D. Jorge Ortiga: "A gravidade da situação ultrapassa as nossas capacidades"
17-05-2021 - 07:02
 • Henrique Cunha

Bispo há quase 33 anos, D. Jorge Ortiga tomou posse dos destinos da arquidiocese de Braga a 18 de julho de 1999. Nesta entrevista, revela que nas mais de duas décadas como Primaz de Braga nunca encontrou situações de “pobreza envergonhada” como as que agora lhe entram pelo gabinete.

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O arcebispo de Braga, D. Jorge Ortiga, considera precipitado começar a fazer de imediato um balanço da atual crise, afirmando que “a caracterização do momento só deve acontecer quando a pandemia nos deixar um pouco mais libertos e quando as consequências de tudo aquilo que aconteceu e está a acontecer nos mostrar as evidências reais da situação social”.

D. Jorge Ortiga não deixa, contudo, de sublinhar que “a gravidade da situação atual ultrapassa as nossas capacidades” e aponta as inúmeras situações que “chegam, quer às paróquias quer às conferências vicentinas, e de um modo muito concreto à Cáritas”. O conjunto de situações mostra “que a pobreza tem muitos rostos”.

D. Jorge diz que “um dos rostos da pobreza, sobre o qual é preciso refletir, é o da pobreza envergonhada”, pois “são variadíssimas as pessoas que tinham um nível de vida razoável, com hábitos concretos de bem estar relativo, e que hoje têm vergonha de solicitar qualquer ajuda e, porventura, de recorrer a qualquer rede social ligada mais com as autarquias".

"Confidencialmente, acabam por vir ter connosco a pedir aquilo que é indispensável para a sua alimentação, mas também para pagar uma luz, uma água e sobretudo rendas de casa”, acrescenta o arcebispo.

“Aquilo que me parece uma constante é o pedido de uma contribuição para poder pagar os seus compromissos com as rendas de casa”, adianta D. Jorge, que tem a perceção de que “a situação é tendencialmente mais grave".

"A cada dia que passa, a situação vai-se agravando”, reforça.

O bispo está sobretudo preocupado com “as pequenas empresas, algumas mesmo familiares, que não conseguiram vencer as dificuldades e que só conseguem sobreviver devido às chamadas moratórias, que, em conjunto com o '"lay off' se revelam uma ajuda preciosa”.

“Mas aquilo que nos parece real é que, passando a realidade das moratórias e do 'lay off'. muitas dessas empresas familiares irão para insolvência e, porventura, também para a falência, com tudo o que isto possa significar”, constata o prelado, defendendo ser “necessário repensar esta questão, até porque existe alguma perplexidade sobre como vai ser, no futuro, sem essas ferramentas de apoio”.

IPSS: é urgente que o Estado reconheça o seu "papel político"

A apreensão do arcebispo de Braga aumenta pelo facto de “as nossas instituições começarem também a ter menos possibilidades”, embora "a generosidade do povo" se vá revelando "digna de todos os elogios”.

"A arquidiocese tem um número significativo de centros sociais paroquias, são mais de duzentos, e não vou dizer que estão a passar um período de grandes dificuldades, mas claro que passam dificuldade”, porque “são cada vez mais as exigências do Estado."

"Todos nós sabemos qual é a comparticipação que o Estado vai dando para essas instituições de solidariedade social. A comparticipação do Estado, toda a gente sabe, está situada na ordem dos 38 por cento da despesa, o que é nitidamente insuficiente”.

“É um assunto sobre o qual se tem falado imensas vezes e que não tem encontrado a resposta. Parece-me que é urgente sentarmo-nos à mesa e reconhecer o trabalho 'político' que as nossas IPSS'S desenvolvem”, defende o arcebispo de Braga.

D. Jorge sublinha que apenas fala de “situações concretas”, pois “não gosta de alarmar”. Todavia, não é possível "adiar este debate, porque a situação exige uma resposta diferente”.

A necessidade de uma Igreja próxima, capaz de "dar respostas"

O arcebispo de Braga encontra grande dificuldade em dizer se a pandemia lhe causou mais preocupações pastorais ou sociais, porque, no atual contexto, “é muito difícil separar a vertente pastoral da vertente social”.

"Quando me envolvo na parte pastoral, eu estou a pensar no social, e vice-versa”. Instintivamente, diz o arcebispo, “preocupamo-nos mais com a parte pastoral, com aquilo que podemos fazer”, mas o que é certo é que “também temos de “estar atentos à realidade social”.

“Hoje, mais do que nunca, a Igreja não pode continuar com algumas teorias bonitas, a partir da sua doutrina, particularmente da sua doutrina social, fazendo discursos interessantes. Hoje, a Igreja tem que sair para ir ao encontro das situações concretas, analisá-las, fazer um verdadeiro diagnóstico e sobretudo elaborar respostas”, defende D. Jorge Ortiga.

Ao olhar para “a realidade social do nosso povo, em conjunto com os nossos sacerdotes e também os leigos mais empenhados e ainda com as comunidades”, o prelado de Braga não tem dúvidas de que é fundamental trabalhar na procura de “uma Igreja rosto de Cristo, que quer ser caridade, que quer ser amor”.

“Se quisermos, numa linguagem que estamos a usar muito neste ano pastoral da arquidiocese, uma Igreja que quer ser samaritana”, explica o arcebispo que chama a atenção para o facto de que “quando ainda ninguém pensava na pandemia, talvez por uma simples coincidência a arquidiocese, depois de ter dedicado três anos pastorais aos desafios que a fé nos coloca hoje, e outros três à esperança, tivesse decidido anteriormente que este triénio seria dedicado à caridade."

As marcas da pandemia e o sentido de comunidade

“Eu penso que é bom que esta pandemia deixe ficar marcas, até porque não podemos ignorar que, durante anos, fomo-nos habituando a facilidades. A sociedade de consumo impôs as suas regras. A realidade da globalização, com tudo aquilo que ela propõe através dos meios de comunicação social, propos-nos uma vida mais ou menos de facilidade, onde é possível ter tudo, onde eu quero e, porque quero, tenho. Criou-se esta mentalidade de uma felicidade alicerçada naquilo que se tem e esqueceu-se que a felicidade é resultado daquilo que se é”, sublinha D. Jorge.

"Gostaria de poder dizer que esta pandemia nos vai trazer um resultado positivo, particularmente, neste aspeto de reconhecermos que a nossa vida não é uma vida solitária, tem que ser uma vida solidária. O que é totalmente diferente."

Para o arcebispo de Braga, só “vivendo uns com os outros e só uns com os outros é que nós conseguiremos ultrapassar as dificuldades da vida e só juntos podemos organizar o nosso presente e o nosso futuro”.

“A pandemia falou-nos disso. Falou-nos da vulnerabilidade das pessoas, da doença que afeta a todos, da igualdade de todos e disse-nos que, efetivamente, estávamos no mesmo barco”, acrescenta, inspirado na ideia do Papa Francisco.

D. Jorge Ortiga apela a “esta consciência de que dependemos uns dos outros”, reforçando que esta “é uma grande lição a tirar da pandemia”, a de “acreditarmos que o imprescindível na missão da Igreja e depois também nas pessoas é o relacionar-se com os outros, pois, não sou eu e os outros, mas somos nós”.

“Se nós, Igreja, conseguíssemos inculcar esta grande conclusão do período que estamos a viver, com certeza que estaríamos a aproveitar esta pandemia transformando em graça toda a sua dimensão negativa”, reforça.

Seguindo esta linha de raciocínio, o arcebispo de Braga alerta para a necessidade de estes princípios começarem a ser praticados nas comunidades paroquiais, pois “é nas nossas comunidades paroquias que teremos de trabalhar para que elas sejam efetivamente comunidades porque nem sempre o são”.

D. Jorge Ortiga elege, por isso, “o trabalho desta vertente comunitária” como o grande desafio da Igreja, para que vingue “este sentimento de pertença a uma comunidade, de espírito de entreajuda, e de comunhão”, pois “é esta dinâmica que importa desenvolver”.

"Até agora, estivemos demasiado fechados no culto, com aquilo que significa o culto uma relação individualista com Deus e em que me esqueço da fraternidade, do irmão que está ao lado”, diagnostica o prelado, para concluir que “enquanto não formos capazes de ir até Deus pelo irmão. será mais difícil o caminho”.

Nestas circunstâncias, D. Jorge afirma que “as comunidades têm de ser de coração aberto, coração samaritano atento aos problemas para procurar responder a pessoas que vivem num determinado território e que porventura são de outras religiões, são de outro credo, são de outra raça, que ninguém as vê na Igreja, mas às quais é necessário prestar uma atenção particular”.

“O caminho da Igreja passa também por aí. Passa por ir ao encontro dos outros”, sustenta o arcebispo de Braga.

A solidariedade e os riscos dos extremismos

D. Jorge Ortiga insiste na defesa de uma maior atenção ao outro como forma de contornar os riscos dos extremismos e populismos que o atual momento de crise potencia.

“Não tenho dúvida nenhuma de que esta situação em que muitas pessoas, mesmo psicologicamente, não se sentem realizadas e felizes, têm a tentação de aderir àquilo que é mais fácil, de se deixar levar por algumas situações que não são as mais oportunas e as mais convenientes”, alerta.

D. Jorge entende que “o populismo é uma delas” e que “outras situações, como o terrorismo, exigem o tal criar de uma mentalidade nova de mais atenção, de mais presença no mundo, de mais atenção uns aos outros”.

“Como diz o Papa na 'Frateli Tutti', nós, efetivamente, somos irmãos e, enquanto não descobrirmos isto, será muito difícil e o fundamentalismo é um risco”, declara.

Mesmo em contexto de pandemia, a arquidiocese de Braga nunca perdeu de vista a importância da solidariedade. Para além “de procurar encontrar respostas para as situações de emergência social de que já falamos”, D. Jorge Ortiga lembra o esforço que continua a ser feito “para ajudar o povo sofredor de Moçambique e em particular da região de Cabo Delgado”, onde o terrorismo já provocou mais de 2.500 mortes e acima de 700 mil deslocado".

O arcebispo de Braga recorda que a arquidiocese atssumiu “a paróquia de Santa Cecília de Ocua, na Diocese de Pemba, que é uma paróquia composta por 98 lugares”, onde “já construiu uma residência e onde tem o projeto de construção de uma escola”.

Odemira, "uma situação incompreensível"

“Para mim é uma situação incompreensível”. O arcebispo de Braga não consegue compreender como é que a situação de Odemira passou despercebida, pois “não se trata de duas ou três pessoas, trata-se de um número significativo de pessoas e portanto, não era difícil saber onde é que estavam a viver e em que condições estariam a viver".

"Custa-me, efetivamente, verificar como é que nós não nos apercebemos desta situação e tenho receio que possam existir outras,"

D. Jorge junta à sua incompreensão a tristeza e preocupação “de que se fale de Odemira, agora, durante uma semana, mas que, depois, as coisas deixem de ser faladas e deixem de ser pensadas”.

O que se está a passar no Alentejo é um alerta, na perspetiva do arcebispo de Braga. D. Jorge diz ficar chocado com o facto de "uma pessoa morrer em sua casa e só depois de uma semana ou mais se descobrir que morreu”.

“Custa-me porque, se houvesse o mínimo de atenção, com certeza que não havia este desconhecimento e esta ignorância”, explica.

"Quando falamos de uma Igreja samaritana, a samaritana é uma Igreja que está atenta e que não se deixa mover apenas pelos gritos que se ouvem. Ela tem que abrir os olhos e ver e ser sensível."

“Este é também um grande desafio também para nós, como Igreja que somos e como comunidade que somos”, remata o arcebispo de Braga.