O Sudão do Sul é o mais jovem país do mundo. Tornou-se independente em 2011, mas o conflito político e étnico reacendeu-se e a situação humanitária é alarmante. À guerra civil, que recomeçou há três anos, junta-se uma grave crise alimentar, que já levou o Papa a apelar à ajuda concreta da comunidade internacional e a manifestar intenção de visitar o país.
O padre José Vieira, actual provincial dos missionários combonianos, esteve sete anos no Sudão do Sul, de onde regressou em finais de 2013. Em entrevista à Renascença, diz que nunca pensou que o conflito se reacendesse desta forma. Critica a inoperância dos soldados das Nações Unidas, por serem “os primeiros a esconder-se” quando há problemas, acha que a comunidade internacional devia ser mais dura impondo sanções a quem faz a guerra e fala da importância que terá para aquele povo a eventual visita do Papa, porque se há coisa que consegue unir os sul-sudaneses é o cristianismo.
Que notícias tem recebido do Sudão do Sul?
As notícias não são nada boas, apesar de o Presidente ter decretado um diálogo nacional, e no dia 10 de Março ter feito um dia de oração e de jejum pela reconciliação e pela paz, os combates continuam. As notícias que chegam indicam que a guerra se alastrou cada vez mais a uma zona que anteriormente era pacífica, que é a Equatória, a parte sul do país. Os refugiados continuam a chegar aos milhares por dia ao Uganda e vivem em condições muito difíceis, em zonas semidesérticas, sem água, protegidos por plásticos, onde é muito difícil sobreviver.
Este conflito já fez milhares de mortos e deslocados. A ONU admite mesmo que se trata de um novo genocídio em África…
Sim. Há uma política de focar o conflito sobretudo sobre um grupo étnico, o povo nuer, que é historicamente inimigo do povo dinka, que está no poder. Mas há uma falta de respeito enorme pelas mortes. Oficialmente, continua-se a dizer que ao cabo de três anos de conflitos violentos e destruição massiva de aldeias morreram 50 mil pessoas. Os números são para cima dos 300 mil, segundo algumas organizações não-governamentais, mas nem o Governo nem as Nações Unidas prestam essa homenagem aos mortos, de pelo menos reconhecer o número dos que já morreram, nem isso conseguem fazer. Os mortos são um problema lateral do conflito, o que interessa é a luta pelo poder entre duas facções do partido que está no Governo.
Por que é que é tão difícil manter a paz neste país, que lutou tanto para ser independente?
Há dois elementos fundamentais, o primeiro é que as pessoas do Sudão do Sul viveram sempre num caldo de violência. A guerra civil começou ainda antes da independência do Sudão, que foi a 1 de Janeiro de 1956, e a guerra civil começou em Agosto de 55, porque os sulistas, que são africanos, cristãos ou das religiões tradicionais, se sentiam subalternizados pelos muçulmanos árabes do norte, e desde então tem havido sempre guerra civil, excepto num pequeno intervalo entre 73 e 83, e depois entre 2005 e 2013, que foi o período que preparou a independência.
O segundo elemento fundamental é o tribalismo. Uma das coisas que me chamou a atenção é que os sul-sudaneses têm necessidade de se identificar pela tribo. Ninguém diz o nome só, diz “eu sou Matchar e sou nuer” ou “sou dinka”. A gente sabe pelo nome o que são, eles têm essa necessidade. Portanto, a carta tribal foi também muito usada pelo Governo árabe para pôr as tribos umas contra as outras e continuar a dominação até 2011.
Quantos missionários combonianos é que estão no terreno?
Neste momento são à volta de 50. Não saiu ninguém dos combonianos.
E há portugueses?
Há um irmão português, enfermeiro, que ensina numa escola de enfermagem da Igreja Católica. O único problema é que a missão de Kajo Keji, que é junto à fronteira com o Uganda, está completamente vazia. Eu acho que estarão lá nem 10% da população. As irmãs combonianas que lá estavam decidiram mudar a comunidade para o Uganda. Os combonianos fizeram outra opção, mantiveram-se em Kajo Keji, para dar assistência àquele pequeno grupo, e dali atravessam todos os dias a fronteira para os campos de refugiados. Fazem isso porquê? Porque a missão é muito complexa, tem oficinas, projectos diversos, uma escola secundária com dormitórios, uma escola primária, e se abandonarmos a missão aquilo é imediatamente pilhado e saqueado. Para evitar esse saque é que os meus colegas decidiram ficar lá e operar de lá para o norte do Uganda.
E aí dão apoio nos campos de refugiados. É fundamental essa presença dos missionários no Sudão do Sul?
É porque as pessoas sentem um certo conforto. As pessoas nos campos de refugiados vivem completamente desenraizadas. Kajo Keji é uma das partes mais verdes e mais bonitas do Sudão do Sul, era uma zona tranquila de agricultores e que agora se vêem a viver no meio de um deserto semi-árido no norte do Uganda, a 60, 70 quilómetros da fronteira. Portanto, os missionários, para além de lhes levarem alguma ajuda, porque há uma solidariedade muito grande através da Igreja, são também uma presença espiritual que os anima e que os conforta.
Os missionários têm tido um papel importante no processo de reconciliação?
Um dos elementos fundamentais são as nossas escolas, que são multiétnicas. Por exemplo, a escola secundaria de Kajo Keji, que durante a guerra civil esteve sempre aberta, era um ponto de encontro de jovens, rapazes e raparigas de todo o país, portanto eles aprenderam a viver juntos e a ver que não são assim tão diferentes uns dos outros, embora sejam educados numa cultura tribalista. Eles ali fizeram essa experiência. E depois também as comunidades religiosas são outro laboratório da inter-etnicidade. Aliás, uma das coisas que ouvia muito, quando lá vivia, é que se quisermos unir o Sudão do Sul temos que usar Deus, ou Cristo, porque é o único conceito aglutinador do país. O conceito de nação não existe lá, a nação é a tribo.
Era previsível que sendo uma país tão recente voltasse a entrar em guerra?
Eu não imaginava, e muitas vezes penso nisso, quando a 9 de Julho de 2011 assisti à proclamação da independência e àquela explosão de festa que houve, nunca pensei que dois anos mais tarde aquela liderança que conseguiu negociar todas as armadilhas que o Governo de Cartum lhes pôs para descarrilar o processo de autodeterminação, que essa mesma liderança fosse capaz de cair na armadilha de ficar tão presa ao poder, de não ser capaz de ver para além dos próprios interesses e dos interesses da tribo.
O Papa já manifestou intenção de visitar o Sudão do Sul. Seria importante?
Para mim é muito importante por duas razões. Primeiro a partir do ministério de consolação do Papa. Ele vai lá e vai consolar os povos sofredores do Sudão do Sul. É interessante que quem lhe fez o pedido foi uma delegação ecuménica: um católico, o arcebispo de Juba; um anglicano, arcebispo de Juba também, e um moderador de uma das igrejas protestantes. E é necessário que o Papa vá lá, pelo menos para consolar o povo. E depois vai chamar a atenção mais uma vez para o problema do Sudão do Sul. O líder da ONU no país, num discurso de há três dias, dizia que é necessário que a comunidade internacional responda a uma só voz ao problema do Sudão do Sul. Não podemos continuar a ter a Rússia, a China e outros países por um lado, e o mundo ocidental e democrático pelo outro, porque o regime joga com isso, continua a usar mais de 50% por cento do rendimento do petróleo, que são à volta 130 mil barris por dia, para se armar. E portanto, a morte continua.
Seria necessário também a comunidade internacional assumir mais responsabilidade e ajudar esta região?
Ajudar… Primeiro, cortar o abastecimento de armas e, por outro lado, impor sanções à classe dominante, ao próprio Presidente, ao vice-presidente, ao chefe das forças armadas, porque eles é que estão a fazer a guerra.
E a força de manutenção de paz?
Ela está lá, estão lá 16 mil pessoas. Chama-se UNMISS, Missão das Nações Unidas para o Sudão do Sul, mas quando há problemas são os primeiros a esconder-se. Por exemplo, quando houve aquele famoso ataque a um hotel onde estavam muitos membros da comunidade internacional, a base da UNMISS estava nem a 500 metros. Continuavam a mandar-lhes SMS a dizer “estamos a ser atacados” e eles não se mexeram até, digamos, a “borrasca” passar. Por isso é que o chefe da UNMISS, que era um general queniano, foi demitido e o Governo queniano ficou muito ofendido com isso.
Voltando à intenção do Papa visitar a região… o que é que soube de lá? Quais foram as reacções?
As reacções são muito boas, a começar pela Igreja Católica. Inclusive o arcebispo de Juba, Paulino Lukudu, já disse que a visita vai ser em Outubro, e que já estão a fazer preparativos para essa visita. Há uma grande expectativa por parte da Igreja, porque o Papa é uma figura muito importante, o cristianismo é muito forte e há uma coisa muito interessante no Sudão do Sul, é o ecumenismo prático. Eu nunca encontrei um espírito ecuménico tão prático e tão unido como em Juba. Os próprios arcebispos vivem a 50 metros um do outro, e durante a guerra tinham um pacto entre eles: Juba não podia ficar sem arcebispo. E se um tinha que sair para o estrangeiro, o outro ficava, um era o católico, Paulino Lukudo, o outro era Daniel Deng Bul Yak, anglicano, lá chamam-lhe Igreja Episcopal, como na América. E eles tinham a certeza que um deles lá ficava.
Portanto, era um ecumenismo prático, de olhar pelo povo de Deus, porque Jesus é o mesmo, o rebanho é o mesmo.
Acredita que a visita do Papa será possível, até pelas condições de segurança?
Bom, o Papa foi à República Centro-Africana, as condições de segurança eram piores, talvez, porque o tipo de armamento usado era mais mortífero do que aquele que usam em Juba, excepto o Governo que já tem um avião ou dois, e alguns helicópteros com helicanhões. Mas o Papa fez um bem enorme com a visita que fez à República Centro-Africana, e tenho a impressão que ele vai tentar fazer o mesmo magistério de influência no Sudão do Sul, e é muito bem-vindo.
A entrevista ao padre José Vieira foi transmitida em directo no espaço das 12h da Renascença, que às segundas-feiras é dedicado aos temas sociais e relacionados com a vida da Igreja.
[Notícia corrigida às 14h18 de terça-feira, dia 21]