dizer, porque eu não gosto de comparações. O futebol mudou drasticamente com a covid-19. Isto não é o futebol que era antes, digamos assim. Porquê? Agora fazem-se cinco substituições, é completamente outro futebol. Agora, se estiveres a perder 2-0 ou 3-0, podes meter três avançados na segunda parte. Antes isto era impossível. Tens muitas soluções, podes mudar taticamente de forma drástica.

Certo.
Depois, o VAR. Sabes quantos golos teriam sofrido agora se não houvesse VAR? Viste a Bélgica, o Lukaku já marcou três, mas se não houvesse VAR estes golos teriam sido validados e ninguém diria nada. Quando vês na televisão, pareciam golos claros, mas agora falamos de milímetros.

É uma loucura.
Não! É bom, mas no passado teria sido 3-1 para a Bélgica. Digo-te uma coisa: é muito difícil dizer qual é a melhor, mas não sei como é esta geração fisicamente. Leio nos jornais que agora o jogo é muito rápido, que o futebol é o mais rápido de sempre. Não, não, não acredito nisso. Primeiro, na geração do Zlatko Zahovic ninguém recebia informações com a quantidade de quilómetros que corria. Como é que podem dizer que geração corre mais ou menos? Não faz sentido.

Hmm, hmm.
Eu sei o que os jogadores fizeram antes do Euro 2000 porque eu corria com eles e se eu te contasse dirias que eu sou louco. Não te vou dizer porque levaria muito tempo, mas sei como estavam preparados fisicamente. Não acredito que esta geração esteja tão bem preparada fisicamente como essa de 2000. O que te vou dizer é: esta geração não tem um jogador como Zahovic.

Outro dia vi aquele 3-3 contra a Jugoslávia. Ele era especial, certo?
Sim, sim, o Zlatko era especial, muito muito dotado tecnicamente, era futebol de alto nível. E era canhoto, eles têm algo especial. Fazem coisas diferentes. Ele tinha ‘feeling’ para marcar golo e participava no jogo. Ele queria jogar, via bem o jogo. O Zlatko era um jogador de topo, nesta geração não há. O Šeško é jovem e também é mais alto, tecnicamente não é do nível do Zlatko Zahovic, e provavelmente vai fazer mais golos pela seleção, mas é mais difícil ele jogar para a equipa. Ele apenas finaliza. Quando encontra o espaço, finaliza e nada mais. Isto é importante, mas...

...
Sabes, é como Ronaldo e Messi. O Messi é mais técnico, participa mais no jogo, faz um-dois, o Ronaldo é um 'killer', quer estar lá, quer a bola para fazer os golos.

O que acha de Cristiano?
Eu tinha a opinião de que ele estava acabado quando estava na Juventus, mas, honestamente, quando vi a atitude dele no Al Nassr, na Arábia Saudita, devo dizer apenas “chapeau”, porque, com todos os golos que marcou e com todo o dinheiro que tem, ainda tem aquilo dentro dele.

A mentalidade.
A mentalidade que ainda tem é incrível com esta idade. Fica zangado quando não recebe a bola, fica zangado se não marca, fica zangado se a equipa perde. É uma boa mentalidade. Não há outro jogador como ele. Eu vejo-o todas as semanas na liga saudita porque também não tenho mais nada para fazer, mas muitos jogadores da Europa que vão para lá caem. Eles não estão ao mesmo nível, em termos de preparação física e mentalmente. Olha o Brozovic, o Milinkovic... Todos caíram. Mas o Cristiano, em todos os jogos, quer marcar golos. É bom ter um jogador assim. Ainda tem fome para marcar.

O que pensa desta seleção portuguesa?
No papel, Portugal é 100% melhor equipa, mais forte. Quando a Eslovénia jogou o amigável contra eles, e acabei de ler isto, sei que ele [o selecionador português] tirou oito titulares. Tem tantos jogadores que podem jogar. Vai ser a mesma história: a posse de bola será para Portugal, a qualidade está do lado deles, mas, sabes, até Portugal aprendeu o que pode ser um jogo. Eles perderam contra a Sérvia na qualificação [para o Mundial 2022]. No papel, vou dizer-te que está tudo do lado de Portugal. Tudo.

Mas o que acha que vai acontecer? Vai dar Eslovénia?
[risos] Nunca se sabe, nunca se sabe. Sou esloveno, quero que a Eslovénia avance, mas precisamos de um milagre, vamos dizer assim. Portugal é mais forte. A Eslovénia já fez o melhor que alguma vez havia feito, passou a fase de grupos. Eles dizem que vão desfrutar, mas não é sempre assim. Quando jogas contra equipas melhores, tens de estar muito, muito focado, porque com um pequeno erro podes sofrer um golo. Portugal tem tantos jogadores de qualidade que não podes conceder nada.

Há pouco falámos do Jugoslávia-Eslovénia de 2000. Foi estranho jogar contra a Jugoslávia? Foi nove anos depois da independência.
Não, não, para mim não, foi bom. O [Dragan] ‘Piksi' Stojković estava no banco [do outro lado], foi meu colega na seleção nacional. O treinador da Sérvia [Vujadin Boškov] era como um pai para mim. Se o Mihajlovic não tivesse ido para a rua, teríamos ganho claramente. Foi uma questão de mentalidade, porque, quando eles viram o vermelho, nunca tínhamos vivido algo assim, então os meus jogadores pararam de jogar. Essa Sérvia era de alto nível, não se pode comparar connosco.

Certo.
Dois minutos depois do vermelho e de ver a atitude dos meus jogadores, eu disse ao meu adjunto: “F%$#&! Vamos sofrer golos, em cinco minutos estamos na m$%&”. E foi assim mesmo. Isto é verdade, tu sentes. Se eu tivesse as cinco substituições... podias fazer muito, mas na altura podias fazer duas ou três, mas deixavas uma até ao fim caso alguma coisa acontesse. A qualidade que os outros tinham, uau. É como hoje, se deixares os portugueses em 1x1 estás morto. Eles são tão rápidos e bons tecnicamente.

...
Se não os deixas viver isso no campo, não podes explicar aos jogadores. É impossível. Tens de chegar a este nível e, infelizmente, viver situações daquelas e depois saberás como deveria ser a tua atitude quando os outros tiverem menos um jogador. Tem de ser a mesma. Tens de estar focado ou ainda mais. O futebol castiga-te. No final, eu estava feliz pelo meu ‘pai’ treinador [Boškov]. Eu vivi com ele na mesma casa durante três anos, quando estava na Sampdoria.

Já que falamos de Sampdoria, como era Eriksson?
Eu estava lesionado, infelizmente, quando o Eriksson chegou. Fui para lá quando estava o Boškov e Boškov jogava em 3-5-2, homem a homem e, mais tarde contaram-me, disseram ao Eriksson que "o Katanec só sabia jogar ao estilo Boškov, mas sabes que ele é bom, não o deixes ir embora, fica com ele mais um ano".

OK.
Sabes, para jogar livre, na zona, bom, eu era bom, mas eu sofria quando tinha de jogar um contra um, eu não era muito rápido, corria muito, mas não era rápido. Se tivesse de jogar contra alguém mais rápido e se ninguém ajudasse, eu estaria em problemas [risos]. Eu desfrutava do futebol, eu ia a todo o lado no campo, ia pegar na bola, ia ajudar os colegas, eu gostava de estar em todo o lado, eu estava sempre na grande área contrária... eles lixavam-me a cabeça, o Vialli e o Mancini. Diziam sempre: “Porque vens para aqui?! Tiras-nos o espaço”. Eu dizia que queria marcar o golo.

Eles queriam a comida só para eles.
Só para eles, sim sim. Mas também era verdade o que diziam, muitas vezes eu ia para lá e levava um adversário e não havia espaço, era verdade. Depois de 10 dias, parti o meu menisco e, em oito meses, tive cinco cirurgias e praticamente o futebol a sério acabou ali. Ainda joguei quando recuperei, oito meses depois. Jogámos contra a Roma e depois em casa contra o Milan, marquei o golo. O Gullit cruzou. Eles deram-me mais um ano de contrato, mas o acordo era: podemos autorizar quatro estrangeiros no plantel, mas o quarto vai para a bancada. Eu aceitei, muito obrigado, não joguei muito. Havia Gullit, Platt e Jugovic. Decidi parar com 31 anos.

Enquanto falava de velocidade e problemas, como defesa, lembrei-me do jogo contra a Dinamarca em 1984...
Ohh... [risos]

Havia muita velocidade e problemas, não?
Yeah, yeah, yeah.

A ‘danish dynamite'.
Yeah, yeah, yeah. No Euro 84.

Cinco-zero.
Levámos cinco golos, sim [risos]. Foi uma loucura, mas nessa altura eu tinha um problema nas costas, joguei com injeções. Era jovem. Mas, de qualquer forma, se eu estivesse bem, não fui só eu, mas a equipa... Eles eram mais fortes, estavam melhor preparados.

A Jugoslavia falhou muitos golos. Foi um 5-0 mentiroso.
Sim, o futebol! Quem sabe, quem sabe, nunca sabes porque o futebol te castiga às vezes.

Como foi crescer em Liubliana?
Ó, uau, ó, uau. Nada tem a ver com esta realidade de agora. Mudou. No meu tempo, os treinadores de futebol vinham na maioria da Sérvia. Imagina, não havia telemóveis, não havia computador, não havia nada. Era um mundo completamente diferente. Para mim, foi incrível.

Muito futebol nas ruas.
Sim! Estávamos na escola já a preparar três equipas, vamos ali, será num espaço pequeno na rua, metemos as nossas mochilas para fazer de balizas e jogamos logo. Estávamos na rua porque não havia mais nada para fazer. Não vou mudar a forma como o mundo funciona agora, é completamente diferente.

Quem era o seu herói no futebol?
Tem de ser da Jugoslávia, porque na altura não havia televisão. O meu adjunto na seleção nacional, Danilo Popivoda. Ele era o meu herói porque, quando eu era miúdo, ele jogava na Alemanha, no Eintracht Braunschweig. Era mesmo uma lenda para nós, jogava no Olimpija, ele entrava para o aquecimento 20 minutos antes dos outros jogadores e começava a correr acima e abaixo, acima e abaixo, acima e abaixo. Eu perguntei-lhe porque fazia aquilo, ele disse-me que tinha de suar, que estava nervoso. No passado, na Jugoslávia, eles matavam-nos fisicamente. É por isso que disse o que disse sobre a comparação das gerações, é uma grande diferença.

Certo.
Aos meus olhos, era como um deus, não só por isto. Quando eu tinha 15 anos, fomos até Braunschweig para um torneio juvenil. Depois da competição, deram uma festa, com 4.000 ou 5.000 pessoas. Quando veio o Popivoda, uau, começaram todos “Popi, Popi, Popi, Popi”. Para nós foi: “O que c$”#% se passa?”. Era uma lenda, um jogador de topo. E eu queria fazer o que ele fez, era o meu objetivo ser como os mais velhos.

Estava a ver há pouco o Estugarda-Napoli. Jogou umas vezes contra Maradona. Ele não era mau, hein?
[risos] Quando joguei contra ele, estava acabado. Não era o Maradona, porque ele tinha um problema nas costas. Quando fomos campeões, na Sampdoria, jogámos em Nápoles e, antes do jogo, escreveram nos jornais que Maradona se calhar não ia jogar. Rezámos para que ele jogasse. Isto é verdade, han!?

Porquê?
Tu conheces o Maradona, mas sabes quando ele está em baixo e não está em condições para render como fazia. Ele estava metade do jogador que era, o que fazia mossa à equipa. É incrível o jogador que era. A última coisa que te digo é: não faz sentido comparar gerações. Vê quantos pontapés ele recebia, faltas brutais, este futebol de agora é ballet. A sério. Quando vi um vídeo dele, no primeiro toque na bola veio um e 'bang', mais outro e 'bang'. Agora, alguém recebe um toque pequeno e vai para o chão, e fica lá. Mudou muito.

...
Estás-te a rir porque sabes que é assim!

Comentários
Tem 1500 caracteres disponíveis
Todos os campos são de preenchimento obrigatório.

Termos e Condições Todos os comentários são mediados, pelo que a sua publicação pode demorar algum tempo. Os comentários enviados devem cumprir os critérios de publicação estabelecidos pela direcção de Informação da Renascença: não violar os princípios fundamentais dos Direitos do Homem; não ofender o bom nome de terceiros; não conter acusações sobre a vida privada de terceiros; não conter linguagem imprópria. Os comentários que desrespeitarem estes pontos não serão publicados.

Destaques V+