Abate de 540 animais é "uma vergonha" até para caçadores. PAN exige revisão da lei
22-12-2020 - 19:34
 • Fábio Monteiro

Para quem conhece a quinta da Torre Bela, na Azambuja, e até já lá caçou, o que aconteceu no último fim de semana é um "atentado". Em Portugal, as montarias não têm um número de animais limite que é permitido caçar por evento. À Renascença, André Silva, deputado do PAN, diz que suspensão da licença de caça da propriedade parece “totalmente adequada”, imputa responsabilidades políticas ao PS, PSD, CDS e PCP, e pede uma revisão da Lei de Bases da Caça -- que o ministro do Ambiente diz estar em cima da mesa.

Em 2019, Manuel Varanda participou numa montaria na Quinta da Torre Bela, Azambuja, propriedade onde, no último fim de semana, foram abatidos 540 animais e cujas imagens, já apelidadas de “vis” pelo ministro do Ambiente, foram partilhadas nas redes sociais. “Foi uma coisa pequena. Matámos onze ou doze animais. Para as largas centenas de animais que lá há, aquilo foi uma coisa de nada. Agora, do que aconteceu desta vez eu sinto vergonha”, confessa à Renascença.

Esta terça-feira, a licença de caça da propriedade foi revogada à herdade pelo Instituto da Conservação da Natureza e das Florestas (ICNF); o ministro Matos Fernandes anunciou a abertura de uma investigação do Ministério Público. "A caça repovoa um conjunto de ecossistemas, existe, é autorizada, para gerir recursos energéticos. Não é para matanças generalizadas", disse o governante.

No ano passado, Manuel Varanda, técnico e projetista de Planos de Ordenamento e Gestão Cinegética (POEC) e Planos de Gestão (PG), foi convidado pela gestão da Sociedade Agrícola da Quinta do Convento da Visitação, SAG LDA, entidade que pelo menos desde 2003 explora atividade cinegética naquela propriedade, de acordo com os registos em Diário da República. (Na Azambuja, há 23 entidades acreditadas pelo ICNF para gerirem zonas de caça.)

Enquanto profissional, Manuel Varanda nunca trabalhou com a gestão da quinta da Torre Bela. Mas isso não o impede de apelidar como uma “notícia triste” as novidades que brotam de lá. Conforme já foi noticiado por outros órgão de comunicação e veiculado por fontes locais, a “matança” de javalis e veados terá por detrás outras intenções, também ouviu o técnico.

Alegadamente, a gestão da quinta da Torre Bela terá o intuito de criar uma exploração energética por via de painéis fotovoltaicos e também investir em olival intensivo. “Na verdade, já lá existe olival intensivo. E realmente olival intensivo não é compatível nem com veados nem com ganos nem com javalis. Agora, há é muitas maneiras de trabalhar, muitas maneiras de passar os animais para outro lado”, nota Manuel Varanda.

Ilegalidades e planos

Por lei, todas as zonas de caça nacionais são obrigadas a ter um Plano de Ordenamento e Gestão Cinegética (POEC) ou um Plano de Gestão (PG) elaborado por um técnico ou empresa independente acreditada pelo ICNF.

Os POEC referem-se às zonas de caça associativas e turísticas; os PG, às municipais. Nestes planos, é delimitado, por exemplo, o número máximo de animais que se podem caçar, por ano, na respetiva zona. “Quando eu faço planos, entrego ao presidente uma cópia ou o original que vai para o ICNF e a outra parte fica na associação. Todas as associações têm esses planos”, conta Manuel Varanda.

Até ao momento, o POEC da quinta da Torre Bela não é conhecido. A Renascença solicitou esse documentou ao ICNF esta terça-feira, mas ainda não obteve resposta.

Montarias “sem limites”

O número de 540 animais abatidos numa só montaria pode ser ultrajante, mas não é ilegal. Em Portugal, nenhuma montaria tem um limite de animais que se pode abater.

Em declarações à Renascença, Jorge Rentes, caçador e membro da Confederação Nacional dos Caçadores Portugueses, explica que cabe a quem organiza estes eventos ter bom-senso.

“No decorrer da montaria, a organização tem uma perceção daquilo que já foi abatido ou não e nessa circunstância pode aligeirar ou prolongar um bocadinho mais o ato de caça. Em vez de demorar três horas, pode demorar três horas e um quarto. Ou em vez de demorar três horas, pode demorar duas horas e meia, porque já se abateram muitas rezes, já está a gente toda satisfeita, vamos acabar. Basicamente é isto”, explica.

De acordo com o caçador, é “ultrajante” o número de animais abatidos numa só montaria na Azambuja. E totalmente desproporcional com a experiência do próprio.

“Há uns anos a esta parte, um quadro de caça com uma dúzia de javalis, doze ou quinze, dezoito, era excelente. Depois, é evidente e é verdadeiro que o javali proliferou, também é verdade que o gestor das zonas de caça começou a fazer um trabalho melhor, mas uma montaria que tenha 25, 30 javalis, é uma montaria excecional, excelente. Estou a falar-lhe da minha experiência enquanto caçador na zona de Trás-os-Montes. E zonas de caças municipais e associativas. Em zonas de caça turísticas, os resultados podem ser diferentes”, conta.

Para Jorge Rentes, o que ocorreu na quinta da Torre Bela não se devia chamar caça, mas sim um “atentado”. “O gestor daquela zona de caça se queria dizimar aquelas espécies tinha muitos meios para o fazer e não poderia, de maneira nenhuma, tomar esta iniciativa, e os caçadores que lá participaram, não deviam. Isto não é caça, não é atividade cinegética”, afirma.

PAN. Suspensão é “medida adequada”

Em declarações à Renascença, André Silva, deputado do PAN, afirma que a suspensão da licença de caça na quinta da Torre Bela parece “totalmente adequada”, tendo em conta que “tudo indicia para uma prática absolutamente imoral”.

"Na organização de uma montaria devem ter tidos em conta aspetos como o coberto vegetal da zona, para que possa constituir zonas de abrigo e de refúgio para os animais, para que estes se possam esconder. E aqui, neste caso em concreto, segundo os relatos, que nunca ninguém desmentiu - nem a empresa, nem a quinta - foi feito o precisamente o contrário. Foram, no fundo, encurralados centenas de animais junto a paredes ou a vedações em locais onde poucas ou nenhumas árvores existiam para os animais se esconderem, e, portanto, foram um alvo extremamente fácil para aquilo que poderemos considerar uma chacina”, afirma.

Segundo o deputado, o Ministério Público tem que investigar e perceber “se esta situação se enquadra dentro daquilo que é a atividade normal e regulamentada da caça e de uma montaria, em que no fundo são feitos abates a animais que são excedentes daquela espécie em determinadas condições.”

PAN. Há quatro partidos com responsabilidades políticas

Apurados os factos sobre a montaria, existem ainda responsabilidades políticas a atribuir, defende André Silva.

De acordo com o deputado, “se este caso tem algo de positivo, é trazer para o debate social e também político e mostrar à sociedade aquilo que é o cruel e tenebroso mundo da caça. Porque esta situação em concreto não é única, não é isolada.”

“O debate sobre as questões da caça e sobre o ordenamento cinegético tem estado completamente toldado por esta visão arcaica, retrógrada e puramente mercantilista da industria da caça. E sempre que o PAN, nos últimos cinco anos, levou iniciativas sobre a caça a debate no Parlamento elas foram rotundamente chumbadas pelo PS, PSD, CDS e PCP, sem terem mostrado qualquer abertura para fazer ajustes e evoluções na lei de bases da caça e acabar com alguns modos de caça”, atira.

André Silva defende, por isso, uma revisão da Lei de Bases da Caça, tendo em conta algumas das práticas “medievais” que são legais em Portugal.

“A lei da caça ainda prevê a caça à paulada, por exemplo. Ou a caça com recurso a matilhas, que mais não é que a institucionalização de lutas entre animais, consistindo na perseguição de até 50 cães a um javali ou a uma raposa, que quando se encontram lutam entre si, havendo situações de dilaceração de animais e no caso dos javalis, resultando inclusive em casos de ferimentos graves ou mortes de cães, que decorrem dessa mesma luta. Nós estamos a falar de modos de caça anacrónicos, que vêm do tempo medieval, que envolvem bastante sofrimento, bastante crueldade e que o setor da caça, a coberto destes quatro partidos, não quer mudar, não quer fazer qualquer tipo de evolução e qualquer tipo de alteração”, diz.

Esta terça-feira à tarde, o ministro do Ambiente já veio mostrar disponibilidade para mudar a lei, com o fim que as montarias passem a ter de ser comunicadas ao ICNF. Porém, avisou que a revisão não pode ser feita à pressa, "de uma noite para uma manhã”, devendo envolver também o Conselho Nacional da Caça, e que, por outro lado, não representa um ataque a essa atividade.

“Não temos aqui nada contra a caça e não vamos a correr fazer nada. Mas há uma coisa concreta, que é a das montarias, e essa sim pode reclamar uma alteração cirúrgica no curto prazo”, afirmou.