Umas eleições atípicas
15-01-2016 - 13:19

Quanto tempo poderá a lebre passear-se (limitando-se a distribuir afectos em pose displicente) sem se arriscar a acordar tarde demais

Sem que se conheçam ainda as primeiras sondagens pós-debates, é possível dizer que a hipótese de segunda volta nestas presidenciais não está ainda totalmente descartada.

Esta verdade pode, contudo, ganhar foros de quase-certeza, já daqui a umas horas, em função dos primeiros resultados dos inquéritos de opinião pós-debates. Basta que Marcelo caia alguns pontos e ou Sampaio da Nóvoa consolide a ultrapassagem de Maria de Belém, capitalizando o efeito-surpresa do desconforto provocado no confronto com o “comentador”, fazendo jus ao profissionalismo da sua máquina de campanha. As favas não estão contadas.

Numas eleições atípicas, a corrida, a uma escassa semana do acto eleitoral, pode não estar decidida e exigir de Marcelo Rebelo de Sousa capacidade para adaptar a sua estratégia de maratonista aos adversários. Estes jogarão tudo em surpreendê-lo, sabendo que a única alternativa que lhes resta é ganhar “ao sprint”.

Convém não esquecer que candidatos como Paulo Morais e Henrique Neto são aparentemente, de acordo com as sondagens, senhores de 4 a 5% dos votos expressos e bastam 250 a 300 mil para forçar uma segunda volta, como esta sexta-feira, aqui na Renascença, bem lembrava Nuno Garoupa.

Recordam-se da velha fábula da lebre e da tartaruga? Quanto tempo poderá a lebre passear-se (limitando-se a distribuir afectos em pose displicente) sem se arriscar a acordar tarde demais? Marcelo só nos últimos dias deu mostras de ter finalmente acordado para a campanha, percebendo que a conquista do centro e a consolidação no seu surpreendente eleitorado de esquerda (Bloco e PC) não bastam para que possa dar-se ao luxo de desperdiçar a direita “pafiana”, contentando-se a fazer de morto e a esperar que o tempo passe.

É verdade que o candidato que se impôs à direita não conta sequer com o seu apoio e joga sozinho numa solidão difícil. Soaram a falso as explicações de Passos, na entrevista à Renascença, para o seu distanciamento. Qualquer aproximação pode ter efeito tóxico? Talvez. Mas, em rigor, houvesse vontade de levar Marcelo a Belém e a máquina não deixaria de fornecer os jovens, os cartazes, as bandeiras, a animação que tem faltado ao professor. Na verdade, Marcelo está sozinho porque uma parte substancial do seu partido está órfã de candidato.

Nada que Marcelo não consiga superar com o efeito de penetração no centro-esquerda, mas, para isso, tem de fazer prova de vida e mostrar-se melhor do que Maria de Belém que, por natureza, é senhora desse espaço.

A visita de Estado à Madeira (com direito à presença de Miguel Albuquerque e Jardim) e o facto de ontem se ter pronunciado com clareza na defesa de “um pacto de regime para a educação” (numa resposta clara à preocupação ontem expressa pelos bispos portugueses) são, ainda e apenas, um primeiro sinal de que o comentador começa a dar finalmente espaço ao verdadeiro candidato.

No início da semana Marcelo pensava, ou dizia ainda, que não valia o esforço de maior pró-actividade “ porque a dez dias de eleições o voto já está decidido na cabeça das pessoas”.

O problema é que a afirmação não é confirmada pelos estudos pós eleitorais. Cavaco tinha, a três meses das últimas eleições, 70% de “votos” nas sondagens, a 20 dias do acto eleitoral já só lhe restavam 60%, tendo acabado com maioria absoluta, mas 25% abaixo das previsões iniciais. Vale a pena passar os olhos, aqui no site da Renascença, pelo texto do João Carlos Malta sobre este tema à conversa, entre outros especialistas, com Pedro Magalhães.

Mas se Marcelo aparenta ter acordado a verdade é que não foi o único a afinar estratégias. Maria de Belém, depois de um início atabalhoado e algumas ideias infelizes/populistas, abandonou o registo “chá e simpatia”, que marcou a sua presença em pré-campanha, e conseguiu, em Viseu, colocar-se no campo de seriedade, que lhe é favorável, focando-se nos temas estruturantes como o das Forças Armadas e da reabilitação do prestígio da Função Pública (com uma piscadela de olhos aos professores). Duas áreas onde Sampaio da Nóvoa tem trunfos conhecidos. Jorge Coelho deu à campanha da candidata o tom profissional que lhe tem faltado (pela notória ausência da máquina partidária socialista) e fez as despesas da conversa no ataque a Marcelo em que Maria de Belém, naturalmente cordata, tende a não ser eficaz.

Mas nestas eleições atípicas, onde os partidos da direita se arriscam a chumbar “por faltas”, não há nada que possa sequer ser comparável a nenhuma das eleições anteriores, e há uma série de outros factores de incerteza.

O que poderá resultar do novo debate, a dez, já anunciado para a próxima terça-feira na RTP? Assistir-se-á outra vez aos “nove contra um” ou figuras como Paulo Morais e Henrique Neto conseguem crescer e fazer passar as suas mensagens alternativas, desviando uma percentagem substancial de votos que fatalmente irão sobretudo fazer falta a Marcelo? Ou, pelo contrário, candidaturas como a de Cândido Ferreira (que ainda não se percebeu ao que vem) desviarão o fogo para Sampaio da Nóvoa, acentuando a fragmentação da esquerda?

Não está claro que os 25 debates concentrados em nove dias não tenham criado o ambiente ideal para o reforço da carga viral abstencionista. Um novo debate a dez torna o confronto de ideias uma impossibilidade prática e pode ter como efeito secundário ampliar o campo ideal à proliferação do vírus.

O funcionamento do regime semipresidencialista não se compadece com um sufrágio universal que coloque em Belém um presidente que embora obtendo mais de 50% dos votos expressos conte, como já aconteceu com Cavaco Silva, apenas com o apoio expresso de bastante menos de um terço dos portugueses.

Cavaco foi reeleito com uma percentagem superior à inicial (52,9% contra os 50,5% iniciais), mas entre o primeiro e o segundo mandato acabou por perder mais de meio milhão de votos, ficando-se por escassos 2,2 milhões de apoiantes, o que se traduziu no mais baixo valor de sempre.

A gravidade da situação económica e social e a fractura exposta em que se encontra o país, em plena deriva parlamentarista, aconselharia exactamente o oposto. A escolha de um Presidente suficientemente mobilizador para conseguir que o número de abstencionistas deixasse de constituir mais de metade da população (53,3% no último escrutínio presidencial).

Se mais de metade dos votos expressos continuar a representar bastante menos de um terço dos portugueses não se augura nada de bom para o futuro reforço da magistratura de influência presidencial o que pode em momentos de crise manifestar-se fatal.

Vale a pena lembrar que as casas de investimento raramente assumem grandes pessimismos, são as primeiras a estudar cuidadosamente as palavras de aconselhamento aos seus investidores e, não por acaso, o Royal Bank of Scotland classificava, na sua nota de análise divulgada no início desta semana, o ano de 2016 como potencialmente “catastrófico” para os investidores.

Imaginam o que isso pode significar para a nossa pequena economia pós- resgate? Imaginam? Não queiram nem imaginar.