​Traficar com o sofrimento dos outros
06-06-2016 - 07:52

Vem esta nota a propósito do caso da taróloga que, a uma senhora que se lhe queixava de violência doméstica antiga e reiterada, num dos nossos canais de televisão, lhe receitou que aceitasse a situação e fizesse mimos ao marido.

A publicidade a mezinhas e produtos ‘milagrosos’ e a charlatanice de quem se aproveita das misérias humanas para prometer este mundo e o outro são, diria eu, tão velhas como o próprio mundo. Resultam de um jogo perverso entre a crendice e a exploração do semelhante. Quando estes velhos processos são transferidos para canais de televisão em sinal aberto, introduz-se no circuito um outro factor, que consiste em oferecer aquele jogo em espectáculo.

Vem esta nota a propósito do caso da taróloga que, a uma senhora que se lhe queixava de violência doméstica antiga e reiterada, num dos nossos canais de televisão, lhe receitou que aceitasse a situação e fizesse mimos ao marido [a propósito: o que deu brado nas redes sociais e, por reflexo, na imprensa, foi este episódio; mas o que é preocupante é o conceito e o padrão do próprio programa].

É provável que haja, da parte de alguns dos que buscam expor os seus dramas e sofrimentos na praça pública, um misto de descrença em caminhos mais razoáveis para enfrentar as situações e de um desejo mais ou menos secreto de mostrar e ‘vender’ a própria desgraça. Mas os responsáveis pelos programas são os primeiros responsáveis por esta traficância com o sofrimento dos outros, ainda que nos caiba, enquanto cidadãos, o papel de manifestar o protesto e a indignação.

E isto porque as práticas abusivas de alguns canais, vistas através de casos dos últimos anos, têm contornos muito mais vastos: passam igualmente pela pressão (ainda que a desacelerar) das chamadas de valor acrescentado; pelas práticas enganosas de alguns concursos, que dão a entender aos espectadores que os prémios são em dinheiro, quando isso não acontece; ou ainda pela publicidade a produtos de saúde que vendem gato por lebre e que, apesar da denúncia de entidades credenciadas, continuam a ocupar os blocos de anúncios.

Não tenho dúvidas de que estes e outros procedimentos abusivos têm de encontrar pela frente instâncias atuantes, quer no plano ético quer no da regulação. Mas entendo que é sobretudo pela acção esclarecida e crítica, individual e coletiva, que se fará sentir aos operadores que, por maiores que sejam as dificuldades económicas, não vale tudo para conquistar audiências.