Terrorismo. O mundo não avaliou bem o "mau vento" que soprou de África
06-11-2020 - 06:30
 • Ângela Roque

Missionário nigeriano em Portugal lamenta que o Ocidente não tenha dado atenção aos atentados no continente africano e só reaja quando acontecem na Europa ou nos EUA. Em entrevista à Renascença, Simon Ayogu diz que o terrorismo é “ideológico” e considera um erro colá-lo ao Islão. “Estamos a falar de crime, e um bom muçulmano não é um criminoso.”

Simon Ayogu é missionário espiritano. Natural da Nigéria, está em Portugal desde 2006, atualmente ao serviço na arquidiocese de Braga, mas não esquece as suas raízes.

Em entrevista à Renascença, Ayogu conta que está sempre com “o coração nas mãos” por causa da violência no seu país natal. Esta experiência leva.o a acompanhar com preocupação a ameaça terrorista que alastra na Europa e que, em sua opinião, resulta de nunca se ter olhado devidamente para o fenómeno que crescia em África.

“É preocupante. Quando isto começou na Nigéria, e noutros países africanos, o mundo, se calhar, não viu bem que isto é um mau vento, que não faz bem a ninguém”, afirma o padre Simon, que receia que se esteja a acordar demasiado tarde para a realidade e, mesmo assim, com dois pesos e duas medidas, quando chega a hora de reagir. “Na Europa, ou na América, quando acontece um atentado, toda a gente se põe de pé e condena, mas quando é em África, quando é na Nigéria, o mundo não fala com tanta insistência nem repúdio”, sublinha.

Na Nigéria, tem sido sobretudo o grupo radical islâmico Boko Haram a espalhar o terror, mas para o padre Simon é um erro atribuir ao Islão atentados como os dos últimos dias na Europa. “Conheço muitos muçulmanos pacíficos que não concordam com esta barbaridade. Porque estamos a falar de crime, e um bom muçulmano não é um criminoso! Mas, quando alguém usa a ‘farda de’, quem vê de longe faz logo uma roupagem para uma religião inteira, e esta roupagem a meu ver está errada”, refere.

“Na Europa, ou na América, quando acontece um atentado, toda a gente se põe de pé e condena, mas quando é em África, quando é na Nigéria, o mundo não fala com tanta insistência nem repúdio”

Para Simon Ayougu o terrorismo “é uma corrente, é uma ideologia, e podemos chegar a um ponto em que se torna incontrolável”, lamenta, embora acredite que ainda pode ser travada. “Se calhar ainda vamos a tempo, para não ser pessimista... Agora, se não se fizer nada, o pior ainda está para vir”. E acrescenta: “o que podemos e devemos fazer é tentar ver onde nasce esta ideologia, esta tendência de usar uma religião como pretexto para fazer e praticar o mal, e tentar controlar pela raiz”.

Na Nigéria “o amanhã é uma incógnita”

O padre Simon não esconde que é difícil estar longe do seu país natal. “Tenho lá a minha família toda. Vivo com o coração nas mãos, porque nunca se sabe o que virá amanhã, tem sido uma constante de surpresas e surpresas”, diz.

A par da ameaça terrorista a Nigéria vive atualmente uma grande instabilidade política e social. “Houve uma revolta da juventude contra a brutalidade policial. Ainda está em curso, embora esteja a diminuir, mas nos últimos 15 dias viu-se, na parte sul do país, uma revolta radical que infelizmente levou à morte de muitos jovens e de alguns polícias”.

“Os jovens fizeram ouvir a sua voz, dizendo ‘basta’ ao estado em que o país está. Usaram as redes sociais e saíram à rua, até bloquearam algumas estradas para fazer chegar aos ouvidos de quem de direito que as coisas estão mal. E conseguiram, porque o país literalmente parou durante alguns dias”, conta. E embora o objetivo dos protestos esteja “longe de ter sido alcançado”, pelo menos “ já se fala mais do que antes nas questões que preocupam os jovens”.

Por agora a família tem estado a salvo. “Os protestos e as revoltas não atingiram a zona onde vivem”, mas a verdade é que “enquanto não estiver seguro todo o país, ninguém está seguro. O amanhã é uma incógnita”.

“Saí de uma família, mas encontrei outra”

Simon Ayougu nasceu em agosto de 1976 em Ugbene-Ajima, no estado de Enugu, no Sudueste da Nigéria, no seio de uma família católica. Viveu uma infância ligada à Igreja, e aos 10 anos já sabia que queria ser padre. “Logo a seguir à primeira comunhão disse aos meus pais que já tinha encontrado o meu caminho. Claro que não me levaram a sério, mas com a passagem do tempo perceberam que eu não via mais nada além de uma vida religiosa”.

Aos 11 anos entrou para o Seminário Menor, e prosseguiu sempre os estudos. Já era maior de idade quando conheceu os missionários espiritanos, através de um padre canadiano que trabalhava na Nigéria. “Apresentou-me esta nova família religiosa que me acolheu de braços abertos”, conta. Entrou para a congregação em outubro de 1999, com 23 anos. Sete anos depois foi-lhe proposto vir para Portugal terminar os estudos de Teologia. “Cheguei em 2006, fiz um ano de aprendizagem da língua, em Lisboa, e depois fui estudar para o Porto”.

Em 2011 foi ordenado padre, tendo começado a servir na paróquia de Tires, em Cascais, que acumulou com outras responsabilidades no Patriarcado. “Era capelão das comunidades africanas, em especial de língua portuguesa e inglesa”.

Em 2015 seguiu para Braga, como pároco de Nogueira, onde permanece, sendo desde 2018 também responsável pela paróquia de S. Pedro de Lomar.

Admite que inicialmente o português foi um obstáculo, as diferenças culturais também, mas o acolhimento que teve fizeram-no ultrapassar todas as dificuldades. “Não senti o efeito devastador de alguém que deixou a sua terra, porque saí de uma família, mas encontrei outra. Agradeço muito à Província Portuguesa dos espiritanos por este acolhimento”, afirma.

“Não tenham medo de abraçar a vocação”

Nesta Semana dos Seminários, que a Igreja está a assinalar até domingo, o padre Simon Ayogu faz questão de deixar um desafio : “Que os jovens não tenham medo de se levantar e abraçar a sua vocação. E, porque não, fazerem uma experiência de vir e ver? Entrarem numa casa religiosa, num seminário, um dia, um fim de semana, para ver se é este o caminho para onde o Senhor os chama”.

Uma mensagem que estende também às famílias e a toda a Igreja. “Quando digo Igreja, digo os bispos, os padres, os catequistas, os cristãos, cada batizado. Todos temos este papel e esta responsabilidade de enviar uma mensagem. A minha mensagem para os jovens e para as suas famílias é esta, de não terem medo de ir e ver, para descobrirem qual é a sua vocação”.