Lei das incompatibilidades "à medida"? Esta é "a pior altura" para Parlamento rever a lei
14-10-2022 - 14:14
 • Marina Pimentel

É o que defende Jorge Pereira da Silva, especialista em Direito Constitucional. Miguel Prata Roque, antigo secretário de Estado da presidência do Conselho de Ministros, defende criação de mecanismos de controlo e fiscalização sobre os interesses privados dos titulares de cargos públicos.

Ao pedir ao Parlamento que reveja o regime das incompatibilidades, o Presidente da República pode estar a criar condições para mais uma lei por medida. O alerta é feito por Jorge Pereira da Silva, professor de Direito Constitucional, que reconhece que o Presidente tem razão quando fala na existência de um emaranhado legislativo em matéria de incompatibilidades de titulares de cargos políticos e altos cargos públicos -- mas que diz que o momento para rever a lei não podia ser pior.

"Se há problema que nós enfrentamos neste domínio, há largos anos, eu diria mesmo décadas, é o das leis feitas por medida. Com três casos em cima da mesa, parece-me a pior altura possível para atribuir ao Parlamento, que tem ainda por cima uma maioria absoluta socialista, esta oportunidade para reverem o regime.”

O professor da Universidade Católica refere-se aos casos de eventuais incompatibilidades no exercício de funções públicas dos ministros Pedro Nuno Santos, Ana Abrunhosa e Manuel Pizarro.

Na sequência de toda a polémica em torno dos eventuais conflitos de interesse por parte dos três governantes e dos seus familiares, e dos pareceres do Conselho Consultivo da Procuradoria Geral da República, o Presidente da República pediu à Assembleia da República que “clarifique o regime dos deveres, responsabilidades e incompatibilidades dos titulares de cargos políticos e as consequências do seu incumprimento, não só porque existe sobre a matéria um ” emaranhado legislativo”, como também porque o Conselho Consultivo da Procuradoria Geral da República emitiu dois pareceres, um sobre o caso de Ana Abrunhosa e outro sobre o de Pedro Nuno Santos, em que levantou dúvidas sobre a interpretação da lei”.

Jorge Pereira da Silva lembra que “várias dessas leis, que fazem parte do tal emaranhado legislativo referido na mensagem do Presidente ao Parlamento, foram promulgadas pelo próprio Marcelo Rebelo de Sousa”. E defende que o problema foram as sucessivas alterações à lei.

“Não há nenhum outro domínio onde tenha havido tantas alterações; ao estatuto dos deputados, ao regime das incompatibilidades ,ao estatuto remuneratório, são no total dezenas de leis que se alteram umas às outras e às vezes uma vem alterar duas ou três e depois cruzam-se. E portanto é necessário encontrar uma forma de criar um regime com maior objetividade. Não é muito fácil. O legislador tem de ser chamado, claro. Mas há formas, como convocar a academia, comissões independentes...”

Para limitar o risco de legislar em causa própria, qualquer alteração à lei só deve entrar em vigor já com outro Parlamento eleito, defende ainda Jorge Pereira da Silva.

Já o procurador-geral-adjunto e presidente do Sindicato dos Magistrados Públicos, Adão Carvalho, lança outro desafio aos deputados: que criem mais mecanismos de fiscalização sobre a forma de contração pública por ajuste direto, que esteve em causa no caso da empresa da família do ministro das Infraestruturas, Pedro Nuno Santos.

“É importante que os deputados tenham uma especial cautela com as questões mais vulneráveis e que pressupõem menos controlo, designadamente o recurso ao ajuste direto. Porque o ajuste direto pressupõe uma maior intervenção do próprio titular do órgão e há portanto maior risco de quem escolhe quem é a entidade ou empresa a contratar possa exercer essa influência.”

Na ótica do especialista em Direito Administrativo Miguel Prata Roque, não é preciso fazer mais alterações à lei, ao contrário do que defende o Presidente da República. O importante, diz o antigo secretário de Estado da Presidência do Conselho de Ministros, é criar mecanismos de controlo e fiscalização sobre os interesses privados dos titulares de cargos públicos.

"O que faz sentido é que quando se vai fazer um contrato público haja um alerta informático que diga 'esta empresa está numa situação de proximidade com este titular de cargo político' e que isso fique imediatamente sinalizado."

Por outro lado, adianta, "há outros sistemas de direito comparado, em que existem os chamados ‘watchdogs’; ou seja, logo que eu inicie o exercício da minha função há determinada entidade, ou diretamente dependente do Governo, diretamente dependente daquele que nomeia, o primeiro-ministro, ou então uma entidade independente, que faz a verificação do curriculo profissional daquele que vai exercer o cargo.”

Por seu turno, João Paulo Batalha, vice-presidente da Frente Cívica, não tem qualquer expectativa sobre os resultados da iniciativa do Presidente da República. Diz que Marcelo limitou-se a pedir ao Parlamento que faça o que tem andado a fazer há mais de duas décadas.

"O que o Presidente pediu ao Parlamento foi que fizesse o mesmo que faz desde pelo menos 1993, que é tentar estabelecer um conjunto de incompatibilidades, de impedimentos na lei, não ter a mínima preocupação se a lei é aplicada, quem é que a aplica e quem se responsabiliza pela aplicação dessa lei, e depois tropeçar no caso concreto no dia seguinte."

"Nós andamos nisto há décadas, a fazer leis, a rever as leis, porque elas não abrangem o caso concreto que acabámos de testemunhar. A lei atual, que é de 2019, foi revista todos os anos desde 2019. Uma revisão por ano!”

Sobre o caso de Pedro Nuno Santos, considerado, por todos os participantes nesta edição do programa "Em Nome da Lei", como o mais problemático, por comparação com os da ministra da Coesão e do novo ministro da Saúde, o constitucionalista Jorge Pereira da Silva diz que por mais voltas que se tente dar à lei, deveriam ser tiradas responsabilidades do facto de o ministro das Obras Públicas deter, juntamente com os pais e a irmã, 50% de uma empresa que fez um contrato com o Estado, por ajuste direto, no valor de 19 mil euros.

“Olhando à materialidade da situação, temos uma empresa familiar e temos fundos públicos concedidos por ajuste direto. Podemos dar a volta que quisermos à lei mas, em última análise, de facto a responsabilidade política e a cultura democrática exigiriam aqui uma consequência.”

O especialista em Direito Administrativo Miguel Prata Roque defende que seria sensato o ministro das Obras Públicas vender a sua parte na empresa ou pelo menos suspender a sua participação. E lembra que essa possibilidade está prevista na lei.

”A lei dá uma possibilidade aos titulares de cargos públicos e políticos que é, uma vez abrangidos pela incompatibilidade, poderem liquidar a sua participação; ou seja, vendê-la a alguém, ou suspender essa mesma participação. Isso já decorria do Código Civil e do Código das Sociedades Comerciais, mas ficou completamente clarificado pela lei de 2019.”

Questionado sobre se era isso que Pedro Nuno Santos deveria fazer, responde que “como não estou aqui na minha qualidade de advogado e como também não fui contratado para aconselhar o sr. Ministro, não vou dizer isso, mas reconheço que eventualmente teria sido mais sensato fazê-lo”.

O ministro Pedro Nuno Santos escuda-se num parecer do Conselho Consultivo da Procuradoria-Geral da República (PGR), que concluiu não haver incompatibilidade porque o negócio feito entre a empresa do governante e o Estado não passou pelo Ministério por ele tutelado. Mas o constitucionalista Jorge Pereira da Silva põe em causa a independência do órgão que emite o parecer e que considera ser "uma espécie de gabinete privativo de jurisconsultos do Governo".

"Eu tenho dúvidas quanto ao papel crescente que o Conselho Consultivo da PGR tem tido nos últimos tempos, porque acho difícil que o Ministério Público seja simultaneamente guardião da legalidade, e portanto persiga as pessoas, incluindo membros do Governo por cometerem ilegalidades, e ao mesmo tempo tenha dentro de si um órgão que, não sendo exclusivamente constituído por magistrados do Ministério Público, é sucessivamente utilizado pelos membros do Governo para dar pareceres que são obviamente pareceres com qualidade técnica e com objetividade mas em que há, convenhamos, uma certa instrumentalização.”

Para João Paulo Batalha, o Conselho Consultivo da PGR “transformou-se numa fábrica de venda de indulgências ao Governo”. E sobre o caso de Manuel Pizarro, o que a Frente Cívica gostaria de saber era quem eram os clientes da empresa, que o ministro da Saúde entretanto dissolveu, e que agora podem ter acesso privilegiado ao governante.

“Onde eu vejo problemas no caso de Manuel Pizarro não é na questão da gerência da empresa. Eu gostaria que alguma entidade soubesse quem foram os clientes de Manuel Pizarro, para poder vigiar se, porque podem ter acesso privilegiado ao novo ministro. Esta é uma questão que não está prevista na lei, mas é a mais importante, em termos de integridade pública", conclui o vice-presidente da Frente Cívica e um ativista da transparência na vida pública.

O debate sobre a Lei das Incompatibilidades marcou o episódio desta semana do programa "Em Nome da Lei", emitido aos sábados, na Renascença, logo a seguir ao meio-dia, e sempre disponível nas plataformas de podcast e na popcast, a plataforma de podcasts da Renascença.