"Madre Teresa teria adorado a chamada de atenção do Papa para os pobres"
03-05-2016 - 19:09
 • Filipe d'Avillez

"O Papa quer que Madre Teresa seja a padroeira do Jubileu”, diz à Renascença o postulador da causa de canonização da missionária. Uma mulher com sentido de humor, mas que viveu com grande sofrimento espiritual.

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A 4 de Setembro, 19 anos após a data da sua morte, Madre Teresa de Calcutá será canonizada numa cerimónia em Roma.

Uma das grandes figuras da Igreja Católica em todo o século XX, a mulher que se dedicou a servir os mais pobres dos pobres e os moribundos tinha uma relação muito especial com a mensagem de Fátima, segundo o postulador da sua causa de canonização, o padre Brian Kolodiejchuk.

Em Portugal para dar uma conferência sobre a Madre Teresa, no Estoril, Brian Kolodiejchuk falou com a Renascença a quem descreveu uma mulher com excelente sentido de humor, mas que passou por momentos de grande sofrimento espiritual.

A Madre Teresa vai ser canonizada em Roma. Não faria mais sentido em Calcutá?

Compreende-se que os bispos tenham pedido para ser na Índia, teria sido um evento enorme para eles, mas penso que o Papa escolheu Roma porque a canonização é o apresentar da pessoa a toda a Igreja. Daí que faça mais sentido ser em Roma

Acho ainda que o Papa queria que fosse um dos principais eventos do Jubileu [da Misericórdia, que começou em Dezembro de 2015]. Já a pensar na sua possível canonização agendou-se o jubileu dos voluntários e dos obreiros da misericórdia para esse fim-de-semana. Penso que a ideia é que, de certa forma, a Madre Teresa seja a padroeira do jubileu.

Havia quem a criticasse. Christopher Hitchens era dos mais hostis, acusando-a de glorificar o sofrimento e de ter homenageado o ditador albanês Enver Hoxha. Mas entre os pobres que ela servia também havia críticos?

Entre os pobres não. Quando estávamos a preparar a sua causa vimos o filme que o Hitchens [o documentário "Hell's Angel", 1994] fez sobre ela, porque eu queria conhecer as críticas. E na verdade não havia nada ali, desde que se conhecessem bem os factos. Por exemplo, há uma passagem que a mostra em Tirana junto ao túmulo do ditador Enver Hoxha, dizendo que ela o estava a homenagear. Mas a verdade é que ela tinha pedido para ir à campa da mãe e da irmã, mas levaram-na lá primeiro. Queriam que ela deixasse lá flores, mas recusou e quando conheceu a mulher de Hoxha disse que tinha rezado por ele. Um albanês que esteve envolvido no processo explicou-nos que toda a gente na Albânia sabia que esse era o protocolo.

Depois há diferenças de perspectiva. O Hitchens esteve em Calcutá e a madre mostrou-lhe o trabalho que fazia. Ele diz que estava a achar tudo bem até que ela lhe mostrou um orfanato e disse que elas combatiam o aborto através da adopção. Ele pode não gostar, mas aí estamos perante uma diferença de opinião.

Ela trabalhava numa sociedade de maioria hindu, com uma grande minoria muçulmana e muito poucos cristãos. Ainda por cima era albanesa, de um povo de maioria islâmica. Qual era a sua posição em relação ao diálogo inter-religioso?

Ela tinha um grande respeito pelas outras religiões. Não tinha o objectivo explícito de converter ninguém e muitos dos seus colaboradores em Calcutá eram hindus. A madre dizia que não lhe cabia a ela converter. Aos seus colaboradores dizia: “Espero que te tornes um melhor hindu, um melhor muçulmano ou um melhor cristão”. Alguns dos médicos eram hindus e ela nunca os convidou a converter-se. Dizia que não podia, que Deus é que tinha de agir neles.

Francisco já criticou o proselitismo. Pode-se dizer que ela é um bom exemplo daquilo que o Papa recomenda agora?

Sim. E é verdade que o Papa diz isso agora, mas era também o que a Igreja dizia nessa altura. Deve-se servir sem ter em conta a fé ou o historial de quem quer que seja. Eram irmãos e irmãs. A nossa perspectiva é ver Jesus em toda a gente, mas nunca fazer acepção de pessoas consoante a sua religião.

A Madre Teresa tinha uma relação especial com Fátima?

Sim. Nos anos 40, quando era uma irmã de Loreto, promovia-se muito a mensagem de Fátima e as irmãs tinham um santuário de Nossa Senhora de Fátima, organizavam procissões.

A nossa padroeira é o Imaculado Coração de Maria, rezamos diariamente o terço. Nas visões que ela teve, interiormente, Nossa Senhora dizia-lhe para rezar o terço, que tudo estaria bem. Em 1947, quando estava à espera de autorização para começar a trabalhar em Calcutá, numa das suas cartas falou de Nossa Senhora de Fátima e disse que ia “fazer o seu trabalho nas favelas”.

Contou que uma vez ela estava a atravessar a Rússia de comboio e virou a imagem de Nossa Senhora para a janela, dizendo que tinha de poder ver, porque há muito tempo que não estava ali. Associamos muitas coisas à Madre Teresa, mas sentido de humor não costuma ser uma delas…

Tinha um óptimo sentido de humor! Não era grande contadora de anedotas, mas sabia contar histórias divertidas. Se estivéssemos na casa mãe, durante o recreio, ouvíamos umas 300 irmãs a rir e era um momento de grande alegria. Ela era capaz de se rir às gargalhadas. Sim, talvez em público não desse ideia disso, mas quando se estava com ela a sós, ou num pequeno grupo, era muito livre e adorava contar histórias divertidas.

Ao mesmo tempo viveu aquilo a que se chama uma “noite escura da alma”. É algo difícil de compreender… Como se explica?

Era uma forma paradoxal de viver a sua união com Jesus sem experimentar a consolação dessa união. Era uma mulher apaixonada por Jesus, considerava que Jesus era o seu esposo, e depois parece que é rejeitada, que Jesus não a ama. Parece que ela não é capaz de o amar tanto quanto gostaria. É um aspecto de estar de tal forma apaixonada por Jesus que Ele é capaz de partilhar com ela os seus sofrimentos mais profundos, o seu sentimento de abandono.

Estamos a falar ao nível dos sentimentos, porque ao mesmo tempo ela dizia que sabia que estava unida de mente e de coração. Mas mesmo sabendo-o, e acreditando, isso não torna a experiência mais fácil. Depois veio a descobrir que a maior pobreza era esta pobreza de não se amado, de não ser querido, de não ter ninguém que cuide de nós. E isso pode acontecer a ricos, a pessoas de qualquer classe social. E ela estava a viver isso mesmo, essa sensação de não ser amada, de não ser querida.

Nós vivemos de forma pobre e simples, para nos identificarmos com os materialmente pobres e agora descobrimos que ela estava a viver esta pobreza espiritual, identificando-se com todos os que estavam nessa situação. Ela não se encontrava a pairar nas nuvens místicas e a experimentar uma grande consolação, pelo contrário. Conseguia identificar-se verdadeiramente com aqueles que sofriam de forma espiritual também.

Se ela fosse santa padroeira de alguma coisa, o que poderia ser?

Ela recebia muitas visitas de casais que tinham dificuldade em ter filhos. Quando isso acontecia ela oferecia-lhes uma medalhinha milagrosa e ensinava-lhes uma oração: “Maria, mãe de Jesus, dá-nos um filho”. Às vezes dizia mesmo “vocês vão ter um filho”. E quase sempre, um ano mais tarde, as pessoas voltavam para mostrar os seus bebés.

Ou então podia ser dos viajantes, talvez a par de João Paulo II, porque ambos viajavam muito.

Ela e João Paulo II tinham uma ligação muito próxima, não tinham?

Vê-se isso nas fotografias deles juntos. Ele era bastante mais alto que ela e por isso às vezes vê-se ele a beijar-lhe a testa e ela mantinha as mãos unidas, porque na cultura indiana os homens e as mulheres não se tocavam em público.

Esta imagem apresentada pelo Papa Francisco da Igreja como um hospital de campanha parece estar muito em linha com a missão dela…

Ah sim! Muito mesmo.

O que é que ela teria dito sobre este pontificado?

Penso que ela teria adorado o facto de ele chamar atenção para os pobres, nas periferias, porque é aí que as Missionárias da Caridade já se encontram, com os mais pobres dos pobres.