02 out, 2024
A Inglaterra foi o primeiro país do mundo a consagrar as liberdades de pensamento, de expressão e de imprensa. John Milton defendeu-as com vigor na sua «Areopagitica», em 1644, meio século antes de a doutrinação liberal de John Locke forçar a revogação, em 1695, do «Licensing Act», que sujeitava todas as publicações ao controlo da censura prévia. Esse pioneirismo permitiu aos ingleses um rápido desenvolvimento da imprensa (o primeiro jornal diário do mundo foi o «Daily Currant», de 1703), em estreita ligação com uma sociedade criativa e crítica, que exigia dos poderes políticos transparência e publicidade. Em nenhum outro parlamento do mundo foram e são os debates tão vivos, participados e ricos como em Westminster, guardiã das mais nobres tradições da “liberty under the law” e do respeito pelo pensamento de cada um.
Saltemos para o presente. Nos finais de 2022, uma cidadã inglesa, Isabel Vaughan-Spruce, foi detida duas vezes pela polícia de Birmingham. Na prisão, foi vítima de intimidação física e a justiça fixou-lhe condições de fiança onerosas. Das duas vezes foi libertada, e os seus advogados decidiram processar a polícia das West Midlands, que teve, agora, de a indemnizar por coação e privação injustificada de liberdade. As detenções foram feitas ao abrigo da Lei da Ordem Pública, mas numa interpretação muito rigorista, acusando Isabel Spruce de ter cometido um “crime mental” ou “delito de pensamento”. E qual era, afinal, o “crime”? Estar, das duas vezes, a rezar em silêncio, na via pública, diante de uma Clínica de Abortos de Birmingham. A britânica estava sozinha, não tinha megafone, nem cartazes, não fez barulho, nem se dirigiu a ninguém que ali passava para entrar ou sair da clínica. Simplesmente, sendo convictamente cristã e pró-vida, milita no movimento ou campanha «40 Dias pela Vida», que ali, em Birmingham, decidira colocar alguém a rezar, em turnos de oito horas diárias durante 40 dias. Repita-se: não era um protesto coletivo e ruidoso; era uma única pessoa, de pé, imóvel, encostada a uma sebe, sem que a sua postura física traísse que estava a rezar interiormente. Aquando da primeira detenção, Isabel foi identificada e obrigada a acompanhar os agentes policiais. Da segunda vez, os polícias voltaram a prendê-la, declarando então que o faziam porque ela estava a rezar, “o que constitui um delito”, nas sábias e muito tolerantes palavras do jovem agente encarregado de assegurar a lei e a ordem assim desrespeitadas….
A Inglaterra é também o país onde George Orwell deu à estampa a famosa distopia literária «1984». Nessa fábula de denúncia do totalitarismo comunista, o Grande Irmão vigiava os atos dos seus concidadãos zombies, policiando o pensamento e comprimindo-o com a novilíngua que Winston Smith se encarregava, roboticamente, de praticar. E a subversão libertária por este tentada acabou mal para ele e para tantos e tantos outros nas vidas reais de cinzentos mundos ditatoriais.
Isabel Vaughan-Spruce foi presa porque estava a rezar - o que, para lá de um gesto de fé, é um ato de liberdade de pensamento e de espírito. Não deve e não pode ser policiado num Estado de direito liberal. A Clínica de Abortos de Birmingham ou os zelotes da autoridade não gostam do ato da britânica; mas é, ou deveria ser, absolutamente sagrado o seu direito a fazê-lo - para mais em silêncio individual. A história está cheia de exemplos de regimes ditatoriais que reprimiram a liberdade de expressão; e tem também exemplos de totalitarismos que comprimiram a liberdade de expressão e também a de pensamento. Numa altura em que o movimento «40 Dias pela Vida» anuncia novos turnos de oração, a partir do início deste mês de outubro, vale a pena lembrar esta história, de perseguição a uma cristã no país da liberdade.