Espólio de Igrejas Caeiro vendido ao desbarato em feiras e leilões
02-03-2018 - 08:00
 • João Cunha

Legado histórico de Igrejas Caeiro em risco. Fundação Marquês de Pombal, herdeira de espólio e património, vai transformar residência de Igrejas Caeiro em alojamento local e não em Casa/Museu, como previsto no testamento. Algum do espólio apareceu à venda em feiras de antiguidades e leiloeiras.

Foi um dos nomes mais marcantes da rádio em Portugal. Fez teatro, cinema, televisão e também foi político. A investigação da Renascença descobriu que o testamento de Igrejas Caeiro não está a ser respeitado e o património que deixou está em risco.

Sem herdeiros legitimários, por não ter descendentes, Igrejas Caeiro manifestou ainda em vida a sua vontade em testamento: 15 mil euros para a Casa do Artista, outros 15 mil euros para a Voz do Operário e que os seus afilhados, pessoas próximas e até a governanta recebessem apartamentos em Lisboa, dos quais era proprietário.

Casas que deixou também à Fundação Sarah Beirão/António Costa Carvalho, em Tábua, que foi presidida por Igrejas Caeiro durante décadas, uma instituição particular de solidariedade social que foi a primeira Casa do Artista do país, onde estiveram nos últimos anos de vida escritores, artistas, jornalistas e intelectuais ligados à comunicação.

Uma fundação que também recebeu o dinheiro das contas bancárias e aplicações de Igrejas Caeiro. Por alto, 350 mil euros, que vão ser investidos na recuperação de um solar onde Igrejas Caeiro será homenageado.

Herdeira universal do remanescente foi a Fundação Marquês de Pombal, presidida por Isaltino Morais, autarca de Oeiras.

Ficou com um cofre de um banco em Paço de Arcos, cujo conteúdo se desconhece, com todo o espólio de Igrejas Caeiro, a casa em Caxias onde viveu - projetada pelo arquiteto Keil do Amaral e avaliada em quase 500 mil euros - e um terreno anexo à casa, entretanto vendido por 370 mil euros.

Dinheiro que em parte, a fundação investiu na recuperação da casa - não para a transformar numa Casa-Museu, como Igrejas Caeiro manifestou, em testamento, que previa também a instalação de uma biblioteca, salas para atividades artísticas, lúdicas e didáticas, biblioteca infantil, ludoteca e parque infantil.

A casa está a ser recuperada para nela instalar um projeto de alojamento local, segundo Alfredo Romano de Castro, administrador da fundação, para assim se conseguir a rentabilidade necessária para manter exposta a vida e obra de Igrejas Caeiro.

"É preciso dinheiro para fazer essas coisas. A Fundação sem dinheiro não consegue fazer nada. E portanto, teve que arranjar dinheiro para primeiro, preservar o que era património construído e do Igrejas Caeiro, e num segundo momento, garantir o que está no testamento: perceber que também pode ser uma Casa/Museu, mas acessoriamente, tem que ter alguma coisa que rentabilize a casa. Isso não está no testamento. Em boa verdade não está".

E quanto à vontade expressa por Igrejas Caeiro? A Casa/Museu? "Vamos ter, vamos reproduzir o que havia no tempo em que ele fazia rádio a partir da casa".

Quanto ao resto, previsto no testamento, "tudo isso poderá vir a ser considerado, quando chegarmos a acordo com a Câmara de Oeiras a cedência de um terreno que está aqui perto, para transformar este espaço num jardim público. Podemos ter aqui qualquer coisa. Não especificamente uma ludoteca, mas um parque que possa não desvirtuar tudo o que estava escrito, mas considerar algumas das premissas que estavam instituídas", garante Alfredo Romano de Castro.

Outra vontade de Igrejas Caeiro era que fosse criado e concedido um prémio no mundo do teatro. Uma distinção para o intérprete revelação do ano, que teria o nome de Igrejas Caeiro e da sua mulher, a atriz Irene Velez. Algo que nunca foi sequer criado. Assim com o também nunca avançou a classificação da casa como "edifício de interesse municipal".

Falta de verbas, diz Alfredo Romano de Castro, assegurando que o património com que a Fundação Marquês de Pombal ficou não é rentável. Ao contrário daquele atribuído a outros herdeiros.

"Nós ficámos com património valiosíssimo e a fundação também ficou com património valioso, mas com rentabilidade. Porque são apartamentos e prédios. Nós ficámos com este património, que tem custos e não tem rendimento. Tínhamos de criar uma forma criativa de rentabilizar aquilo com que ficámos".

Percebendo que não teria capacidade financeira para cumprir a vontade de Igrejas Caeiro, a fundação não podia ter optado por recusar a herança? Podia, "mas na altura, a administração da Fundação não teve essa postura. Mas se não fosse para a fundação, seria para quem?"

Para quem pudesse cumprir a vontade de Igrejas Caeiro. O espólio da casa já está inventariado.

"Temos um contentor na obra onde está tudo guardado. Quando tudo estiver concluído, será reposto. Quase todas as coisas estão inventariadas", para se saber qual o espólio. "E que depois será, enfim, reposto aqui ou, enfim, se entendermos que não será reposto, temos de pensar onde é que o podemos fazer".

Um dia se verá.

"E o que é que terá sido feito das imensas obras de arte que aquela casa tinha?" A pergunta é feita por Virgílio Marques.

As obras de arte, de pintores como Artur Bual e Júlio Pomar, e esculturas de Rosa Ramalho, entre outros, estão à guarda da fundação, e regressam à casa depois de concluídas as obras.

Virgílio foi amigo próximo da atriz Elvira Velez, sogra de Igrejas Caeiro e que também viveu na casa de Caxias.

"Desde os 14 aos 30 anos fui amigo da Elvira Velez, e ela tinha uma grande ternura por mim e eu por ela. Depois conheci o Igrejas Caeiro, trabalhei no Maria Matos... Foi uma pessoa que considerei muito, ele respeitava muito toda a gente. Era muito honesto e muito sério. E portanto, isto choca-me tudo muito, não é? Ver a forma como as coisas que ele deixou e a vontade que ele teve estarem, a ser maltratadas. Não está a ser cumprida a vontade dele. Isso choca-me terrivelmente"

Também ficou em choque quando, há uns meses, encontrou numa feira de velharias, umas peças e artigos que lhe pareceram familiares. Mais em choque ficou quando lhe disseram onde as tinham obtido.

"Eu peguei nas peças, e um dos fulanos que as vendia disse-me que aquilo era do Igrejas Caeiro, e que as tinha comprado à Fundação Marquês de Pombal. Fiquei espantado! Havia serviços da SECLA, várias peças dos Companheiros da Alegria, canecas com a fotografia do Igrejas Caeiro e da Irene Velez, revistas com capas onde apareciam os dois. Estava lá tudo à venda".

A Fundação nega, mas não consegue explicar como apareceram estas peças à venda.

"Isso é falso, porque a Fundação não vendeu nada", garante Alfredo Romano de Castro. "Eu não lhe consigo dizer como é que as coisas foram vendidas numa feira de antiguidades, mas consigo dizer-lhe que a fundação não alienou o que quer que seja que estava na casa do Igrejas Caeiro. Isso posso-lhe dizer".

Outros bens de Igrejas Caeiro e da família chegaram mesmo a ser vendidos por algumas leiloeiras. Desde troféus de teatro, atribuídos a Elvira Velez e ao teatro Maria Matos, que Igrejas Caeiro fundou, até quadros em que é o próprio Igrejas Caeiro a ser retratado, ao lado da mulher.

A Renascença sabe que o testamenteiro, a pessoa que o testador escolhe em testamento para fazer cumprir suas disposições de última vontade, foi Ricardo Luís Leite Pinto. Um professor universitário de Direito Constitucional passou o "cargo" à própria Fundação Marquês de Pombal.

Quanto ao cofre n.º 6 do antigo Banco Espírito Santo, ninguém sabe – a não ser o banco, que tem ata do levantamento do seu conteúdo – o que nele estava guardado.