Inteligência Artificial. Portugal “está uns passos atrás", mas "tudo bem", diz portuguesa que Biden contratou
30-07-2021 - 08:00
 • Fábio Monteiro

Marcelo consultou-a a propósito do Plano de Recuperação e Resiliência. É CEO e fundadora da DefinedCrowd, uma das melhores startups para trabalhar nos EUA, diz a Forbes. E, em junho, foi escolhida pela administração Biden para integrar o grupo que vai desenhar a estratégia para a Inteligência Artificial do país. Em entrevista à Renascença, Daniela Braga fala sobre o peso da responsabilidade que agora tem nos ombros, do caminho que Portugal ainda tem a trilhar no campo da IA e até sobre o futuro distópico que já dá sinais de estar aí ao virar da esquina.

O Governo português ainda está com a questão da digitalização no colo, por isso não está na a pensar na Inteligência Artificial (IA). “Está uns passos atrás. Tudo bem, é preciso fazer o caminho”, diz Daniela Braga, CEO e fundadora da DefinedCrowd, startup especializada na recolha, processamento e estruturação de dados de treino para inteligência artificial, à Renascença.

O cenário não é trágico. “Portugal pode realmente montar uma área e fazer um 'spearheading', criar uma iniciativa de IA à escala europeia e estar na vanguarda. Acho que tem todas as condições para o fazer. Nós temos empresas cada vez com mais nome ao nível mundial e unicórnios que poderão não ser de IA, mas são 'powered by' IA. Não há nenhum setor na próxima década que não vá estar 'powered' por IA”, afirma.

Em junho, o nome da portuguesa, natural do Porto e emigrada nos EUA, foi um dos 12 anunciados como parte da National Artificial Intelligence Research Resource Task Force, grupo que a administração de Joe Biden montou com o propósito de ajudar a desenhar a estratégia para a IA nos EUA.

Nesta entrevista conta qual o trabalho que já está a desenvolver dentro da 'task force' para a Casa Branca, revela as dicas que deu a Marcelo Rebelo de Sousa sobre como investir os fundos do PRR no setor tecnológico e assume que “morre de medo” de um dia descobrir que os serviços que a DefinedCrowd fornece venham a estar associados a um caso de espionagem.

Comecemos pelo óbvio: parabéns, Daniela. Parabéns pela nomeação para o grupo que vai ajudar a desenhar a estratégia para a inteligência artificial nos EUA.

[Risos.] É uma grande trabalheira, mas sim.

Como e por via de quem é que recebeu a notícia?

O contacto inicial foi feito pelo nosso Senior Vice-President of Global Sales [na DefinedCrowd], que conhecia alguém no office do CTO (Chief Technology Officer) da Casa Branca. Ele disse: estou a trabalhar para esta empresa fantástica, com uma CEO fantástica, e eles quiseram logo falar comigo. Vinte e quatro horas depois, a Dra. Lynne Parker, que é a pessoa responsável pela 'task force' de Inteligência Artificial, uma professora na Universidade do Tennessee, com um currículo super credível, convidou-me formalmente.

Somos 12. Há mais uma pessoa de Seattle [cidade em que reside e onde está sediada a DefinedCrowd], mas essencialmente estou a representar a indústria. A composição da task force é quatro académicos, quatro do Governo [norte-americano] e quatro da indústria.

E os trabalhos da task force, entretanto, já começaram?

Começaram ontem [28 de julho]. E é informação pública. Neste momento está a decorrer uma audição RFP (Request for Proposal) pública (pedido de contributos e propostas) para até ao dia 1 de setembro, nos darem input sobre o plano. Que é bastante agressivo.

Temos reuniões mensais, agora. É uma honra, mas também é um dever, como cidadã americana.

Sente o peso da responsabilidade?

Sinto o peso da responsabilidade e não é pouco. [Risos.] Ontem, por acaso, uma pessoa que está na nossa task force, disse: "Bem, nós estamos a representar o nosso setor. É difícil, às vezes, uma pessoa ser imparcial." Ela está a representar o setor dela, mas também há todo um código de ética em relação ao conflito de interesses, que é difícil não evocar. Conflito de interesses neste sentido: nós temos opiniões muito fortes, todas aquelas pessoas na task force têm, mas tem muito a ver com a nossa experiência individual.

É difícil representar um setor tão grande. Estamos nós a representar bem o setor? É por isso que é importante tentar envolver as pessoas, estar atenta aos contributos da audição pública, para confirmar que as nossas opiniões são realmente representativas.

Em junho, em entrevista à RTP1, explicou que o objetivo da task force é delinear uma estratégia para “expandir o acesso a recursos críticos e ferramentas educacionais que estimulem a inovação da Inteligência Artificial e a prosperidade económica a nível nacional”. Enquanto licenciada em Linguísticas, mestre em Linguística Aplicada e doutorada em Tecnologias da Linguagem, consegue traduzir isto em exemplos?

Sim, por acaso, ontem já me foi atribuída uma subtarefa que são os 'data resources' – obviamente. Faz todo o sentido, na minha carreira pessoal e na área em que trabalho há tantos anos. Venho de um 'background' de linguística e data for cognitive services (transformação de voz e texto em dados). Mas a IA é mais que cognitive sevices.

Vou estar responsável por tudo que são dados, no nosso subgrupo. Sejam eles de atividade sísmica, de mobilidade ou parte oceânica ou de clima.

Os dados de linguagem natural são os mais difíceis de trabalhar, sinceramente. Portanto, eu venho já com esse bom 'background', em que tudo o resto é mais simples, mas que tem que ser. Não vamos conseguir 'boil the ocean'; há tantos dados que vamos ter de escolher um conjunto de dados para democratizar, para tornar mais acessíveis, para recomendar ao congresso programas de financiamento para essas áreas, que são importantes na economia nacional. Portanto, não é só 'cognitive services', mas a experiência que tenho é muito relevante, obviamente, para permitir fazer diretrizes, no que toca à questão de privacidade e anonimização dos dados, áreas que vão ter mais impacto economicamente.


Neste momento, consegue já apontar algumas prioridades?

Só tenho que mapear. Por exemplo, estou muito envolvida numa questão que é semelhante na Europa, mas eu tenho de mapear as necessidades nacionais, americanas, com o mesmo conceito. O que pode mudar é a área. Por exemplo, se na Europa é mais a questão da energia, a questão do ambiente, aqui [EUA] talvez não seja. Aqui provavelmente, até podem ser outras. Até pode ser a área bancária, provavelmente.

Como bom país liberal.

Exatamente. Temos de ver quais são as áreas de grande impacto, em que valha a pena investir e recomendar ao congresso. Isto são recomendações para haver realmente programas de financiamento, para disponibilizar dados e para que as empresas trabalhem em cima deles, estruturem, criem aplicações. Vai ser muito interessante, mas é uma grande responsabilidade. Há muito para fazer aqui.

Historicamente, os presidentes norte-americanos têm o hábito de chamar os melhores especialistas dos seus campos, sempre que precisam de aconselhamento, independentemente do setor em trabalham – um pouco como vemos no cinema, na verdade. Se o Governo português também começasse a investir e preocupar-se seriamente com a IA, imagina que também teria sido chamada?

Espero que sim. Já estou a dar as minhas recomendações antes sequer de o Governo português ter criado uma iniciativa. O Governo português ainda está na questão da digitalização, ainda não está na IA. Está uns passos atrás. Tudo bem, é preciso fazer o caminho.

Mas é verdade que já fui consultada pelo Presidente da República, por exemplo, para dar 'input' sobre o PRR. E isso não foi na parte da IA necessariamente, mas foi na parte de investimento nacional. Acho que já estamos a ir no bom caminho.

Portugal pode realmente montar uma área e fazer um 'spearheading', criar uma iniciativa de IA à escala europeia e estar na vanguarda. Acho que tem todas as condições para o fazer. Nós temos empresas cada vez com mais nome ao nível mundial e unicórnios que poderão não ser de IA, mas são 'powered by' IA. Não há nenhum setor na próxima década que não vá estar 'powered' por IA.

Gostava de saber uma das recomendações que deu ao Presidente da República.

Em vez de pulverizar os investimentos como tradicionalmente a Europa faz – não é só Portugal – por 200 iniciativas, temos de escolher umas dez e realmente apostar bem, apostar mais forte e em muito menos iniciativas. É verdade que com este sistema há microempresas não vão sobreviver, vão perder o seu balão de oxigénio, mas não sobreviveriam em qualquer mercado.

Falemos um pouco sobre a sua empresa. Quando é que a DefinedCrowd vai à bolsa?

Ainda não. Neste momento, estou muito ocupada. Lá chegaremos.

Ainda é vantajoso para a DefinedCrowd ter uma parte significativa da sua equipa em Portugal? Ou é uma questão afetiva?

É claro que é uma questão afetiva. Foi uma questão inicial. Foi sempre. O meu coração está em Portugal, é difícil não ter uma base em Portugal. Mas também quero muito que Portugal atraia talento estrangeiro. Aliás, nós temos 36 nacionalidades na empresa. Portugal é um ótimo polo de atração também pela qualidade de vida, pela segurança.

Portugal faz um bom trabalho de vistos tecnológicos, para atrair pessoas de fora com uma isençãozinha... não é uma isenção fiscal, é um abate fiscal, um abate fiscal mais atrativo. Ainda há vantagens económicas em ter empregados em Portugal, mas depois existe outra desvantagem: ser muito difícil contratar. Em empresas tecnológicas como a nossa, é muito normal haver rotação de talento. Por variadíssimas razões.

A DefinedCrowd recolhe, estrutura e enriquece bases de dados para inteligência artificial e serve alguns dos gigantes tecnológicos – Microsoft, Google, Amazon, Sony, IBM, Mastercard. Com tantos casos de violações de privacidade noticiados nos últimos anos, não têm receio que os produtos e serviços que a DefinedCrowd oferece possam ser utilizados para fins menos lícitos?

Morro de medo disso. Todos os dias. [Risos.] Sobretudo porque eu não sou uma 'hacker', não sei bem o que é que pode acontecer. Eu confio na nossa equipa. Acho que estamos bem entregues. Por acaso, não sei muito bem como é que estamos a trabalhar na parte da segurança – mas usamos serviços bem credibilizados de segurança. Temos que comprar serviços para nos manter protegidos.

Temos um diretor de segurança com um 'track record' muito bom e estamos em boas mãos. Mesmo assim, morro de medo todos os dias.

Consegue imaginar como iria reagir com um caso negativo?

Eu já vivi isso, na minha carreira, para começar. É a coisa mais assustadora do mundo. Noutra empresa vivi isso, não foi um ataque cibernético, mas foi um leak (fuga) – porque os dados tiveram que ser tratados em 'crowdsourcing', que é também um pouco o que nós fazemos. O me aconteceu no passado não nos acontece na DefinedCrowd, porque temos toda uma maneira de anonimizar os dados antes de irem para a 'cloud'. E se forem 'client data' nem sequer vão para a 'cloud'.

É absolutamente horrível ter que explicar ao cliente como é que de repente está nos media um 'leak' dos dados deles. No caso, não se conseguia perceber a fonte. Então, houve confusão se eram dados da Apple ou dados da Google – era para a Samsung que estávamos a trabalhar –, mas seja como for, os media não perceberam, porque imediatamente foram atacar o gigante maior na corrida.

Estamos a pagar certamente a muitos serviços de cibersegurança, é uma coisa que não está nas minhas mãos. Se acontecesse, meu Deus, era uma situação muito difícil de recuperar. Muito difícil.

Em 2019, disse numa entrevista que um dos seus objetivos é que, no prazo de cinco anos, “possamos falar e ser compreendidos por qualquer máquina, tal como se estivéssemos a conversar com outro ser humano”.

E acho que isso é possível.

Mas deixou uma ressalva nessa conversa: este tipo de funcionalidade ia criar “algumas questões éticas”. Já pensou que questões são essas?

A questão da desumanização da interação. Se nós já temos as nossas crianças a substituírem as relações físicas pelas relações virtuais nas redes sociais, o próximo passo é quando nós humanos começarmos a ganhar uma relação afetiva com uma máquina. Porque a máquina é quase tão parecida, é tão indistinguível de um ser humano, que vamos chegar aí, que é possível quase simular emoções e sentimentos. A pessoa, a certa altura, começa a escolher o mundo virtual, o que é mais frequente que se imagina.

Tudo que é 'gaming', as gerações mais novas… começo a estar muito preocupada com crianças e IA e esse tipo de coisas. É preocupante. Quando as relações se desumanizam de tal forma que são substituíveis por relações artificiais com máquinas.

Como no filme Her.

Exatamente. Agora, também uma outra linha [de pensamento] em que a máquina começa a tornar-se senciente. Isso não é daqui a quatro anos. Mas tornar-se senciente é a máquina começar a desenvolver sentimentos e a certa altura começamos a ter de colocar a questão: vamos elevar a máquina a um estatuto de quase cidadania ou não?