BE quer baixa de rendas e mais contratos nos cuidados de saúde para deixar passar Orçamento suplementar
28-05-2020 - 06:40
 • Eunice Lourenço (Renascença) e Helena Pereira (Público)

Catarina Martins revela medidas que está a negociar com o Governo para viabilizar o orçamento suplementar e diz que voto do BE não depende do PSD. E deixa fortes críticas à UGT que acusa de ter o discurso da Troika.

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Catarina Martins, líder do BE, emociona-se ao falar dos trabalhadores da linha da frente do combate à covid-19 que recebem o salário mínimo. Para a líder do Bloco de Esquerda, a situação causada pela pandemia de Covid-19 pode e deve ser uma oportunidade para corrigir injustiças na economia.

Propôs uma medida que substitua o “lay-off, mas que implique o pagamento por inteiro dos salários. Como pode ser o desenho dessa medida?

Não podemos ter quase 1 milhão de trabalhadores com um corte de um terço do salário até final do ano. Os salários em Portugal são baixos. As pessoas, quando têm um corte de um terço, deixam de conseguir pagar as contas. Em muitos sectores, tem que haver mecanismos de apoio do Estado, porque não conseguem funcionar a 100% de um dia para o outro.

Como seria esse apoio? O BE apresentou vários modelos.

Defendemos que não deve haver exatamente o mesmo mecanismo para as empresas maiores e para as mais pequenas. As grandes têm capacidade de mobilizar os seus próprios recursos para ultrapassar a crise. O lay-off acaba por ser um sistema que é igual para todos, por isso, defendemos subsídios diretos às pequenas e microempresas com a condição de manterem o emprego e os salários, incluindo prorrogação de contratos a prazo e manutenção dos trabalhadores intermediários. No país, temos grandes empresas a distribuir dividendos com base nos lucros de 2019. Seguramente, se olharem para a situação do país neste momento, podem perceber que esse dinheiro é muito mais necessário para pagar salários.

O BE tem insistido na não distribuição de dividendos.

Nós e a CMVM que é o regulador da bolsa! A Galp, por exemplo, diz que não despediu, mas cessou contratos a termo e a termo incerto e não renovou com trabalhadores temporários e em outsourcing. Todos os trabalhadores da refinaria de Sines que ficaram sem emprego foram para o fundo de desemprego. Tudo o resto é brincar com as palavras. Mesmo assim, a Galp distribuiu mais de 300 milhões de euros de lucros aos acionistas. Isto não tem nenhum sentido.

Há abertura do Governo para as medidas propostas pelo BE, nomeadamente o novo apoio?

Sim. O Governo compreendeu a dificuldade de estarmos a dizer a 1 milhão de trabalhadores que vai ficar sem um terço do salário até final do ano.

Também há abertura para proibir por lei a distribuição de dividendos?

Até ver, não existiu. E registo que o Governo estava representado na assembleia de acionistas da Galp e votou a favor dessa distribuição.

E para o subsídio extraordinário de desemprego?

A nossa proposta é um apoio no valor do IAS e em que as pessoas explicariam porque estão nessa situação, o que permitiria à ACT ter um mapa do trabalho informal para fazer-se um plano de erradicação do trabalho informal. O Estado vai ser chamado muito fortemente a apoiar a economia e as pessoas e não deve hesitar nesse apoio. Mas, ao fazê-lo, deve criar os instrumentos para construir paradigmas mais saudáveis da economia e do emprego, combatendo o trabalho informal.

O BE poderá viabilizar este orçamento suplementar?

Vamos ver. Estamos a estudar. O BE tem muita vontade de construir soluções. E há algo aqui que é determinante: a resposta à crise não pode significar um recuo do que se fez nos últimos anos, não pode significar cortes nem nos rendimentos nem nos direitos. Vai ser preciso um novo patamar de medidas sociais e económicas para suportar o país. Se uma família perde a casa agora, como é que vai reconstruir a sua vida? Na crise financeira, houve pessoas que puderam emigrar. Desta vez, não há para onde ir.

O BE traçou linhas vermelhas para viabilizar o orçamento?

Nunca negociámos com a ideia de linhas vermelhas, interessa-nos definir princípios de progressão. A resposta à crise não pode significar corte de rendimentos ou direitos e tem que construir a solução que queremos para o futuro. Dou o exemplo do turismo e do alojamento local: há partes das nossas cidades desertas, precisamos apoiar o sector que vive do turismo mas não podemos premiar nenhum mecanismo de especulação que faça com que estas casas fiquem vazias à espera que a onda passe.

A resposta de emergência para este sector tem que ser estrutural que é colocar estas casas no mercado de arrendamento de longa duração com preços compagináveis com os salários que são pagos em Portugal. Outro exemplo: temos muita necessidade de pessoas para os cuidados a idosos e há 4 mil desempregados que se voluntariaram nos centros de emprego para irem apoiar estes cuidados. Mas, em vez de terem um contrato de trabalho, têm uma bolsa. O Estado deve apoiá-las mas não é para as manter na situação de desemprego. É para lhes garantir o emprego e um contrato de trabalho.

Rui Rio diz que há sintonia entre o PSD e o Governo. Admite um consenso alargado que englobe o Bloco e o PSD?

Isso será difícil. É bom que toda a gente tenha disponibilidade para encontrar soluções, mas há propostas de países diferentes. O PSD sempre acreditou que, para dinamizar o mercado de trabalho, era preciso ter mais trabalhadores precários. Nós achamos que a lição a tirar desta crise é a necessidade urgente de combater a precariedade. Acho muito difícil que haja uma medida que ao mesmo tempo crie precariedade e combata a precariedade. Portanto, há sempre escolhas a serem feitas neste momento.

E o Governo terá que fazer essas escolhas.

Claro, como é óbvio. Mas neste momento não estou a discutir votos. Estou a discutir as necessidades do país. Rui Rio até disse que era uma vergonha se as empresas distribuíssem dividendos, mas depois quando chegou a altura de votar no Parlamento não votou a favor, votou a favor que continuasse a distribuição. O PSD tem um discurso um bocadinho moralista sobre a economia mas vota onde sempre votou, vota à direita e vota ao lado dos grandes interesses económicos. Há, às vezes, um desfasamento entre o discurso do PSD e a ação do PSD.

Aumento do salário mínimo para 750 euros, aumentos na função pública de 0,3%, 25 dias de férias. Aceita algum ajustamento dessas promessas?

Não tem sentido responder à crise empobrecendo quem já não tem quase nada. É praticamente impossível viver em Portugal com o SMN e mesmo com o salário médio. Comprimir salários é um descalabro.

Qual de nós considera normal, depois desta crise, que as pessoas que têm profissões de limpeza nos hospitais e nos cuidados em lares de idosos ganhem o SMN? Isto não nos envergonha? E vamos sair desta crise a dizer que não se pode aumentar o salário destas pessoas? Vamos deixar os profissionais de saúde com estes salários ou vamos ter uma resposta de valorização destas carreiras para que eles queiram ficar em Portugal?

A UGT já admitiu que o aumento de 0,3% da função pública pode não vir a concretizar-se já.

É muito estranho que uma confederação sindical dedique mais tempo a achar que 0,3% em salários de pessoas que têm salários congelados há mais de uma década e que estão na linha da frente da resposta a esta crise é muito, em vez de negociar o aumento de salários no sector privado, que é o que devia estar a fazer. É absolutamente desastroso que comece por falar na dificuldade de aumentos porque sabemos que, sempre que se corta de um lado, acaba a cortar-se em todos os trabalhadores. Esse foi o mesmo discurso da troika. Começou assim e acabou a cortar em tudo, até no subsídio de desemprego.

O Governo estará a pensar nisso?

Não sei, espero bem que não esteja.

A ministra da Saúde queixou-se dos grupos privados que fecharam portas na pandemia...

E fez bem. Podia era ter feito um pouco mais. Os privados estão a fazer uma chantagem enorme ao dizer que estão disponíveis para as cirurgias programadas mas que querem negociar os preços para aumentar a sua rentabilidade, o que é inaceitável. Há interesses económicos muito poderosos. Isabel Vaz dizia há uns anos que o negócio da saúde conseguia ser o mais rentável do mundo logo a seguir ao tráfico de armas. Não nos enganamos sobre o poder dos grupos económicos no sector da saúde e a chantagem que fazem. A obrigação do Governo é não ceder à chantagem.

O decreto da renovação das PPP é uma cedência à chantagem?

É e é por isso que pedimos a apreciação parlamentar.