Indo eu, indo eu, a caminho do Rieu. “Ele trouxe a música clássica a toda a gente”
01-04-2019 - 08:00
 • Tiago Palma (reportagem) com Marta Grosso * (Altice Arena)

Não haverá em Portugal muitos fenómenos de popularidade como André Rieu o é. “Não, não se pode comparar ao Tony Carreira", garante quem sabe. O porquê de tamanho sucesso e de 11 atuações na Altice Arena (esgotadas ou próximo de vir a esgotar) só em 2019? Primeiro, o “todo” (leia-se: o espetáculo, com dança, bom-humor e um ritmo que é quase da pop) e não só “a música pela música”. Depois, porque, garante quem o admira – e foi de autocarro de Alcobaça até Lisboa só para o ver –, retirou à música clássica o peso do “elitismo”.

Passa já da hora de almoço. Mesmo à porta da agência de viagens, a Alcôa, aglomeram-se três dezenas de pessoas entre nesgas de sombra, o que num sábado, mais a mais àquela hora, em Alcobaça, é aglomeramento pouco visto. Uns bem engalanados, de vestidos vistosos, que só conhecem o lado de fora do armário quando a ocasião é festiva, e fatiotas com irrepreensível vinco na calça, colarinhos engomados com primor, outros um pouco menos de gala, dir-se-ia mesmo que num traje “domingueiro” – pela descontração –, não assinalasse o calendário que era sábado.

O autocarro chega não tarda. Anabela, que organizou a excursão a Lisboa, assoma-se da entrada, vai desdobrando, para trás e para a frente, as folhas que segura e riscando os nomes dos presentes, um por um. “Maria Verdasca, José Verdasca, Leonel Matias, Isaura Matias, Zilma Sousa, Vítor Feliciano, Maria Edite Tinta, Fátima Valentim, Sandra Bento, Maria Henriques...” Todos entraram. Mas Anabela, que reconhece os rostos a quase todos, rostos "da terra", dá pela ausência de dois. E procurou o microfone do autocarro. “Ora bem, pelas minhas contas, faltam duas aqui pessoas. O Jaime Varela e a Maria José Varela, estão?” Estavam. A motorista, Márcia, tem ordem para seguir. Mas não sem antes sintonizar uma estação no velhinho rádio do autocarro. Tenta, a custo, sintonizá-la, vem-lhe primeiro uma canção de Hailee Steinfeld, mas com Steinfeld vem “chuva”, encontra depois a sintonia da rádio Cister, de Alcobaça, a locutora anuncia-lhe que logo em seguida toca Fábia Rebordão, talvez por não gostar de fado, talvez porque a sintonia não era também ali boa, desliga o rádio e avança. Daquele que todos falam e anseiam, nem uma melodia para amostra – até porque não se conhece do maestro André Rieu uma cassete à venda e aquele rádio não toca outro formato.

“Meter o cinto de segurança. cinto-de-segurança. É obrigatório. Têm que meter o cinto. Cinto, por favor”, anuncia Anabela. Cintos postos, o autocarro arrancava, mas logo depois da reta vem uma subida, pára, Márcia coloca a primeira e começa muuui-tooooo leeen-ta-meeeee-te a subir. “Isto é íngreme, é íngreme”, justifica.

A viagem de autocarro Alcobaça-Lisboa faz-se em pouco mais de uma hora. Mas a viagem não seguiu logo, logo para Lisboa. Foi preciso, primeiro, ir parando, quase aldeia a aldeia, para recolher uns quantos excursionistas mais. Anabela era o “GPS” de serviço. “Há um casal que vai entrar no Facho. Portanto, temos que ir pela Vestiaria. Passamos a rotunda, cortamos à direita, passamos a Galp, o Continente, saímos ao pé do hospital, depois traseiras no Mosteiro, rotunda, depois vamos até perto dos Correios, que está lá uma senhora à espera, subimos à Vestiaria, passamos a Cela, Facho, e entramos na autoestrada em Alfeizerão.”

É Márcia quem dá o mote Rieu. “Pois. Não conhecia o senhor André, não. Eu nem era para vir hoje.” Então? “Só ontem à tarde é que me disseram ao que vinha. Se conheço? Desconhecia, desconhecia. Mas já fui ver à internet. Não é bem o meu estilo… [Pausa] Mas gosto de coisas novas, de artistas, assim, diferentes.” Apesar das muitas e muitas viagens para espetáculos que faz, raramente a motorista vai a um. Desta quase se decidiu a ir. Quase... “Uma colega minha disse-me logo, ‘oh, tens que ir!’, mas, pronto, sei quase sempre à última para onde vou e, quando sei, às vezes já está tudo esgotado”, desabafa. Começava então uma conversa sobre Rieu – e não só –, na frente do autocarro, entre Márcia e Anabela.

“Eu fui no dia 13 [de março] com um grupo, vou hoje outra vez, e vou novamente a 22 de novembro. Já tenho lista de espera grande de pessoas que não foram antes porque não havia bilhete. E há pessoas que foram no dia 13 e que vão seguramente em novembro, já se inscreveram. Gostaram muito e querem repetir”, começa por explicar Anabela, gracejando depois: “A mim, já só me falta ir tocar ferrinhos com ele, lá para cima, para o palco. Já sei as músicas de cor”. “As pessoas estão a começar a gostar de bandas”, analisaria a interlocutora motorista. E prossegue: “Eu gosto daquela banda portuguesa, aquela banda grande, esqueci-me do nome!, [Amor Electro?], Amor Electro também, também. Mesmo jazz e tudo. E ver o Bryan Adams, vai?”, questiona a motorista. “Esse está esgotado. Esgotou logo. Esse e o Eddie Bieber. [Justin Bieber?] Não é Justin, não. Eddie… Eddie… [Vedder?] Vedder!”

Segue-se na conversa o preço dos bilhetes, que vão de 40 a 120 euros para ver Rieu e a Johann Strauss Orchestra em Lisboa. “Agora imagine um casal: são logo 80 euros, para o balcão dois. Isto nos dias de hoje é dinheiro!”, lembra a proprietária da Alcôa. “Pois, o IVA [dos espetáculos] baixou, os preços é que não”, criticaria Márcia. “Sabia que os bilhetes para ver o Rieu em Viena de Áustria são mais baratos do que cá?” Depois da pergunta, retórica, Anabela procura explicar (apesar dos preços) o fenómeno de popularidade do maestro holandês. “Não, não se pode comparar ao Tony Carreira – embora tenha aqui gente que também foi ver o Tony. O espetáculo dele está todo pensado. Ele vai conversando com o público, embora fale muito pouco português -- mas tem um tradutor com ele --, costuma brincar nos intervalos das músicas, ele interage naturalmente com as pessoas, o espetáculo é tranquilo, agradável, há neve a cair, há balões, há depois um convite para dançar a valsa…. Os cenários também são muito bonitos, bem pensados. É diferente.”

Era, então, tempo de deixar a frente do autocarro e procurar os verdadeiros admiradores de Rieu. “Olhe, fale com o senhor António, que é maestro também.” Tem 81 anos. Trouxe consigo a mulher, que sorri durante a conversa, mas manter-se-ia muito parca em palavras até ao final. António apresenta-se. Sempre foi da música. E ainda é. “Estive muito tempo na filarmónica da minha terra, de Maiorga, em Alcobaça. Ainda faço parte da direção da Confederação Musical Portuguesa, que representa oitocentas-e-tal filarmónicas. Sou do secretariado da direção da Associação de Acordeões de Portugal. E do secretariado da Orquestra Típica de Alcobaça. Estou constantemente em festivais de bandas, em concertos, eu e a minha mulher.” Mas ver Rieu não é só um concerto mais. Ansiava vê-lo há alguns anos. Conheceu-o primeiro em vídeo, embora fale dele num trato quase íntimo. “Já o conhecia, já. Recebi uns vídeos dele há uns cinco ou seis anos, e estou farto de falar deste grande maestro que conheço a pessoas minhas amigas, mas estava longe de pensar que ainda um dia o vinha ver.” Porquê tremenda admiração? “Eu falo dele com paixão, não há ninguém que possa não gostar de música com ele à frente de uma orquestra. Porque ele é extraordinário na direção. Nós estamos habituados a ver os maestros, enfim, de costas, a dirigir, e ele é capaz de tocar também, de frente para o público. E comunica muito, muito mesmo.” Mesmo sem saber como vai ser ao certo, se vai ser realmente como acredita que será, António garante que “em novembro queremos vir outra vez”. A mulher sorri a acena que “sim”.

Anabela é-nos uma espécie de guia. “Está a ver ali aquele rapaz?, ele é que queria oferecer o bilhete aos pai e à mãe, mas o pai, com medo que esgotasse, antecipou-se e marcou ele a viagem connosco.” O pai é Luís, de 56 anos. Confesso admirador de música clássica – “não sou muito de autor, mas tenho coletâneas de música clássica e há determinados momentos em que me apetece pôr um CD e relaxar um bocado” –, descobriu Rieu pela televisão, num concerto que a televisão transmitiu. O que o atraiu, mais do que “a música pela música”, foi, diz, o facto de André Rieu “não ser elitista”. “Às vezes as elites não vão ouvir música clássica para a ouvir. É um pouco como nas touradas: as pessoas vão à tourada, quer sejam contra ou a favor, para serem vistas, porque dá um certo estatuto, uma certa imagem. Nós não vivemos disso, felizmente não vivemos disso. A música clássica já não é só para elites. Ele trouxe a música clássica a toda a gente”, explica.

Na frente, uma senhora queixa-se à do lado do frio. “De vez em quando sinto aqui uma coisa”, diz, apontando para a cara. “Pois, você é que está a levar com ele diretamente em cima. Mas eu não, por acaso não”. Márcia apercebe-se e alerta baixinho a Anabela, que prontamente pega no microfone. Pega e deixa-o tombar. Desmonta-se, volta a montá-lo, e dirige-se ao autocarro pelas colunas. “Bem dispostos? A motorista hoje é a senhora Márcia. O que precisarem da nossa parte, disponham. Vamos parar aqui nas Caldas da Rainha para entrarem as últimas pessoas e depois seguimos até Lisboa pela autoestrada. Boa viagem a todos e aproveitem, divirtam-se.”

A viagem segue a bom ritmo. Anabela sugere um último entrevistado, um casal, Fernando, de 65 anos, e Ilda, de 64. Fernando diz que tem 64. Ilda interrompe-o: “SESSENTA!” A decisão de ir ao concerto partiu do marido. “Ouvi o reclame na televisão e disse-lhe logo: ‘Temos de ir!” Também descobriu Rieu pelo concerto de fim de ano na TV. “Adorei ver e ficou-me logo na ideia que, se ele alguma vez viesse a Portugal, gostaria de o ir ver. Apareceu esta oportunidade e aproveitámos logo.” Ilda interrompe de nove: “Olha que ele é músico também!” “Já fui, já não sou. Toquei clarinete na tropa e na filarmónica, mas já não, já não”, explica. A ele como a tantos outros, Rieu toca Fernando pela aparente “simplicidade” com que se apresenta a quem não é conhecedor de música dita erudita. Porque não é só erudita a música de Rieu. “O espetáculo em si, no plano musical, vá, é muito diversificado, não é aquele reportório que acaba por maçar, tem música clássica, tem popular. É música que habitualmente não ouço muito, porque não passa na rádio. Ele traz-nos música que ouvimos muito poucas vezes, mas apresentada de uma maneira que nos fascina – e fascina ver e ouvir. Aquilo é muito bom, músicos do melhor que há, se procurarmos uma falha, ela praticamente não existe.”

Anabela recorre uma derradeira vez ao microfone. O autocarro acaba de estacionar no Parque das Nações. “Então… o autocarro vai ficar aqui estacionado. O concerto tem acabado por volta das onze e meia. Vou mostrar-vos o ponto de encontro, para quem quiser entrar comigo às sete e meia no Altice Arena. Até lá, temos tempo livre. Quando acabar, aconselho-vos que deixem sair as pessoas que têm pressa, porque nós não temos: o autocarro vai esperar por todos. Combinado? [Combinado.] Alguma dúvida? [Nenhuma.] Todos têm bilhete? [Sim.] Todos querem ir ver o concerto do André Rieu? [Siiiiiiiiiim!]”

E Márcia, a motorista que até quereria ir mas não tem bilhete, o que vai fazer para ocupar as (muitas) horas vagas? Afinal, pouco passa das quatro da tarde. “Como o tempo ‘tá bom, aproveito para fazer umas caminhadas. Depois sou capaz de ir ao shopping. E quando vir que a coisa está mais calma, venho para o autocarro e durmo um bocadinho.”


Então é por isto que tanta gente quer ver André Rieu! *

Balões, neve, maracas e dança foram alguns dos componentes do concerto que André Rieu deu no Altice Arena, em Lisboa. “Disseram-me que o público mais musical do mundo vive em Lisboa. É verdade?”, perguntou à audiência, que respondeu com o sonoro “sim”. “Também me disseram que o público que melhor canta também vive em Lisboa. É verdade?”, questionou, obtendo a mesma resposta entusiasmada da plateia. “Então vamos pôr isso à prova”, disse. E começou a tocar o refrão da música italiana “Volare”, em que o público entoou a parte do “oh oh oh oh”. “Fantástico!”, reagiu o violinista natural de Maastricht.

E todo o espetáculo foi assim: em contínua comunicação com o público. Entre cada peça musical, André Rieu conta uma história, um episódio da sua vida para obter uma reação das pessoas e fazer a transição para a peça seguinte. Tudo com a ajuda de Joana Cruz, a locutora da RFM que, em palco, no primeiro dia, fez a tradução simultânea, acompanhando o bom humor do maestro da Orquestra Johann Strauss (nos dias seguintes, a tarefa foi assumida por Vanessa Oliveira) .

Antes do espetáculo, a expectativa é grande. Entre grupos mais animados e outros mais comedidos, todos esperam ver em Lisboa aquilo a que estão habituados a ver na televisão e no Youtube: um concerto divertido, com muita música e algumas surpresas. “Adoro este senhor. A vivacidade, as valsas, a maneira como ele consegue estimular-nos para a música. Estava disposta a fazer uma viagem para fora de Portugal para o ir ver”, admite Maria de Fátima, 61 anos, que chega de Faro.

De Vila Nova de Gaia vem Natália Guedes, com quase 52 anos (“daqui a uma semana”). É a mais entusiasmada de um grupo de seis amigas que veio para Lisboa de avião e volta de autocarro. “Gosto de música clássica do género que ele toca: alegre, divertida, solta emoções cá para fora”, diz, confessando que adoraria “ir vê-lo no castelo dele... era o meu sonho”. Antes disso, faz tenções de voltar a Lisboa para um concerto em novembro. “Estou à espera que faça concertos mais para apanhar o fim-de-semana, para eu poder trazer a minha filha”, afirma à Renascença, na esperança de que venham a ser marcadas mais datas.

Filomena, de 61 anos, chega de Aveiro. Veio num grupo de 50 pessoas da Casa do Pessoal do Hospital de Aveiro. Assim que foi divulgada a informação de que André Rieu iria atuar em Lisboa e que haveria uma excursão, “não descansei enquanto não reservei quatro bilhetes”. “Leva-nos a gostar de música que não estamos habituadas a cultivar e adoro ouvi-lo”, justifica.

“A música, a alegria, o espetáculo que ele proporciona”, confirma outro senhor que veio de Alcobaça de propósito para o concerto. É amigo de Vítor Surgy, de 70 anos, e com ligações ao mundo da música. “A mais-valia são as harmonizações que faz e que insere no espetáculo. É evidente que ele tem uma carreira muito longa e, portanto, já tem uma série de chavões que já aprendeu e agora sabe o que funciona”, afirma o amigo de Lisboa sem retirar valor ao músico holandês. “Consegue pegar nos clássicos, dar-lhes uma volta e fazer com que mais pessoas os ouçam”, reconhece. E esse é o (reconhecido) grande mérito de André Rieu.

Passado pouco tempo, o público começa a preencher os lugares vazios. Começam as “selfies”: ninguém quer perder a oportunidade de partilhar o momento. Depois, a foto geral do espaço, com incidência no palco, decorado a preceito num cenário romântico, em tons rosa e branco, decorado com flores e a dar a entender que estamos numa praça, ao lado de uma igreja. Tudo está ali por uma razão. Até o porta-chaves com uma luzinha, dado à entrada. Peças de um puzzle que se vai compor ao longo de um espetáculo de mais de duas horas, contanto com o intervalo de 10 minutos e outros tantos (ou mais!) de encores.

“Sou uma pessoa muito feliz”, afirmou várias vezes o violinista holandês. Porque tem como profissão fazer música, porque cantou num coro em criança (e “está cientificamente provado que cantar e cantar em conjunto traz felicidade”) e porque está “há 32 anos em palco com a sua Orquestra Johann Strauss”. E a verdade é que a boa disposição reina do princípio ao fim do espetáculo, que começa e acaba de uma maneira diferente do que se poderá estar à espera. Até da parte do público.