​Orçamento para 2020 não passa da cepa torta
10-01-2020 - 17:52

Piora a economia? Não. Tem alguma novidade especial? Também não. Vai ficar na história? Vai. E daí o paradoxo. Um orçamento que não traz nada de novo, repete quase tudo nas virtudes e nos defeitos, mas consegue um numerozinho mágico que nos faz recuar aos tempos de Salazar. Portugal vai ter este ano um excedente orçamental.

Que orçamento é este de que só o PS gostou e parte para o debate na especialidade à espera de se tornar uma manta de retalhos? A resposta pode ser: um orçamento que, até podendo verdadeiramente ser o melhor dos últimos cinco anos, é sobretudo mais do mesmo e, como os restantes, não vai retirar Portugal da cepa torta.

Piora a economia? Não. Tem alguma novidade especial? Também não. Vai ficar na história? Vai. E daí o paradoxo. Um orçamento que não traz nada de novo, repete quase tudo nas virtudes e nos defeitos, mas consegue um numerozinho mágico que nos faz recuar aos tempos de Salazar. Portugal vai ter este ano um excedente orçamental.

São 533 milhões. “Poucochinho” (na terminologia de Costa), mas de boa vontade. Para quem não esteja muito a par da contabilidade pública diz-nos que, desta vez, e pela primeira vez em democracia, as receitas são superiores à despesa.

É um excedente ligeiramente menor que os 590 milhões de despesa que segundo a UTAO o Governo inscreve na coluna na despesa num dos quadros e faz desaparecer sem mais explicações assumindo que simplesmente não serão gastos, não especificando onde os vai cortar (acrescentando-os aos assumidamente congelados, cativados, dotações provisionais e reservas orçamentais, etc…).

A UTAO acusa o Governo de falta de transparência, e não acha que possa explicar-se a poupança pela simples diferença de cálculo entre a chamada contabilidade de “caixa” e a contabilidade nacional “compromissos” (única que conta para Bruxelas). Além disso a unidade técnica independente nota ainda que as poupanças recaem apenas sobre as despesas da administração central, pelo que parece pouco normal que o Governo não diga onde pretende “poupar” e insista em obter autorização para gastar mais quase 600 milhões do que precisa tornando cada verba totalmente indefinida. Mas isso são, para o primeiro-ministro “tecnicidades”.

A primeira vez que tais diferenças criaram perplexidades, Manuela Ferreira Leite teve que dar explicações linha a linha aos jornalistas. Incluiu mesmo um quadrinho que fazia, uma a uma, a variação das várias rubricas na aplicação dos dois métodos contabilísticos. A grande diferença entre os métodos dominantes para medir as contas do Estado está em que um dos métodos de cálculo tem em vista entradas e saídas “de caixa” (contabilidade pública) e o outro método é mais abrangente e inclui os compromissos assumidos, tenham ou não sido concretizados no ano a que se referem (contabilidade nacional, que Bruxelas usa).

Estes 590 milhões, que se “evaporam da despesa”, não têm nada a ver com isto. São mero corte. O que há uns anos se chamaria “saco azul”. O pior é que o saco pode estar numa única ou em todas as rubricas pelo que os limites máximos de despesa passam a ser apenas isso: máximos autorizados, mas deixam de poder ser vistos como aproximados do que se quer gastar como até aqui.

Claro que 590 milhões de diferença tornam um bocadinho obscuro o documento irritando profundamente a oposição assumida e “a abstencionista” porque nenhuma delas sabe se o que está a autorizar como despesa é para ser efetivamente gasto ou não.

Para cúmulo, este ano António Costa cometeu um erro “colossal”, no debate na generalidade, quando em resposta a Rui Rio que insistia em saber onde estava o “Wally” (ou melhor, onde estavam os 590 milhões de despesa desaparecidos entre quadros).

O primeiro-ministro respondeu com uma verdade arrasadora: 500 milhões não passam de uma “minudência” num orçamento onde a despesa total ultrapassa os 96 mil milhões. São uns escassos 0,6 por cento!

Isso mesmo. O pior é que o que diferencia o orçamento de 2020 dos restantes quatro já apresentados é essa magnífica minudência de 300 milhões (0,3 por cento do PIB!) que consubstanciam o retorno aos gloriosos anos do salazarismo de contas certas, sem nada de novo face aos anteriores nem nos defeitos, nem nas virtudes, nem sequer nas incertezas, nos buracos negros, na margem de arbitrariedade para a respetiva execução e sobretudo na escassez das enormes conquistas traduzidas em verbas que raramente ultrapassam a centena de milhões.

Há mais dinheiro para os transportes? Finalmente. Mas são só 15 milhões. E apoios aos jovens em matéria de IRS? Há, mas são apenas 25 milhões. E reforços no IRS apoiando o segundo filho com menos de três anos? Também, e chegam aos 25 milhões de receita perdida. Reforços no apoio aos cuidadores informais? Idem, com despesa prevista de 30 milhões. E quanto a melhores prestações de parentalidade? Outros 30 milhões. Os funcionários públicos, além da minudência de mais de 500 milhões resultantes do descongelamento de carreiras e congéneres, se não fizerem muito mais barulho conseguem o anunciado aumento de 0,3 %, o que já vale uma reserva de 70 milhões.

Tudo somado, trata-se de uma minudência e cinco “nano-minudências” de louvar.

Em matéria de apoios à habitação, se totalmente executados (o que é altamente duvidoso que venha a acontecer…) teremos 136 milhões disponíveis, o que já podemos classificar como uma “micro-minudência”. Já os reforços para a saúde, atingindo a dimensão do “Wally” perdido por Rio (524 milhões) vale como desejável “pequena minudência” na designação de Costa. E os 605 milhões de reforço orçamental no investimento em programas estruturais atinge a classificação de “média-minudência” a celebrar.

Esta soma de nano-micro-média- ou mesmo simples minudências são a margem disponível à custa de outros tantos milhões de reforço da receita conseguida aqui e ali, sem dar muito nas vistas e sem ultrapassar, na maioria dos casos, as “boas intenções”.

Pagar mais pelas bebidas, pelo tabaco, pelo açúcar, pelo sal, pela assistência a espetáculos tão tontos e cruéis como as touradas, além de pagar mais pela utilização dos automóveis (quando já há passe família!) e pelo uso do petróleo e congéneres não pode ser senão visto como pequenos saltos civilizacionais.

Resumindo: para os portugueses pouco muda e quando muda é para os ajudar (a deixarem de beber, fumar, poluir, etc…). Se o PCP e o Bloco fizerem bem o seu trabalho, em comissão, é possível que as taxas moderadoras acabem mais depressa e se reduzam as propinas e os cuidadores informais acabem mais ajudados (os visados irão agradecer!).

No mais a vida há de continuar a correr como habitualmente, com uma pequena diferença: PCP, BE, PAN, PEV, e Livre e os três deputados madeirenses, farão de Pilatos votam pela abstenção enquanto votam contra a IL, PSD,CDS e Chega que continuarão a malhar “na esquerda moderada”, com esta reduzida ao PS. Para Costa o ano não vai ser fácil e Portugal não vai passar, outra vez, da cepa torta. Não vale a pena emigrar. Também, não é caso para tanto.