Bruxelas. Há poucos meses, vi-a irreconhecível apinhada de veículos militares, com um soldado a cada esquina, e já quase não a reconheci. Depois, Molenbeek, um bairro de que pouco ouvira falar nos anos da minha estadia na ainda pacata Bruxelas, tornado quase familiar pelas notícias constantes de rusgas e detenções, surgido do nada, como uma espécie de “ninho de terroristas”.
Este fim-de-semana, de novo, o mesmo bairro, nas múltiplas imagens da prisão de um dos cabecilhas dos atentados de Paris. Hoje, contudo, parece bem pior: vivo este atentado como se fosse à minha porta. Foi ali que vivi o 11 de Setembro e, já por essa altura, Bruxelas surgia como o centro nevrálgico de um futuro que não augurava nada de bom. Não foi.
Quando se vive num país durante anos, fica-se com um estranho sentimento de pertença que nem a distância nem o tempo apagam facilmente. Estes atentados não foram, por isso, para mim, como muitos outros. Conheço bem aquele aeroporto das idas e vindas. Quantas vezes terei parado para tomar um último café naquele ou noutro qualquer Starbucks da zona de embarque, tão perto do local de ataque. O próprio balcão da TAP, onde tantas vezes fiz “check in”, não fica muito longe do local da explosão. Morei, durante anos, bem perto de Montgomery, a quatro estações de Maalbeek, zona de passagem obrigatória para as idas às compras a Madou, onde existe uma multiplicidade de comércios “turcos”, em saldos permanentes.
Na cidade que deixei há 14 anos, ficou um mundo de amigos cujo rasto tentei seguir em busca de informações esta manhã. Ao mesmo tempo que procurava possíveis testemunhos para a rádio, os meus filhos, via Facebook, faziam-me chegar notícias dos jovens amigos: “A Sofia e a Isabel estão bem!”. A cada informação junto um suspiro de alívio.
Ao longo da manhã, constato que tenho, pelo menos, três amigos literalmente presos na Comissão Europeia (ninguém pode sair dos respectivos escritórios ou abandonar os edifícios onde se encontram). Falo com alguns - calmíssimos (“não se pode ceder ao terror!”). Outros, nem tanto. Há quem tenha deixado os filhos pequenos na escola pública, de onde também não podem sair - nem das escolas nem sequer das salas. Esperam-se novos atentados.
Uma das minhas amigas tinha em casa cinco jovens portuguesas, a passar férias. Deviam regressar hoje mesmo a Lisboa. “O avião estava marcado apenas para esta tarde”, diz-me num misto de alívio e preocupação.
Que se passa na cidade que já foi a minha? Essa cidade, onde durante quatro anos observei, como estrangeira, a crescente tensão social entre uma comunidade muçulmana em crescendo e uma população autóctone em acentuado declínio populacional. Essa cidade, onde a extrema-direita crescia a céu aberto, com preocupantes derivas xenófobas, que, entre a população mais desfavorecida, encontrava um surpreendente e preocupante acolhimento.
Lembro-me de ter escrito para o “Público” crónicas que davam conta, nesse conturbado início do milénio, do preocupante fenómeno de revisionismo neonazi. Os alvos já não eram apenas os “judeus”, vítimas recorrentes de todas as perseguições. Na minha caixa do correio, aterraram, por essa altura, folhetos asquerosos contra os estrangeiros e o novo alvo eram, sem dúvida, as comunidades muçulmanas, que à vista desarmada se radicalizavam (era já evidente o crescendo do uso de véus nas ruas, nas escolas, um pouco por todo o lado) numa convivência onde a aparente tranquilidade disfarçava o crescente de tensão.
O 11 de Setembro foi apenas o despertar. E já foi há 15 anos. O que se fez entretanto para aumentar o diálogo, favorecer a integração, evitar o colapso de uma convivência crescentemente difícil entre duas civilizações? Não sei. Sei que não foi o suficiente.