Medina garante "margem" e "condições" para responder a um "cenário mais adverso" do que o atual
10-10-2022 - 23:12
 • Susana Madureira Martins (Renascença) , Helena Pereira (Público)

Ministro das Finanças assume que há uma cláusula de salvaguarda anual no acordo de rendimentos que pode levar a mudanças nos aumentos salariais e sossega Marcelo, garantindo que há “margem” para medidas extraordinárias em 2023. A maior crítica vai para Christine Lagarde. Fernando Medina garante ainda que está em "condições" para "num cenário mais adverso" que não espera, nem quer "ter a margem para deixar funcionar os estabilizadores automáticos" e ter "uma política anticíclica".

Fernando Medina mostrou mais de 40 slides na apresentação do Orçamento do Estado para 2023, mas há medidas que ainda não estão fechadas como a polémica taxa sobre lucros inesperados das energéticas. Em entrevista ao programa Hora da Verdade da Renascença e do jornal Público, o ministro das Finanças avança que esta proposta de orçamento ainda não contempla dinheiro para reforçar o número de profissionais de saúde e não exclui uma descida transversal do IRC daqui a dois anos.

O que fez o Governo mudar de ideias e avançar com a windfall tax, tendo em conta que, por exemplo, o primeiro-ministro, António Costa, e também o ministro do Ambiente, disseram sempre que já havia uma taxa, a CESE, e que, portanto, não era preciso mais nenhuma taxa?

Terei sido um dos primeiros membros do Governo a pronunciar-me sobre a taxa no sentido de dizer que faria sentido que existisse desde que correspondesse e fosse desenhada de uma forma justa e correspondesse a uma tributação efetiva. Quando a inflação se iniciou e o aumento dos preços de energia foi muito rápido, ouviram-se muitas vozes a querer clamar por taxas e, na altura, a única experiência conhecida era a de Itália, que tinha criado uma taxa mas não tinha praticamente cobrado receita nenhuma.

Anunciar taxas sem saber verdadeiramente o que se vai taxar, ou sem que isso corresponda a uma situação de justiça e tributação efetiva, não faria sentido. Disse sempre que acompanharíamos o debate e aquilo que fossem as melhores práticas internacionais. Os países, durante muito tempo, não avançaram com a criação dessas taxas e depois, mais tarde, começaram a avançar com modelos semelhantes àqueles que nós já temos, isto é, com contribuições especiais sobre o sector energético ou então com derramas que nós já temos. Até que, finalmente, a Comissão Europeia decidiu propor um modelo a nível europeu que permitisse a tributação desses lucros não esperados.

Como é que será cobrada essa 'windfall tax' em Portugal e como é que isso se articula com a CESE e a derrama?

O desenho seguirá aquilo que é a determinação do regulamento europeu, que foi publicado ontem. Constará de um diploma próprio que publicaremos ainda este ano. Será fora do orçamento por uma razão simples: para poder haver tributação ainda no ano de 2022. A aprovação em 2022 assegurará que a tributação é feita sobre os resultados de todo o ano de 2022.

Então mantém-se a CESE e a derrama como estão ainda em 2022?

A articulação global com a nova taxa, nomeadamente ao nível da CESE, porque a derrama é transversal aos vários sectores em função da dimensão da tributação das empresas, está a ser trabalhada. Quando estiver publicada a redação final, será conhecida.

Por que é que disse que será cobrado 33% ou mais?

Porque é o que está no regulamento europeu.

É o máximo até onde pode ir?

Não tenho aqui agora a formulação concreta do regulamento. Nós estamos obrigados, aliás, a seguir muito diretamente o regulamento e vamos nas próximas semanas trabalhar sobre isso. Portugal terá uma tributação sobre lucros inesperados idêntica à dos vários países europeus, num modelo que se coordene com a nossa tributação, num modelo que não introduza nenhuma desvantagem comparativa dentro do nosso país face aos outros países e, por isso, creio que esta solução pode ser a melhor.

Pode haver empresas que já pagam a CESE que não vão ter que pagar mais?

Não lhe posso adiantar agora, nesta entrevista, porque esta não é uma matéria do Orçamento do Estado. Nós temos o compromisso de aprovar o diploma antes do final do ano.

A taxa de IRC não desceu de forma transversal de 21% para 19% neste orçamento, como queriam as empresas, mas pode baixar no de 2024?

Estamos num processo muito complexo e exigente de apresentação do OE para 2023. Não consigo antecipar hoje medidas para o Orçamento de 2024.

Mas aquilo que vai ser depois retirado desta entrevista é que não disse nem que sim nem que não. Portanto, deixa em aberto.

Sobre 2024, peço um pouco de complacência para que não retirem nenhuma conclusão no dia em que nós apresentámos o de 2023, que ainda não está aprovado no Parlamento.

Depois daquele contratempo com declarações contraditórias sobre a descida transversal do IRC, esse assunto foi discutido na concertação social e, portanto, os empresários ficaram com uma expectativa de voltar a ter essa conversa com o Governo. Isso não foi falado com eles?

As expetativas das confederações patronais relativamente a reduções dos impostos sobre as empresas nasceram muito antes deste acordo. Creio que as formulações que foram adotadas correspondem, por um lado, ao que está no programa de Governo e são formulações muito efectivas de resposta a questões centrais que as confederações patronais tinham colocado.

Em concertação social, discutiu-se a possibilidade de haver uma cláusula de salvaguarda para que todos os aumentos salariais sejam revistos em setembro/outubro. Isso manteve-se? Ou seja, aqueles aumentos anunciados até 2026 podem não ser assim.

Há uma cláusula de salvaguarda de avaliação geral do acordo em função das circunstâncias.

Portanto, aqueles valores que foram apresentados de aumentos a cada um dos anos até 2026 vão ser ajustados?

Não é nesse sentido que a cláusula lá está. A cláusula foi pedida, aliás, pela generalidade dos parceiros. E é uma cláusula de razoabilidade. Todos aqueles níveis salariais...

... podem ser caucionados mediante as circunstâncias que existirem nessa altura.

Por essa razão, tudo deve ser avaliado em cada momento com regularidade. É um acordo de médio prazo, que, de boa-fé, os parceiros assinam com um grande compromisso de fundo que é acordar que a valorização dos salários é uma estratégia fundamental para o futuro da economia do nosso país. Isso foi assinado com as confederações patronais e tem um enorme significado num momento em que grande parte das empresas se está a debater com dificuldades relativamente à mão de obra e com muitas empresas a não quererem repetir aquilo que aconteceu durante a pandemia, que foi perder vários dos seus quadros nesse processo. Haver uma avaliação regular do acordo é de liminar bom senso. Parece-me normal que isso se faça quando são actualizadas as projecções sobre a economia portuguesa ou em caso de situações anormais. O acordo não foi assinado por ninguém com reserva mental, de dizer “estamos a assinar, mas não queremos que assim seja”.

Voltando ao orçamento, o Presidente da República já teve oportunidade de se pronunciar, dizendo que vê nele uma folga para novas medidas extraordinárias caso haja incerteza ou degradação da economia. É verdade que há essa folga, essa margem para vir a haver novas medidas em 2023, como cheques à família, ou cheque-pensão?

O orçamento está construído com medidas muito importantes relativamente aos rendimentos das famílias, desde a redução do 2.º escalão de IRS, a resolução do problema do mínimo de existência, as medidas do aumento da dedução do segundo filho, o aumento do abono de família. O orçamento está também feito para termos um défice de 0,9%, que já é uma correção relativamente ao Programa de Estabilidade porque entendemos que, havendo um abrandamento da economia face ao cenário previsto no plano no Programa de Estabilidade, deveríamos fazer também esse ajustamento. O país fez uma grande conquista durante o ano de 2022 – nós precisávamos de reduzir muito a nossa dívida, reduzir o nosso défice orçamental para ganhar margem de manobra para conjunturas mais adversas que, aliás, em alguma medida já se anteviam. Sublinhei isso quando havia críticas das bancadas à esquerda a dizer “não cumpram o défice porque agora as regras da Europa não contam”. Eu perguntei como é que se pode fazer essa proposta quando nós estamos nas vésperas de uma mudança de orientação da política monetária que vai subir os juros.

Há uma folga para condições mais adversas do que as que agora existem?

O país tem hoje, fruto das opções políticas que tomámos na condução financeira e orçamental, uma situação que nos permite cumprir as regras europeias, isto é, não pôr em causa a nossa credibilidade orçamental e poder lidar com cenários mais adversos do que aqueles que hoje se colocam e aqueles que nós projetamos. Esperamos não ter que o fazer naturalmente.

Que almofada é essa? É quantificável?

Não lhe chamaria assim. Se estivéssemos com um défice encostado a 3%, a nossa margem a partir do próximo ano era nula, porque no próximo ano, havendo o regresso das regras, imagine a situação de estarmos com um défice de 3% em 2023.

Acha que não serão suspensas no próximo ano?

Não há nenhuma orientação nesse sentido e tem havido um pronunciamento dos países europeus no sentido de haver um regresso ao cumprimento das regras, com a alteração das regras em algumas delas, mas não da regra relativamente ao défice orçamental. Imaginem o que era enfrentarmos um cenário de chegarmos a 2023 com um défice colado já aos 3%. Isso dava-nos uma margem nula e obrigava-nos, em caso de abrandamento económico, a ter de fazer uma má política económica, que era termos de adotar uma política pró-cíclica. Quer dizer, quando havia abrandamento, nós ainda tínhamos que abrandar mais. Nós estamos em condições de, num cenário mais adverso que não esperamos e que não queremos, dentro dos limites, ter a margem para deixar funcionar os estabilizadores automáticos e termos uma política anticíclica, que é como deve ser.

Essa margem pode ser usada para medidas extraordinárias, como este ano?

Estamos a apresentar um orçamento com um conjunto muito grande de medidas. Eu peço desculpa por não responder à pergunta que me estão a fazer. Antecipar medidas é um cenário que não existe.

Foi o próprio Presidente da República que lançou a questão minutos depois da sua conferência de imprensa.

Eu não ouvi o senhor Presidente da República, por quem tenho muito respeito e estima. Estou a responder a si que me está a fazer essa pergunta. Posso garantir é que, graças àquilo que fizemos da redução histórica da dívida pública portuguesa, temos uma situação orçamental bastante mais sólida e preparada para lidar com cenários mais exigentes.

Depreendi da conferência de imprensa que está preparado para fazer um orçamento retificativo se tiver que ser.

O cenário de incerteza que estão a colocar é um cenário de degradação e pessimismo. Se, na entrevista que dei sobre o OE de 2022, tivesse dito que a economia portuguesa iria crescer em torno de 6,5%, os seus colegas diriam que era um optimista sem qualquer adesão à realidade. E a verdade é que a economia cresceu bastante mais do que aquilo que todos supúnhamos.

Espera também agora um golpe de asa?

Não podemos funcionar nestas matérias com estados de alma. Temos de ter uma grande capacidade de ler os sinais todos, absorver o máximo de informação possível e tomarmos as medidas que assegurem estabilidade, confiança, previsibilidade e, sobretudo, que aumentem a margem de manobra do país. O grave erro, às vezes, na condução da política económica é quando há precipitações, caminhos estreitos, escolhas que comprometem cenários que podem ser mais adversos. Nós fizemos sempre o contrário. Nós somos prudentes. É um orçamento prudente, feito para tempos exigentes, mas que não deixa de ter um grande apoio ao rendimento das famílias, um grande apoio ao investimento e a continuação de uma estratégia de contas certas.

Quanto representam para o Estado estas medidas para a habitação?

As medidas fundamentais não são medidas de natureza financeira. É um diploma que apresentaremos muito em breve, autónomo do Orçamento do Estado, mas que visa criar um novo regime de negociação entre os clientes e as instituições financeiras. Um regime que permita prevenir situações de incumprimento, que funcione como uma faculdade que os clientes têm de não comprometer muito as suas taxas de esforço. Do lado contrário, a obrigação dos bancos, quando têm sinais de que haverá aumentos significativos das taxas de esforço, é dar início a um processo de negociação tendente a que haja uma adaptação das condições dos contratos. No nosso país, temos 1,4 milhões de contratos, temos um volume de crédito de 94 mil milhões de euros. Temos que trabalhar muito com quem tem os instrumentos poderosos para o fazer, que são os bancos e os consumidores que têm os seus créditos contratados. Essa é a medida mais importante que apresentaremos em poucas semanas.

Falaram com a banca sobre esse tipo de medidas? Há duas: essa que exige a renegociação em função da taxa de esforço e depois aquela que acaba com as comissões para a amortização.

Temos vindo a falar quer com o Banco de Portugal, quer com a Associação Portuguesa de Bancos.

No fundo, o Estado transfere para a banca algum do esforço, porque o Governo optou por não fazer aquilo que se esperava ou que alguns esperavam, que era o aumento das deduções dos juros da habitação em IRS.

O sistema do crédito à habitação no nosso país é baseado nas relações comerciais privadas entre clientes e bancos. E sublinho que estamos a falar de um volume de 94 mil milhões de euros de crédito que estão em situações muito distintas. Temos um processo de diálogo muito franco com os bancos. Obviamente, nós não estamos na mesma posição que a Associação Portuguesa de Bancos, que representa o setor financeiro. O Ministério das Finanças representa o Estado português. Há um interesse mútuo em que corra bem.

O secretário de Estado do Tesouro dizia que o indexante de créditos está em padrões normais. Se isto tudo sair dos padrões normais, por onde é que se pode agir mais?

Tenho a convicção de que não chegaremos aos níveis em que já estivemos não há muitos anos atrás, nomeadamente em 2008, em que os juros dos créditos à habitação chegaram a 5%. Não temos expectativa de que haja um crescimento das taxas de juro nessa dimensão. Os riscos que estão hoje a pender sobre as economias, nomeadamente as do centro e do leste da Europa, são de tal forma significativos por causa da crise energética que vai ser preciso uma visão prudente do Banco Central Europeu.

Quando se olha para orçamento, há muitas medidas para as empresas, para as famílias. Os pensionistas são os grandes lesados deste Orçamento do Estado?

Ao contrário. Há várias medidas de apoio aos rendimentos que têm aplicação aos pensionistas, tudo o que é matéria de tributação em sede de IRS atinge os pensionistas.

Os pensionistas não viram as suas pensões actualizadas ao nível em que foi actualizado o Indexante de Apoios Sociais.

Relativamente às prestações sociais, elas não tiveram uma prestação suplementar como tiveram as pensões, por isso, foram compensadas.

O OE 2023 inclui apenas um aumento de 2,6% para salários na saúde. Isso é suficiente?

Os salários na saúde irão evoluir exactamente da mesma forma que na restante administração pública. O que acontece é que, por razões de calendário, da negociação na administração pública e da elaboração do orçamento, as verbas exactas não estão inscritas em cada um dos serviços, irão ser adicionadas aos orçamentos de cada instituição uma vez encerrado o processo de negociação com os sindicatos. A ministra da Presidência e a da Administração Pública têm falado abundantemente sobre o tema. O processo negocial tem tido desenvolvimentos positivos e espero que assim continue e se conclua.

A direção executiva do SNS também não tem nenhum valor atribuído.

Esse valor sei de memória: dez milhões de euros.

O Orçamento do Estado nada diz sobre a TAP. Deixou de acreditar na privatização em 2023?

Não tem nada pela simples razão de que o plano de reestruturação foi feito com verba transferida no orçamento de 2022 e, a partir daí, o Estado está proibido de fazer qualquer outra transferência. O processo de privatização da TAP desenvolver-se-á no tempo e no modo que o Governo considerar que mais valoriza o interesse nacional.

Nos próximos 12 meses, como disse o primeiro-ministro no Parlamento?

Procuraremos fazê-lo nas melhores condições que valorizem o interesse do país e do futuro.

Ainda não está decidido se será vendida uma fatia maioritária ou será apenas uma parte?

Isso ainda não está definido. O Governo não tem uma decisão sobre isso.