Vaca e burro como símbolos de paz? “Significam a aproximação entre diferentes”
11-12-2023 - 06:00
 • Ângela Roque

Foi a 24 de dezembro de 1223, em Greccio, que São Francisco de Assis representou pela primeira vez o nascimento de Cristo com a manjedoura e os animais. Em entrevista à Renascença frei Hermínio Araújo diz que num mundo em guerra há uma atualidade redobrada nesses símbolos do presépio, que “não é apenas ornamentação”. E acredita que saber interpretar o seu significado ajudará a manter a tradição.

São Francisco de Assis reinventou a representação Natal? Que mensagem quis passar e que permanece até hoje? Com a ajuda de frei Hermínio Araújo, guardião do convento franciscano do Varatojo, em Torres Vedras, revisitamos o "estranho presépio" de Greccio, onde a presença do boi, do jumento e da manjedoura simbolizam “a aproximação entre cristãos, entre católicos e muçulmanos, crentes e não crentes, e entre perspetivas diferentes de ver o mundo e a vida”.

São Francisco de Assis criou o primeiro presépio, como hoje o conhecemos, em 1223. Que importância teve este gesto de São Francisco, que permaneceu no tempo até hoje?

A importância reside muito neste facto: é um exercício de meditação contemplativa daqueles que vivem o presépio, porque se trata de viver o presépio. O encontro com Jesus, o viver e entrar na dinâmica da encarnação, um Deus que se faz homem, que se fez um de nós, esta dimensão muito humana da divindade - 'o Verbo fez-se carne', na afirmação de São João.

Francisco de Assis procurou, há 800 anos, suscitar naqueles que se aproximaram de Greccio, um lugar a 90 km de Roma, entre Roma e Assis. Quem conhece a Serra e o Portinho da Arrábida, é nesse estilo, o convento franciscano ainda lá está, teve várias fases de construção, e se hoje é um local isolado na vegetação, no tempo de São Francisco ainda mais.

São Francisco quis fazer uma experiência muito impactante, muito forte, àqueles que nessa noite de Natal de 1223 viveram a Missa do Galo, como dizemos agora. Foi nesse contexto que surgiu o estranho presépio. Porque foi um presépio estranho...

Antes disso, já havia representações do Natal. Qual foi a grande novidade que São Francisco trouxe?

Já havia pinturas, presépios ao vivo e representações, como hoje dizemos, com figurantes a representar Maria, José e o Menino. Mas, não foi isso que aconteceu na noite de Natal de 1223, o presépio de São Francisco não foi dessa maneira. Aliás, em rigor, segundo o primeiro biógrafo de São Francisco, frei Tomás de Celano, a dar crédito àquilo que ele diz, não tínhamos lá as figuras centrais de José, de Maria nem do Menino, essas até já estavam antes. Aqui é que está a novidade: que figuras é que ele colocou naquele presépio? Pediu ao amigo, que era um dos habitantes e proprietário daquela zona, conhecido por João de Greccio, que levasse para lá, para uma gruta (a gruta e as pedras ainda lá estão) palha numa manjedoura - e manjedoura em latim diz-se praesepium, portanto, o lugar onde os animais se alimentam –, um boi e um jumento, para transmitir esta mensagem: no lugar onde os animais se alimentam é ali que é celebrada a Eucaristia, a Missa do Galo, como dizemos agora , em cima da manjedoura.

O que é que cada um desses símbolos representa? O que é que São Francisco quis demonstrar com isso?

A tal novidade de Francisco reside exatamente aqui. O boi e o jumento aparecem de várias formas, na Bíblia, desde logo no início do Livro de Isaías a dizer que "o boi e o jumento conhecem o seu dono e por vezes o povo crente não conhece o seu Senhor". Esta citação é trazida para textos da tradição cristã, não para os Evangelhos canónicos de São Mateus ou de São Lucas, que são os dois que têm o Evangelho da infância, mas há um evangelho apócrifo, o Pseudo Mateus, no capítulo 14, que faz referência a este texto de Isaías. Diz o autor que em Belém, juntamente com Maria, com José e com o Menino, estavam lá também o boi e o jumento.

Portanto, São Francisco não inventou...

Recolheu esta tradição, e inventou juntando tudo, todas estas peças, esta ligação à tradição apócrifa, não à tradição canónica, citando o profeta Isaías e pegando num simbolismo - e este é que é um aspeto importante. Com Santo Agostinho e outros padres da Igreja, na tradição patrística - anterior a São Francisco -, o boi simbolizava os crentes e o jumento os não crentes.

Francisco de Assis, e esta é uma particularidade interessante, tinha chegado há pouco tempo do Egito, no contexto da V Cruzada, no célebre encontro com os muçulmanos, mas distanciando-se da Cruzada porque a Cruzada de Francisco era outra, não da guerra, mas da paz.

Há autores, nomeadamente a especialista da Idade Média que passou uma grande parte da vida a estudar São Francisco de Assis, a italiana Chiara Frugoni, que evidencia muito este aspeto: Francisco, depois de regressar do Egito, dessa experiência de clima tenso de guerra - e não havia só guerra no contexto das Cruzadas, Francisco viveu tempos de conflitos entre cidades, de tensões mesmo entre as diversas comunidades, dentro da Igreja, etc – queria ali simbolizar, com o boi e o jumento, a aproximação entre cristãos, católicos e muçulmanos, entre crentes e não crentes, entre perspetivas diferentes de ver o mundo e a vida, entre diferentes...

É quase o "todos, todos, todos" do Papa Francisco, no presépio de São Francisco?

É o "todos, todos, todos". E acho que é muito bonito que este ano, tenho dito isto muitas vezes, uma boa forma de celebrar os 800 anos do presépio inventado por São Francisco de Assis é pôr em evidência nos nossos presépios o boi e o jumento, com este sentido, porque o boi e o jumento no presépio significam a paz, significa a aproximação dos diferentes, significa o diluir ou ultrapassar tensões, diferentes a alimentarem-se da mesma mensagem, do mesmo dinamismo de encarnação. Tal como a palha é alimento para aqueles animais, aquele Menino é alimento na sua mensagem, na sua palavra. E, muito concretamente para a comunidade católica, quando este ano comungarmos no Natal, recebermos o Pão Consagrado, estamos ali a ser protagonistas do Natal inventado por São Francisco de Assis.

No atual contexto, com várias guerras a nível Internacional, isto traz uma atualidade redobrada para o presépio cristão?

É uma atualidade redobrada. E acho que é muito bonito e muito forte vivermos este ano o Natal a partir do presépio como o presépio da paz. O presépio é alimento de paz, desde logo para a paz de cada um, para a nossa paz interior, para a nossa transformação do coração, para as nossas guerras e conflitos internos, por vezes guerras que fazemos contra nós próprios. E depois para aquilo que vamos construindo uns com os outros e para estarmos em sintonia, em oração, meditação contemplativa, em prece por todos aqueles que precisam de deixar que o seu coração se transforme.

O Papa tem procurado nos últimos anos chamar a atenção para a importância do presépio. Fez uma Carta Apostólica, em 2019, sobre o significado e o valor do presépio e, recentemente, editou um livro que pretende assinalar precisamente estes 800 anos do presépio de São Francisco...

"O meu Presépio" é o título. Que livro é esse? É um livro que é uma recolha, em relação àquilo que o Papa Francisco tinha escrito antes o que é mais novidade são as primeiras páginas, que ele prepara exatamente para esta edição, para associar aos 800 anos do Natal de Greccio. E depois é uma compilação, uma recolha de vários textos, nomeadamente deste sobre o significado e o valor do Presépio, 'O Sinal Admirável', que é o título desta Carta. E ele, na introdução, cita uma afirmação que para mim é a mais importante de tudo, que é que esta frase: 'em Greccio, naquela ocasião, não havia figuras, o presépio foi formado e vivido pelos que estavam presentes'. Isto é muito importante. O facto de não haver figuras é para nos envolver, nós somos as figuras. É uma frase que resume muito bem tudo isto que estamos a tentar dizer, o presépio foi formado e vivido pelos que estavam presentes, e é a isso que somos convidados, a tornarmo-nos presentes no presépio. A pessoa de Jesus é presente para nós, mas nós também nos tornamos presentes.

Sabemos que no Ocidente industrializado ao longo dos anos foram surgindo outros símbolos para o Natal, mais comerciais, mais pagãos. Há um risco de se perder esta tradição do presépio, ou os cristãos continuam a saber mantê-la, apesar da concorrência desses outros símbolos?

Acho que há um risco. Aliás, estes textos do Papa surgem por isso. Ele utilizou uma expressão significativa, que é ver o presépio como um meio de evangelização, de dinamismo evangélico. Às vezes, as pessoas têm menos contacto com os textos, com essas formas de evangelização, mas o Presépio pode ser um potencial muito significativo de evangelização, de encontro com o Evangelho, com estes valores do Menino de Belém, e podemos perder isso quando introduzimos e pomos em evidência outros símbolos.

A Igreja também tem de dinamizar os cristãos para isto, ensinar-lhes a interpretar o presépio?

Exatamente. Mais presépio, perceber que o presépio não é apenas ornamentação, mas é algo que nos remete para uma experiência interior, para uma experiência espiritual, não é algo apenas exterior, mas que nos deve motivar ao interior. Mas, para isso tem de haver pedagogia.

Este ano, onde é que encontramos a Gruta de Belém no mundo que nos rodeia? Onde é que está o presépio?

Chega até nós, sobretudo, com a guerra na Ucrânia e a guerra na Palestina, mas há tantos lugares no mundo em guerra. Mesmo estas problemáticas do clima, e outras, tantas situações de fragilidade, de vulnerabilidade, onde precisamos que aconteça nascimento de Jesus.

A Gruta de Belém está em todas as situações de fragilidade e vulnerabilidade em relação às quais Jesus se identifica. E é aí que devemos estar.

Para os cristãos, fazer o presépio é também refletir sobre isso?

É refletir sobre isso, porque é uma experiência de fragilidade e vulnerabilidade, de um Deus que se faz frágil e vulnerável, mas a fragilidade como um potencial de vida, e de vida em abundância. É a partir deste contato, deste exercício de realismo com as fragilidades do mundo, de um Deus que se faz frágil, para percebermos que na vulnerabilidade há um alimento de vida, há um potencial transformador, é possível a paz. Portanto, acho que os grandes lugares do presépio neste Natal são essencialmente os lugares de guerra, os lugares onde estão os mais frágeis e mais vulneráveis, as vítimas de tudo isso, onde Jesus se torna presente e onde somos também convidados a tornarmo-nos presentes para sermos dinamismo transformador. Alimentarmo-nos da fragilidade e vulnerabilidade como Francisco, naquela palha, naquele alimento, naquela Eucaristia ali celebrada, essa expressão de vulnerabilidade que é ao mesmo tempo nosso alimento, mas temos de fazer por isso, não é tudo automático. Há muito para fazer. Por isso é que estas palavras do Papa são muito significativas: ‘em Greccio, naquela ocasião, não havia figuras. O presépio foi formado e vivido pelos que estavam presentes’. Temos que nos tornar presentes nos lugares de vulnerabilidade, ser presépio. Mais do que fazer presépios, é ser presépio. Na ausência de figuras no Natal de Greccio eram aqueles que estavam presentes, esse amor ao próximo.

O Papa Francisco nestes textos sobre o presépio e o Natal, por exemplo neste livro mais recente, cita Mateus 25, que ele gosta muito de referir, é o Evangelho das obras de misericórdia, "aquilo que fizeste a um dos meus irmãos mais pequeninos, foi a Mim que o fizeste". São textos citados de quando em vez pelo Papa quando está a falar destas realidades, do sentido do presépio, como potencial de nova evangelização, de novo vigor evangélico. Um Deus que se faz frágil, que nos convida a estar presentes na fragilidade, para transformarmos essa fragilidade, não é para ficarmos e estagnarmos pura e simplesmente a contemplar a fragilidade, pensando que não há nada para fazer. Há muito para fazer.

Celebrar o Natal este ano, ser presépio, mais do que fazer presépio, significa comprometermo-nos muito concretamente pela paz. A paz é uma urgência!

Fazendo contraponto aos que teimosamente persistem na guerra, temos que teimosamente persistir na paz. E celebrar o Natal de Greccio, estes 800 anos do presépio inventado por São Francisco de Assis, tal como ele quis, é implicarmo-nos na construção da paz. Teimosamente pela paz.

Há uma frase muito bonita de Francisco no seu testamento que resume tudo isto, e que diz ‘esta saudação me revelou o Senhor que disséssemos: o Senhor te dê a paz’. Estas palavas ajudam-nos a entender muito este ‘estranho presépio’ inventado por São Francisco de Assis, que não tinha as figuras a que estamos habituados, mas que nos remetem para uma dimensão espiritual completamente diferente, nesta aproximação entre bois e jumentos, de realidades tão diferentes.

Há uma expressão muito curiosa no livro de Deuteronómio, ‘não lavrarás com o boi e o jumento juntos’, aquelas máximas antigas dos judeus... ora lavrar, por uma canga num boi e num jumento, qualquer agricultor sabe que não funciona. Francisco de Assis quis que boi e jumento se entendessem...

Quase em provocação?...

É provocação pura! São Francisco é um provocador!

Nestes 800 anos uma forma de os cristãos celebrarem é fazer o presépio? É esse o convite que deixa?

É. O convite que eu faço é não deixarem de fazer o presépio. E já agora com esta sugestão: São Francisco reinventou esta forma estranha, com este significado, evidenciando a figura do boi e do jumento, para dizer ‘os diferentes têm de se aproximar’. Mas, nós estamos habituados, e então o presépio de estilo português é muito bonito, com tantas figuras, basta pensar no grande Machado de Castro. Costumo dizer na brincadeira que São Francisco não quis ser um Machado de Castro, mas inventou uma forma de fazer o presépio, nós podemos inventar muitas. O presépio pode ser sempre inventado e reinventado, mas este ano, a celebrar estes 800 anos do presépio de Greccio, podemos pôr em destaque a figura do boi e do jumento, com todas as outras figuras centrais, que são o Menino, Maria e José. Às vezes pomos os animais lá atrás, muito escondidinhos... pôr o boi e o jumento à frente, que nos lembre a aproximação entre os diferentes. Desde logo a forma como lido com as pessoas que estão ao meu lado, que às vezes são muito chatas e estão sempre a provocar, o lidar com o diferente, aquele que pensa ou acredita de forma diferente. Olhar para aquele boi e aquele jumento, em que é difícil pôr uma canga, mas é possível aproximar as diferenças. Foi este o tal ‘estranho presépio’ inventado por São Francisco de Assis, mas que tem resultado na mensagem que tem sido espalhada. Popularizou-se que é São Francisco com os animais, toda a natureza e criação... é isso, mas é preciso perceber o que está por trás, o fundo disto. Isto popularizou-se muito pela maneira como os frades se foram espalhando por todo o mundo foram levando esta espiritualidade e esta forma de celebrar o Natal.

No convento do Varatojo, também há um presépio?

Há um grande presépio, envolvemos muitas pessoas ali da aldeia, na sala do Capítulo, esse é o maior, mas temos muitos outros presépios, na igreja e noutros locais do convento. Não sei precisar, mas são mais de meia dúzia de presépios.

Quem por estes dias for ao Varatojo podem contactar, vamos promovendo o acolhimento de alguns grupos, permitindo passar esta mensagem, dando a conhecer porque é que os franciscanos promovem tanto os presépios, porquê este apreço que Francisco de Assis tem pelo mistério da encarnação, ligando ao mistério da morte e ressurreição, a ligação entre o Cristo total, quer em Belém, quer na cruz.