"Antes das estrelas cadentes" é o nome de um artigo que a revista Monocle publicou no início de 2022, assinado por Artem Chekh, romancista e militar ucraniano na reserva, sobre uma "Kiev cheia de vida", mas com medo de uma guerra iminente.
"Raramente visito a parte antiga da cidade, mas sempre que o faço fico surpreendido com a sua metamorfose. Já não é uma área pós-soviética de blocos de apartamentos velhos e publicidade pirosa, mas uma cidade europeia bem cuidada, com praças inteligentes e monumentos iluminados. [...] É fácil esquecer que esta é a capital de um país em guerra no Donbass há quase oito anos."
No arranque de 2022, os residentes da capital ucraniana estavam "cada vez mais ansiosos face aos relatos de tropas russas a amontoarem-se na fronteira" desde dezembro, nas palavras de Artem Chekh.
"Não me sentia assim desde 2014, quando Vladimir Putin invadiu a Crimeia e a insurgência na região do Donbass começou. A sombra da guerra pende agora sobre quase todas as conversas."
Em poucas semanas, essa sombra ganhou contornos reais e materializou-se na invasão russa da Ucrânia: na madrugada de 24 de fevereiro, três dias depois de assinar um decreto a reconhecer a independência das regiões separatistas de Donetsk e Lugansk, o Presidente russo anunciava uma "operação militar especial" para "desmilitarizar e desnazificar" a Ucrânia.
Castigada por sucessivos ataques por terra e ar, que já provocaram milhares de mortos e muitos mais refugiados, a Ucrânia é hoje um país muito diferente daquele que Chekh descrevia há um ano. Mas que impactos teve o primeiro ano da guerra no resto do mundo?
Expansão de uniões e alianças
Tal como esperava que a conquista da Ucrânia se concretizasse em poucos meses ou mesmo semanas, Putin também contava que esta guerra enfraquecesse a NATO e criasse divisões na União Europeia. Contudo, se a guerra serviu algum propósito foi o de revigorar os dois grandes blocos do Ocidente.
Apesar de alguma fragmentação quanto à questão energética e ao envio ou não de veículos de combate de última geração para Kiev, "a UE tem-se mostrado determinada e, por vezes de forma surpreendente, unida na sua resposta à guerra", destaca Pepijn Bergsen, analista da Chatham House.
Com a mesma rapidez com que reagiu à invasão (um dos dez pacotes de sanções até agora aprovados contra Moscovo foi votado no dia a seguir ao início da guerra), a UE viu o processo de alargamento ser acelerado pelo conflito.
Neste momento, e apesar de cautelosa, a UE já concedeu à Ucrânia estatuto de "país candidato", com a presidente da Comissão Europeia a garantir há uma semana que, "apesar da guerra, os ucranianos estão a fazer progressos tangíveis". A observá-la de perto estão outras nações do Leste da Europa que também sonham com a adesão, como a Albânia, a Sérvia e restantes Balcãs ocidentais.
"Os tempos estão a mudar, no sentido em que a Europa pode oferecer coisas e não apenas fazer exigências", dizia em outubro Olivér Várhelyi, comissário europeu do Alargamento, para quem este processo "deixou de ser uma rua de sentido único".
São aproximações espelhadas também num reforço da NATO, tida por alguns como moribunda antes da guerra na Ucrânia, mas que se encontra agora em expansão, quer em número de Estados-membros, quer nos fundos que cada um deles se compromete a investir na aliança nos próximos tempos.
Durante décadas resistentes à ideia de aderir à aliança militar com medo de antagonizar a vizinha Rússia, a Finlândia e a Suécia estão agora unidas na intenção de se juntarem à NATO, apesar da oposição da Turquia, que tem adiado a ratificação da candidatura conjunta por causa de recentes conflitos com os suecos.
A adesão dos dois países, que poderá concretizar-se já este ano, vai assinar uma mudança global histórica. E sem um fim à vista para a guerra na Ucrânia, a NATO deverá ficar sob cada vez maior pressão. Jens Stoltenberg, secretário-geral dos aliados, sabe-o e foi por isso que fechou 2022 a declarar: "A Rússia está preparada para uma longa guerra, mas a aliança também está."
Vale a pena destacar neste contexto o papel de crescente influência que países europeus como a Alemanha e França querem assumir numa NATO ainda dominada pelos EUA.
Rússia, China e uma nova cortina de ferro?
O jogo das probabilidades sobre os impactos da guerra na geoestratégia mundial tem os seus limites, mas várias das previsões da Economist no início do conflito na Ucrânia confirmam-se um ano depois, entre elas os efeitos na aliança estratégica da Rússia com a China e o declarado fim da ordem mundial pós-Guerra Fria.
"O que começou como um casamento por conveniência [entre Rússia e China] transformou-se, na última década, numa parceria estratégica" que será "cimentada" pela guerra, escrevia há um ano a revista norte-americana. Semanas antes de ordenar a invasão da Ucrânia, Putin deslocou-se a Pequim para os Olímpicos de Inverno e, ao lado de Xi Jinping, declarou que a aliança entre ambos "não conhece limites" e é "superior às alianças políticas e militares da Guerra Fria".
Doze meses depois, confirma-se que a guerra veio estreitar a relação entre os dois países, mas, contra o que o Presidente russo proclamou, não sem alguns limites. Embora não alinhe com o Ocidente contra a Rússia nos palcos mundiais, nomeadamente na ONU, a China continua a apelar à paz e a não enviar armamento a Moscovo. Essa é, aliás, uma das grandes incógnitas do momento: vai Pequim armar os russos?
"A China está a acompanhar de perto um conflito que pode encorajar ou, por outro lado, servir de aviso a Pequim quanto a qualquer tentativa de reclamar a soberania de Taiwan à força", escreve a Associated Press. Por outro lado, a Rússia continua a reforçar laços militares com os regimes da Coreia do Norte e do Irão, e a aprofundar as suas esferas de influência em África e no Médio Oriente, sobretudo por vias económicas. E assim, adianta a agência de notícias, ergue-se o vulto de uma nova "cortina de ferro":
"Num eco da Guerra Fria, o mundo volta a estar dividido em dois campos, com muitos países, incluindo a densamente povoada Índia, a fazerem as suas apostas para verem quem vai sair por cima."
A marcar um ano da invasão russa da Ucrânia, Pequim avançou da retórica para a apresentação de um plano de paz em 12 pontos que propõe, entre outras coisas, a aposta na manutenção da estabilidade das cadeias de abastecimento e o aumento da ajuda aos refugiados e aos esforços de reconstrução da Ucrânia, que segundo um estudo divulgado esta semana precisa de pelo menos 780 mil milhões de euros para se reerguer dos escombros.
Volodymyr Zelensky, comediante tornado Presidente da Ucrânia tornado herói de guerra e rosto de uma nação sofrida, já se mostrou aberto a negociar sob os termos chineses.
O fantasma nuclear
Outro eco da Guerra Fria é, sem dúvida, a retórica nuclear, que tem elevado receios de uma escalada do conflito. Esses receios registaram um novo pico na véspera do 1.º aniversário da invasão russa, quando numa tentativa de pressionar o Ocidente a deixar cair o apoio militar a Kiev, Putin anunciou a retirada do New START, um tratado em vigor desde 2010 para controlar e fiscalizar o armamento nuclear dos EUA e da Rússia.
Entre os combates em torno da central de Zaporíjia, que vieram elevar o espectro de um "novo Chernobyl", e as ameaças veladas do Presidente russo sobre o potencial recurso a armas nucleares, inaugurou-se aquilo que a AP classifica como "uma nova era de incerteza". Essa incerteza já pairava antes da guerra, mas ganhou novo fôlego no último ano, com uma nova corrida ao armamento no horizonte.
"Apesar de ainda não ter atingido as dimensões daquela que opôs EUA e Rússia na Guerra Fria, e de os norte-americanos continuarem a investir 2.5 vezes mais em Defesa do que Pequim, a corrida está a acelerar", destacava a Economist à data da invasão da Ucrânia. Um ano depois, Putin garantiu esta semana que está a "impulsionar a produção de todos os tipos de armas convencionais" e a prestar "maior atenção ao reforço do nosso armamento nuclear".
"Os riscos nucleares estão entre as várias razões para trabalhar com a Ucrânia para se alcançar um acordo negociado o mais rápido possível", defende Matthew Bunn, especialista em relações internacionais do Instituto Kennedy da Universidade de Harvard. "No fundo, a guerra da Ucrânia obriga-nos a repensar quase todos os aspetos da política para o Nuclear, incluindo como abordar a dissuasão nuclear, o controlo de armas, a não-proliferação, a energia nuclear e a sua segurança".
A retirada da Rússia do New START só não assinou o fim imediato do tratado porque Putin prometeu continuar a respeitar os limites à produção de armamento nuclear. A promessa deixa vivo um resquício de esperança de que esta guerra não resvale para um conflito de contornos mais graves à escala mundial, mas vale o que vale, como indica Keir Giles, investigador da Chatham House dedicado à Rússia e à Eurásia.
"Tanto os EUA como a Alemanha já associaram explicitamente a contenção no apoio à Ucrânia às ameaças nucleares da Rússia; mas em vez disso, o Ocidente devia prestar atenção à real postura nuclear de Moscovo, em vez de se fixar na espuma retórica que passa na televisão."
Gás e cereais, combustíveis da guerra
Sendo a Ucrânia e a Rússia dois grandes fornecedores mundiais de energia, comida e fertilizantes, é incontornável o grande impacto que esta guerra tem tido nas cadeias de abastecimento em todo o mundo, no Ocidente e também nas nações em desenvolvimento.
Volvido um ano de guerra, a maior mudança a este nível foi o início do fim da dependência energética europeia da Rússia, sobretudo do seu gás natural. Desde fevereiro do ano passado, a UE virou-se para outros mercados energéticos, voltou a debater planos que se julgavam defuntos (como o de um gasoduto a ligar Portugal e o resto da Europa) e viu-se obrigada a acelerar a transição energética.
Antes de 2022, o bloco europeu estava comprometido em reduzir as emissões poluentes em 40% e atingir 32% de produção de energias renováveis em 2030/35. Agora, estas metas situam-se já nos 57% e 45%, respetivamente.
"A guerra provavelmente antecipou a descarbonização [do bloco europeu] em cinco ou 10 anos", indicava esta semana Antony Froggatt, vice-diretor do programa de Ambiente e Sociedade da Chatham House. "Estas duas coisas – a Europa a comprar energia a todos os outros e a preocupação com ser demasiado dependente da China ao nível dos materiais para energias renováveis – têm tido efeitos geopolíticos em cadeia."
A China produz atualmente cerca de 70% dos painéis solares usados em todo o mundo e a sua proximidade à Rússia tem levado vários países a restruturar as suas indústrias para se tornarem autossuficientes na produção de renováveis. Ao mesmo tempo, o fecho da torneira de gás russo está a trazer protagonismo a nações africanas como Moçambique e a Nigéria, que dão por si a serem cortejadas quer pelo Ocidente, quer pelo Oriente.
Igualmente marcante, e estreitamente ligado à crise energética, está o impacto da guerra nas cadeias de abastecimento alimentar, com os preços de bens essenciais a subirem a pique ao longo do último ano em todo o mundo. Como explica Laura Wellesley da Chatham House:
"É impossível separar a crise alimentar da contínua crise energética. Os elevados preços dos combustíveis fazem subir os preços dos fertilizantes e os custos de transporte, o que por sua vez espreme os lucros dos agricultores e leva ao aumento do preço dos bens alimentares para o consumidor final."
No Ocidente, a juntar aos aumentos nas faturas da eletricidade e do gás, famílias e empresas estão agora a braços com dificuldades acrescidas para pagar contas e pôr comida na mesa, e aguardam para perceber se a inflação vai evoluir para uma recessão já este ano. Mas a situação é ainda mais dramática nos países em desenvolvimento, que enfrentam agora o risco acrescido de catástrofes humanitárias – o caso de África é gritante; cerca de 85% do continente depende de importações de trigo.
Em novembro, a ONU conseguiu o prolongamento por 120 dias do Acordo de Istambul para a exportação de cereais ucranianos via Mar Negro, mas ninguém consegue prever, para já, o que vai acontecer quando esse prazo terminar dentro de um mês.
O que ainda está por vir
A resposta à pergunta "Quem está a vencer a guerra?" depende do interlocutor. É certo que nem a Ucrânia nem a Rússia estão perto de atingir os seus objetivos de guerra, que no caso de Kiev envolvem a libertação de todo o território ucraniano, incluindo as regiões separatistas do Leste controladas por Moscovo.
Contudo, nos últimos 12 meses a Rússia teve de rever inúmeras vezes as suas ambições e está longe de conseguir dominar a Ucrânia e torná-la uma nova Bielorrússia. Para além disso, estimativas recentes indicam que Moscovo já terá perdido pelo menos 145 mil soldados e entre 40% e 50% da sua frota de veículos de combate pré-guerra.
Será seguro dizer que, dada a atual trajetória da guerra, é a Ucrânia quem está a vencer no teatro de operações. Contudo, como o chefe da diplomacia da UE, Josep Borrell, alertava há poucos dias, a Ucrânia continua extremamente dependente do armamento ocidental – não só de munições de artilharia, para continuar a recapturar território no Leste, mas também de veículos de combate de última geração como os Leopard 2, que a Alemanha e outros países europeus estiveram reticentes em ceder durante meses.
Esses veículos já estão a começar a chegar à Ucrânia, mas é igualmente incerto de que forma vão ou não mudar a realidade no terreno, e com que rapidez. Até lá, a guerra continua.