Saídos do nevoeiro e da treva…
25-11-2020 - 06:15

Na adversidade da pandemia, o caso de Cascais é exemplar de como os cristãos sabem reinventar e potenciar porventura ainda mais os seus ritos e vivências. A missa é agora celebrada numa tenda.

Costumo ir à missa aos domingos à tarde, à Igreja de São João de Deus, em Lisboa. Desde que se retomaram as celebrações comunitárias, os bancos têm sinalética para manutenção de distâncias, e a Igreja está sempre cheia, embora com gente mais velha, dado que a missa dos jovens e crianças é matinal. A rotina possível voltou.

Porque passo alguns fins de semana em Cascais, também ali vou, por vezes, à missa dominical, celebrada na Igreja Paroquial de Nossa Senhora da Conceição, junto à Cidadela. Desde maio e durante todo o verão, a celebração dos domingos passou do interior do templo, sempre sobrelotado, para o ar livre, com um palco coberto, no vizinho Hipódromo Manuel Possolo. Há anos que não ia a uma missa campal, mas às que fui não faltou participação e solenidade, na relva e sob o sol poente. Voltei ali à missa este último domingo de manhã e a infraestrutura está ainda melhor.

“Onde dois ou três estiverem reunidos em Meu nome, Eu estarei no meio deles”, ensina a doutrina. Na adversidade da pandemia, o caso de Cascais é exemplar de como os cristãos sabem reinventar e potenciar porventura ainda mais os seus ritos e vivências.

A missa é agora celebrada numa tenda que copia bem o ambiente da Igreja. O teto é branco, abobadado e iluminado. Os bancos, corridos e separados em quatro “naves”, mantêm boa distância entre si. O altar está elevado, sobre degraus alcatifados, com o aparato próprio e decorado com telas que reproduzem as imagens dos retábulos de talha do altar da Igreja Paroquial. Por trás do coro, a parede de plástico tem azulejos antigos bem pintados. No chão, as setas de sentidos também reproduzem azulejaria. Não falta sequer uma sacristia, de onde o cortejo de celebrantes entra na tenda. No domingo, esta nova Igreja estava cheia. Como a tarde era de confinamento, os cascalenses decidiram que a manhã era para sair e para gozar o sol de inverno, que mais parecia um verão de São Martinho bem prolongado. E porque na tenda já não cabiam todos, dezenas e dezenas de pessoas ficaram na relva, olhando e celebrando a missa através dos plásticos transparentes e das colunas de som. Levaram bancos, cadeiras de praia, largas mantas que estenderam na relva para se sentarem. Eram famílias inteiras, grupos de amigos ou de vizinhos, todos de máscara, com crianças, muitas, que também se sentaram de pernas cruzadas, por entre uma ou outra correria (silenciosa) pelo relvado. Gente que passeava no Hipódromo, sozinha, com miúdos, bicicletas ou cães à trela, também se foi juntando, respeitosa, à missa.

Talvez fosse o espaço, amplo, azulado, arejado, e o enquadramento, com o largo verde da relva e das árvores, talvez as pessoas, muitas, de todas as idades, formando o que se percebe ser uma comunidade de fiéis coesa e familiar, a missa – foi a Solenidade de Cristo Rei, o último domingo antes do começo do Advento – teve um ambiente diferente e especial, sem menosprezo, claro, para a “minha” mais tradicional Igreja de São João de Deus. Resta que a mensagem da liturgia era, porque as “coincidências” de Deus são alertas sempre oportunos para quem os escuta, particularmente pertinente nos tempos de hoje.

A Profecia de Ezequiel lembrava a importância do Cristo-pastor que apascenta as suas ovelhas, “para as tirar de todos os sítios em que se desgarraram num dia de nevoeiro e de trevas”. O Evangelho de São Mateus lembrava que em todos os que têm fome e sede, são peregrinos ou andam sem roupa, estão doentes ou presos, se encontra Cristo – e que tudo o que àqueles oferecermos, a Ele o fazemos. Entre muita gente, no silêncio solarengo da tenda ou da relva, todos se terão sentido menos “desgarrados” no “nevoeiro” e na “treva” do confinamento reinante.