A Caixa de Pandora
06-02-2019 - 08:50

Em maio de 1910, rebentou o escândalo do CPP, tão simbólico de um fim de regime quanto a fraude de Alves dos Reis no fim da I República e tão danoso, financeiramente, para o Estado e para muitos quanto a pouca vergonha bancária que hoje revela as misérias morais da nossa democracia.

No final da monarquia, um dos maiores bancos portugueses era a Companhia Geral do Crédito Predial Português (CPP). Fundado na década de 1860, para financiar o desenvolvimento do capitalismo agrário da Regeneração, o Crédito Predial prosperara, tornando-se poiso apetecível para os maiorais políticos do tempo. E, por isso, copiando a tese de Robert Michaels sobre a irresistível oligarquização dos partidos políticos, o banco passou a funcionar em circuito fechado, na mão das cúpulas políticas e dos grandes financeiros, que com o Estado lucravam no circuito dos grandes contratos monopolistas. Nos últimos anos do regime, o rotativismo partidário reproduzia-se na gestão do CPP. Quando o partido de centro-direita estava no governo, o líder do centro-esquerda era governador do CPP, e vice-versa. E ambos, Hintze Ribeiro e José Luciano de Castro, deixaram que o CPP fosse uma coutada do centrão, onde toda a espécie de políticos - senadores, arrivistas, amigos ou rivais – ia fazer pousios da cansativa vida partidária. Em 1901, João Franco, zangado com Hintze Ribeiro, denunciou o “ludíbrio do rotativismo” e, de passagem, a jogatina que estava instalada entre “os dois eminentes cônsules do Crédito Predial”.

Em maio de 1910, rebentou o escândalo do CPP, tão simbólico de um fim de regime quanto a fraude de Alves dos Reis no fim da I República… e tão danoso, financeiramente, para o Estado e para muitos quanto a pouca vergonha bancária que hoje revela as misérias morais da nossa democracia. O CPP entrou em falência, provocando a queda do então governador, o líder progressista José Luciano de Castro, e também do governo, presidido por Caetano Beirão, uma “criatura do Zé Lu” (sic), como então se dizia. A imprensa oposicionista encheu-se de revelações picantes sobre os desfalques, empréstimos e negociatas ilícitas que tinham descapitalizado o banco. A crise do CPP teve repercussões vastas. A elite política monárquica, que circulava em porta-giratória entre o Crédito e São Bento, passou a ser olhada ainda mais de soslaio. Pior: muita gente anónima perdeu poupanças ali depositadas e uma onda de pânico afetou até outros bancos. Guerra Junqueiro resumiu assim o verdadeiro alcance do caso: “foi então que os burgueses, vendo-se roubados, nos deixaram fazer a revolução”. E a revolução chegou cinco meses depois, em outubro de 1910. O Crédito Predial salvou-se, e ainda teve longa vida, até acabar, em 2004, engolido pelo Santander Totta. O que não se salvou foi a elite política que durante anos o usou como coisa sua e o muito dinheiro que tantos ali perderam.

Salvaguardadas diferenças, lembrei-me do CPP ao observar o caso da Caixa Geral de Depósitos, que agora reaqueceu com a revelação dos resultados da auditoria da EY. 1200 milhões € de créditos concedidos sem garantias, e irrecuperáveis, entre 2000 e 2015: 80 milhões por ano, quase 7 milhões por mês. Houve duas comissões de inquérito, que morreram pelo medo dos deputados do centrão em revelar as negociatas dos “caciques” do centrão, e pelo receio das esquerdas de que a danosa gestão pública levasse à privatização da CGD. Vai entrar em cena a terceira comissão de inquérito – e, entretanto, o Estado (o contribuinte), foi cobrindo as perdas. Se é para exibir este estendal de “imparidades”, para que serve a Caixa, pública ou não? De que serve capitalizar bancos (públicos e privados) se, no fim, apenas sobram… perdas? O escândalo da CGD não é um estrito problema de gestão bancária danosa; é antes um espelho cristalino da falta de ética e das golpadas e compadrios que corroem a alta (na verdade rasteira) esfera da política portuguesa.