O regresso de Voldemort (aquele que “nem nós sabemos”)
11-10-2019 - 13:58

Como fará a Europa um projeto de defesa eficaz? Com que meios, com que objetivos, com que homens? Quem está disposto a ver os seus próprios filhos lutar pela paz em cenários longínquos.

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É urgente repensar a política externa e de defesa comum da União Europeia – ou melhor, importa torná-las realidades efetivas e não meras ambições. Basta olhar a vergonhosa utilização de seres humanos como arma de arremesso nas relações internacionais para perceber até que ponto as velhas alianças e o velho mundo não existem mais. E a primeira questão a obter resposta é esta: quantos de nós estão dispostos a ver morrer os filhos ao serviço da paz em territórios tão longínquos quanto o Mali, o Afeganistão, a Síria ou mesmo a República Centro-Africana?

Esta semana os paraquedistas portugueses foram alvo de uma emboscada. Não houve baixas. O objetivo da operação era a proteção da população civil de algumas aldeias pobres africanas alvo de ataques de grupos de “bandidos armados” na República Centro-Africana (RCA).

Integrados numa força da ONU a chamada “Minusca”, desta vez como soldados da paz, armados, a operação traduziu-se, até agora, numa única baixa, de um soldado heroico na sua resiliência e de quem a custo recordamos o nome (Aliu Camará) mas vale a pena estarmos conscientes que podem surgir muitos mais. Se esta emboscada tivesse tido sucesso seriam mais de uma dezena.

E se fosse a partir do Kosovo ou do Afeganistão que os nossos homens e mulheres nos tivessem sido devolvidos em sacos de plástico? Ter-lhes-íamos dado maior atenção? Escudar-nos-íamos na velha máxima do voluntariado para descartarmos as responsabilidades assumidas como Estado, no cumprimento de compromissos internacionais? Teria a geringonça sobrevivido até aqui? Teríamos hoje, por exemplo, de novo soldados a colocar a vida em risco na RCA?

E agora que o senhor Trump decidiu que bastava o investimento já feito na questão Síria, puxando literalmente o tapete aos curdos (nossos aliados ocasionais contra os inomináveis terroristas do Daesh) valerá a pena continuar a confiar num aliado que parece obsessivamente centrado no seu umbigo? Sobretudo quando este já “tweetou” as vezes suficientes que a Europa “deve fazer a sua parte”, assegurando a respetiva defesa começando por a “pagar” (a alma de contabilista do presidente dos Estados Unidos nem sequer é disfarçável).

Em abono de Trump podemos recordar que a política americana, em relação aos curdos, não se alterou muito no último século. Ficaram sós na sequência da primeira grande guerra, foram ostensivamente abandonados por Bush pai na sequência da primeira guerra do Iraque, quando deixados às mãos das represálias e da vingança de Saddam Hussein e foram agora mais uma vez descartados por Trump.

De novo, neste abandono recorrente, apenas o basismo descarado do descarte: o remoque de que na segunda guerra mundial os curdos não estiveram no desembarque da Normandia. Mas mais importante ainda foi a infeliz afirmação: “já gastámos muito” com “munições, armamento, dinheiro e salários” para terminar depois “dito isto, gostamos muito dos curdos”. É caso para agradecer e temer o pior se não gostassem.

Sem perder tempo, o senhor Erdogan que preside à Turquia (a eterna noiva a que a UE prometeu casamento nos anos 60, membro da Nato e aliada essencial do Ocidente na zona) aproveitou a retirada dos americanos para fazer um raide, poucas horas depois, contra os inimigos de sempre: a população curda, desta vez sobretudo a localizada no norte do país.

A ideia foi vendida como uma “operação de paz”. Aliás, o nome não podia ser mais hipócrita. A paz não gera normalmente uma fuga massiva de mais de 60 mil pessoas aterradas com bombardeamentos indiscriminados por parte da Turquia. Mas é aquilo a que estamos a assistir, com civis curdos em fuga desesperada dos bombardeamentos levados a cabo pelo vizinho gigante, ou melhor, o gigante hospedeiro que tolera este corpo estranho que é parte do Curdistão, nunca reconhecido como Estado autónomo e dividido (a régua e esquadro!) entre uma série de países, do Iraque ao Irão, da Turquia à Síria.

E onde fica a Europa no meio disto? A próxima Cimeira Europeia promete pelo menos discutir o assunto. Tendo como pano de fundo o acordo assinado para que a Turquia sirva de tampão temporário à vaga de mais de 3,6 milhões de refugiados, e para tal paga pela UE numa das mais polémicas decisões da trágica gestão da crise dos refugiados.

A Turquia ameaça agora simplesmente despejá-los na Europa, abrindo fronteiras se a União Europeia insistir em recusar a solução interna encontrada para eles. Uma decisão que passa por os concentrar, numa zona de “contenção” de 400 por 30 quilómetros, forçando a sua mistura com a população curda ali residente.

E o que dizem os curdos, onze mil dos quais perderam a vida na luta contra o “Estado Islâmico”? Se o Ocidente os abandonar às mãos da Turquia e os deixar de novo perante a ameaça do Estado Islâmico, das duas uma: ou massacram os mais de 10 mil prisioneiros e respetivas famílias (num total de quase 80 mil pessoas), que agora se encontram à respetiva guarda, ou simplesmente os “exportam” também eles para território europeu.

E o que faz a Europa? Sem uma liderança forte, como sempre, passa a bola à ONU em matéria de possível ação, evita envolver-se “com as botas no terreno”. Refugia-se na diplomacia balofa, evitando afrontar a Turquia, mas recorda a colaboração curda (vista por Erdogan como força terrorista interna). O mundo talvez venha, mais tarde ou mais cedo, a exigir à Europa uma qualquer ação inútil por tardia.

Neste contexto em que o mundo não para de gerar novos conflitos “quase tribais” um pouco por todo o lado, a opinião pública europeia ocidental vive de cabeça enfiada na areia à espera que passe.

À espera que as células da Al Qaeda se renovem, o Estado Islâmico recupere das derrotas sofridas, os ovos de serpente abandonados nos subúrbios das nossas cidades eclodam e, passado o período de hibernação, animem os populismo e recrudesçam com o discurso anti-imigração ganhando o terreno “antissistema”.

Sem dar um passo para crescer, mesmo sem fazer mais nada, talvez o senhor André Ventura possa conseguir a sua ambição. Meia dúzia de ataques nas nossas cidades, duas ou três ações de verdadeiro terror e a Síria vai deixar de ser esse lugar longínquo onde um partido terrorista como o PKK tanto nos aparece do lado dos bons como do lado dos maus.

Nessa altura veremos que dentro e fora dos pactos, dos compromissos, e dos papeis, as rodas da geringonça (2.0) ou as patas da “aranhonça” (na imagem do líder da Iniciativa Liberal), talvez mostrem subitamente uma fragilidade que, estando patente nos últimos quatro anos, não chegou nunca a ser testada.

E termino como comecei: como faremos nós um projeto de defesa eficaz? Com que meios, com que objetivos, com que homens? Quem está disposto a ver os seus próprios filhos lutar pela paz em cenários longínquos, mesmo que o reverso possa ser vê-los mortos, precocemente mas aqui, numa guerra contínua mas nunca declarada de contornos difusos onde o inimigo é apenas uma espécie de mal absoluto?

Um novo mal, que na metáfora de Harry Potter terá também um nome impronunciável (como tinha Lord Voldemort) mas agora com novo significado: “aquele que nem nós sabemos!”