“Morrem pessoas todos os dias de tantas doenças, esta é só mais uma”
19-11-2020 - 02:20
 • Christian Carlassare*

A longa e penosa guerra civil do Sudão do Sul acabou em finais de 2019, mesmo a tempo de o país destroçado levar com uma pandemia. O povo reagiu com resignação e tenta fazer pela vida, numa sociedade em que o confinamento simplesmente não é opção.

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Estava a dar aulas de Educação Religiosa Cristã na Escola Secundária paroquial quando, no final de março, o Governo decidiu aplicar um confinamento, devido ao primeiro caso confirmado de Covid-19 na capital, Juba. Todas as instituições, escolas e igrejas foram encerradas e os grandes ajuntamentos foram proibidos.

O resultado é que grandes quantidades de jovens – dois terços da população do Sudão do Sul têm menos de 18 anos – voltaram das cidades, onde estudavam, para as zonas rurais. De volta a casa não tinham mais que fazer do que andar pelas ruas à procura de animação. Apesar do confinamento, os mercados estavam sempre cheios de pessoas que tinham de cuidar de si. Ouvi-as várias vezes a dizer: “morrem pessoas todos os dias de tantas doenças, esta é só mais uma a juntar às outras”.

A situação económica do Sudão do Sul já era muito má por causa do conflito interno que começou em dezembro de 2013 e que tinha acabado de ser resolvida no final de 2019. A Covid-19 veio paralisar o país ainda mais. Depois de algumas semanas de confinamento a economia entrou numa crise profunda. A moeda perdeu valor, os preços dispararam e os bens diminuíram, uma vez que o país depende sobretudo de bens importados. Comecei a ouvir as pessoas a dizer que “a fome é pior que a doença” e por isso o Governo não teve outra alternativa do que permitir que as normas de confinamento fossem observadas mais na exceção do que na regra.

Devido à cooperação internacional o Ministério da Saúde pôde montar um centro de diagnóstico na capital, só um, para o país inteiro, e existe um centro terapêutico com uma dúzia de ventiladores. Depois de três meses de confinamento tínhamos registo de 2.200 casos, sobretudo entre assintomáticos a quem foram exigidos testes antes de poderem viajar. O pico de resultados positivos chegou em junho. Depois disso passou a ser exigido que quem chegasse do estrangeiro ficasse em quarentena antes de poder viajar pelo país e faziam-se poucos testes. O resultado é que neste momento temos apenas 2.960 casos confirmados e 59 mortos. Mas a verdade é que ninguém sabe quanto é que o vírus já espalhou entre a comunidade. Não é fácil distinguir os sintomas de Covid-19, num país em que 319 em cada 100.000 pessoas sofrem de tuberculose, por exemplo.

Em setembro o Governo levantou parcialmente as medidas de confinamento. Os voos internacionais foram repostos e as Igrejas puderam reabrir para o culto. As escolas recomeçaram para as turmas que estavam a fazer exames finais da primária e do secundário, que se vão realizar mais tarde do que o habitual, em fevereiro de 2021. O Ministério da Educação disse que todas as outras aulas apenas vão recomeçar com o início do novo ano letivo, que vai começar com atraso em abril de 2021.

A vida segue como normal, dentro de um quadro que é verdadeiramente anómalo. A vida é muito desafiante e torna-se particularmente difícil para as pessoas que perderam as suas casas por causa do conflito. O Alto-comissariado das Nações Unidas para os Refugiados fala em quatro milhões de deslocados, entre os quais mais de dois milhões de refugiados nos países vizinhos, a viver em campos. Dentro do Sudão do Sul há cerca de 400.000 pessoas a viver em campos de proteção das Nações Unidas. Vivem em condições muito precárias, sem qualquer possibilidade de respeitar o distanciamento social e é lá que encontramos a maior quantidade de pessoas com sintomas, como por exemplo dificuldades respiratórias.

A nossa comunidade também foi afetada. Há duas semanas perdemos o padre Jesus Aranda Nava para a Covid-19. Era um missionário comboniano, já próximo dos 70 anos, que servia os sudaneses do sul entre os campos de refugiados de Palorinya, no norte do Uganda.


*Christian Carlassare é um padre dos Missionários Combonianos. Nasceu em Itália em 1977 e está desde 2005 no Sudão do Sul, onde partilha a vida e os desafios da população. O seu primeiro trabalho foi a fazer primeira evangelização entre a tribo Nuer. Desde junho de 2020 que é também vigário-geral da diocese de Malakal.