Rodrigo de Matos, cartoonista. "Vivemos uma debandada de portugueses de Macau"
20-12-2021 - 08:30
 • João Carlos Malta

Esta segunda-feira assinala-se 22 anos de transferência da soberania de Macau de Portugal para a China. Numa época conturbada marcada pela pandemia e por um reforçar das leis de segurança nacional no pós-confrontos de Hong Kong, o cartoonista português Rodrigo de Matos ajuda a perceber em que ponto está o território que os portugueses governaram durante séculos.

Aos 46 anos, Rodrigo de Matos é um dos grandes cartoonistas portugueses da sua geração. Nasceu em Angola e viveu 15 anos no Brasil. Estudou em Portugal e reside desde 2009 em Macau.

No final do mês passado, Rodrigo conheceu mais um ponto alto da carreira como cartoonista, quando pela primeira vez viu um desenho seu na primeira página do jornal francês "Le Monde". Em 2014, já tinha sido galardoado, na Bélgica, com o Grande Prémio no concurso Press Cartoon Europe.

Há mais de uma década no território que foi governado pelos portugueses até 1999, e dono de uma "caneta" mordaz, o cartoonista lança um olhar sobre como Macau está a viver a pandemia e as restrições sanitárias (e não só) que criaram "uma bolha" naquela cidade do sul da China.

A situação da comunidade portuguesa e o "apertar do ferrolho" à liberdade de expressão e à liberdade de imprensa são temas de que não foge.

Como tem sido viver em Macau estes anos de Covid-19? Que alterações houve na forma de vida?

Houve algumas alterações bastante prejudiciais para a vida que nós tínhamos. Mas penso que será muito dentro do que aconteceu em todo o mundo, os encerramentos de fronteiras.

A economia de Macau ressentiu-se bastante por estar tão baseada na indústria do jogo e na vinda de turistas da China Continental, que durante meses a fio esteve interdita. Toda essa indústria sofreu um abate grande, houve imensos despedimentos. Deixou de haver trabalho para toda a gente. E com ela, todas as outras [indústrias] associadas, satélites, sofreram por tabela. Houve muita gente a perder trabalho, a perder negócios.

A grande enchente de gente que costumava haver, deixou de haver [n.d.r. Macau chegou a ter mais de 30 milhões de visitantes por ano]. A cidade deixou de estar tão congestionada, o trânsito passou a fluir um pouco melhor e andar em determinadas zonas, em que antes era difícil, devido ao grande afluxo de gente, voltou a conseguir fazer-se.

Foi uma oportunidade para redescobrir a cidade?

Exatamente. Mas penso que isso não chegou para compensar o que se perdeu.

Houve restrições de circulação quase por toda a parte, mas dá a ideia que Macau está a querer viver dentro de uma "bolha".

Exato, e viver nessa "bolha" não chegou para tentarmos manter dentro dela um certo nível de normalidade.

Ora, o vírus não entra em Macau e nós, ao invés de aproveitarmos para manter o nosso físico forte e estimulado, tivemos uma série de atividades que passaram a ser restritas. Deixou de se poder ir à piscina, jogar futebol e uma série de outras modalidades.

Os jornais estão a passar por um período de "vamos ver como se vai sobreviver aqui".

Achou-se que a resposta era fechar as pessoas em casa, quando está mais do que provado que isso não é necessariamente bom.

Porque é que houve essa intensidade na resposta à pandemia, que deste lado do mundo parece desproporcional para o número de casos que Macau apresentou ao longo do tempo? Se numa fase inicial ainda se entendia pelo desconhecimento que havia em relação ao vírus, ao longo do tempo parece ter deixado de fazer sentido.

Penso que é uma certa cultura de medo, que foi instituída, e o governo de Macau valeu-se daqueles resultados conseguidos a nível de infeções que foram muito baixas.

O vírus foi completamente controlado, ao mesmo tempo que foram instituídas todas essas restrições draconianas. O facto de se ter conseguido manter um certo controlo dos casos serviu para dizer: “Espera lá, estamos a fazer alguma coisa bem”.

Houve uma inércia, continuaram a fazer as mesmas coisas por se achar que se está a fazer bem. É um grande erro de facto.

Estás em Macau desde 2009, já passou mais de uma década, o que mudou desde essa altura para quem como tu desenha cartoons?

Não mudou muita coisa em termos do que é a minha atividade, a não ser uma certa perda de força dos jornais. As publicações de imprensa escrita são o meu cliente alvo e cheguei a ter uma colaboração com dois jornais em Macau. Atualmente mantenho apenas com um.

Os jornais estão a passar por um período de "vamos ver como se vai sobreviver aqui".

Temos três diários em língua portuguesa e vivemos atualmente uma debandada de portugueses de Macau. Logo, o público que já não era muito numeroso…

A imprensa escrita de Macau tem umas condições especiais que passam por ser subsidiada − uma das coisas que foi negociada com a transição é que a imprensa recebesse um certo tipo de ajuda, porque ia perder força económica pelo número de portugueses que abandonou Macau quando a soberania passou para a China.

Estamos a viver um novo período de perda de população portuguesa.

Falas de debandada, em que é que te baseias para dizer isso?

Tenho essa sensação, não tenho números, não tenho dados. Vejo muita gente conhecida a abandonar Macau, ou porque não tem aqui a mesma capacidade financeira, porque houve muitos cortes salariais, muitos empregos que desapareceram, ou porque estão fartos de viver nesta "bolha".

Há pessoas que se adaptam mais ou menos à coisa, eu tenho conseguido encarar isto com a naturalidade possível, dentro das restrições que aqui há. Tenho estado em Macau desde que fecharam as fronteiras. Não me aventurei ainda a passar pelas quarentenas [n.d.r. quem entra em Macau tem de passar por uma quarentena de 21 dias numa unidade hoteleira da região]. Admito que haja muitas pessoas que não tenham muito feitio para isto.

Há famílias que não se veem há três anos...

Sim. Há pessoas que não tendo capacidade para ver a família, pensam “não consigo viver assim, vou-me embora”. Têm acontecido muitos casos.

Gestão da pandemia? Penso que é uma certa cultura de medo, que foi instituída, e o governo de Macau valeu-se daqueles resultados conseguidos a nível de infeções que foram muito baixas.


Mas isso não se restringe à comunidade portuguesa. Essa debandada alarga-se a muitos outros expatriados de diversas nacionalidades. Há até cafés e espaços que eram frequentados por estes grupos que estão a fechar. Que significado tem esse facto?

Realmente não têm sido só os portugueses. Todas as pessoas de fora têm sofrido aqui uma machadada. A vida em Macau mudou muito nos últimos anos, e não necessariamente para melhor. Deixa de ser tão interessante estar cá e, por isso, muitas pessoas vão embora. E é pena.

Se caminharmos num sentido de uniformização cultural da população de Macau para torná-la mais chinesa, não vejo que Macau ganhe muito com isso.

Os teus trabalhos têm um pendor político bastante ácido. No atual momento, em que Macau vive com uma presença cada vez maior do Governo Central da República Popular da China na vida do território, como é que é fazer o teu trabalho?

Até ver não tenho tido dificuldades a nível de pressões. Não posso garantir que possa ser sempre assim. No meu dia-a-dia, o meu trabalho como cartoonista não sofreu nada de visível com este apertar da situação.

A lei de segurança nacional, o cancelamento da exposição do World Press Photo, Hong Kong e o massacre de Tiananmen. Estes são temas que continuas a desenhar e que em Macau são agora muito mais difíceis de tratar jornalisticamente. Fazê-lo é um ato de coragem pessoal, hoje em dia?

Talvez, mas procuro não pensar nisso. Para mim, os critérios são apenas do que é relevante e do que tem graça para mim. Aquilo a que consigo lançar um olhar irónico e sarcástico, critico. Nesse sentido, aquilo que é a matéria-prima do meu trabalho continua bem viva, cada vez mais.

A vida em Macau mudou muito nos últimos anos, e não necessariamente para melhor.

Quanto mais há um apertar do ferrolho, mais o cartoonista tem aquela "verve" de atacar as situações. Para já, não tenho sentido qualquer tipo de pressão.

Mas o meu trabalho é muito centrado na imprensa em português. Não posso garantir que teria o mesmo tipo de trabalho que tenho, se estivesse a trabalhar para um órgão de língua chinesa.

Um dos marcos históricos mais importante nessa zona do globo nos últimos tempos, ocorreu em 2019 e início de 2020, em Hong Kong. Como é que isso influencia o que hoje se passa em Macau?

Não vou dizer que Hong Kong era o nosso quintal, nós é que somos o quintal de Hong Kong. Mas Hong Kong era um oásis para nós que estamos em Macau. Estamos numa cidade relativamente pequena, apesar de ter um ar de cidade grande.

Mas é muito importante ter Hong Kong a uma hora de "ferry boat" e podermos ir respirar um outro ar. Ver pessoas de um outro nível de cosmopolitismo. Hong Kong é uma cidade muito viva, muito interessante. E eu ia lá muito frequentemente. Desde que se passou essa situação, e com a Covid, as fronteiras fechadas, nunca mais voltei.

No meu dia-a-dia, o meu trabalho como cartoonista não sofreu nada de visível com este apertar da situação.

Há uma tentativa agora de abertura, mas com muitas limitações. Há uma restrição, apenas mil pessoas por dia podem ir a Hong Kong, é preciso um pedido prévio.

É triste. Tínhamos uma situação muito interessante para Macau e para Hong Kong, no "um país, dois sistemas" que aqui funcionava. E atualmente está muito aquém do que seria de esperar, daquilo que estávamos habituados.

Há o risco de Macau deixar de ser a cidade que se conheceu pelo menos nos últimos 20 anos, passar a ter uma expressão menos internacional e estar mais perto do que é uma cidade da China Continental? Hoje Macau já é mais parecida com uma outra qualquer cidade chinesa?

Cada vez mais. Nitidamente. É uma tendência que se nota e que é pena. Estávamos aqui todos expectantes para ver se o tempo ajudaria a humanidade a superar esta fase de Covid e se, de certa forma, poderíamos voltar a ter aquilo que tínhamos antes.

Mas não sei se já não terão sido dados passos, no sentido de uniformização e absorção destas cidades para o "status quo" do resto da China. É pena ver isso.

Não era a expetativa que tinhas quando foste para Macau?

A esperança era sempre de que não. Sabíamos que ia acontecer, não sabíamos era como. Sempre esperámos que a China, que desde o tempo do Deng Xiao Ping estava a abrir em termos de mercado, que abrisse noutras vertentes, mesmo que não fosse politicamente através da democracia.

Aquilo que é a matéria-prima do meu trabalho continua bem viva, cada vez mais.

Mas, ainda assim, que se fosse aproximando de uma tolerância mais aberta, mais universalista. Tenho pena de não estar a ver as coisas ir nesse sentido nesta era do Xi Jing Ping. Há uma regressão.

Visto de fora, hoje em dia, olha-se para o teu trabalho e parece ser um oásis de liberdade na imprensa de língua portuguesa e inglesa em Macau. É assim que o sentes?

Tem havido coisas lamentáveis e que ainda não me atingiram diretamente. Não me posso queixar da minha situação, para já. Mas eu não sou exemplo do panorama geral da imprensa em Macau. Tenho conseguido passar ao lado de tudo isso, por enquanto, mas vamos ver.

Um dos temas recorrentes nos teus cartoons são os trabalhadores não residentes. Porquê? Macau tem um problema com os que a procuram para trabalhar?

Eu trato todos os temas da mesma forma. Vejo o que está mal na sociedade, vejo o que é incongruente e merece crítica e abordo esse tema. Temos a situação dos trabalhadores não residentes em Macau que é muito curiosa e que sempre assim foi desde que aqui cheguei.

Não tem evoluído num sentido necessariamente bom. Em Macau há a cultura de "Macau para as pessoas de Macau":

É uma cultura um pouco fechada. Uma pessoa pode vir de fora e aportar algo de diferente em termos culturais. Temos trabalhadores não residentes vindos de regiões mais pobres e que vêm fazer trabalhos que os locais já não estão interessados. Muito à imagem do que temos em Portugal com muitas comunidades de cabo-verdianos, pessoas vindas das antigas colónias, ucranianos e brasileiros.

Mas se achamos que em Portugal não recebemos bem essas pessoas, aqui há uma clara aceitação com uma certa desumanidade.

E choca mais por estarmos a falar de um território em que o rendimento per capita é tão alto?

Exatamente. Se é reconhecido o interesse de uma pessoa estar cá em Macau por haver um trabalho que ela pode realizar e, por isso, lhe é dada a autorização para estar a trabalhar, não vejo qualquer justificação para que essa pessoa não seja automaticamente inserida em Macau como cidadão de plenos direitos.

Macau tem uma população muito superior do que era há uns anos. O grosso da população de Macau tem origem em outras paragens, nomeadamente em outras regiões da China. Pessoas que há três ou quatro gerações não seriam consideradas como locais e que hoje são. São essas as primeiras a negar às outras um direito de cidadania plena.

Faz 22 anos que a administração do território passou dos portugueses para os chineses. Fazendo um exercício de futurologia como vês os próximos anos da comunidade portuguesa aí no território?

A nossa presença é ancorada na história, naquilo que Portugal trouxe para Macau, desde a cultura, a língua, um certo tipo de elementos que têm sido, e bem, utilizados para venderem uma imagem de diferença enquanto produto turístico que Macau é. Estamos presentes na área do direito, a lei é baseada na lei portuguesa.

Mas até no direito a China começa a ganhar preponderância.

Estamos a perder força. Estamos a perder força em todas as frentes aqui em Macau. Não haja dúvidas. Temo que a nossa presença se acabe por dissipar e que os vestígios da nossa cultura aqui em Macau acabem por ser absorvidos e transformados noutra coisa.

Para quem faz o teu trabalho a liberdade de expressão é o alfa e ómega. Que avaliação fazes do estado da liberdade de expressão e de imprensa em Macau e o que antevês para o futuro?

Não gosto de ser pessimista, mas os sinais que vemos não são bons. Não apenas aqui, mas em todo o mundo.

Os sinais não são bons, em relação às liberdades, ao controlo dos media e da informação que é veiculada. Enquanto houver espaço para a opinião livre − o cartoon é como uma crónica ou um editorial − nós vamos existindo. Mas os sinais não são muito promissores. Não gosto de ser pessimista, mas temos de olhar para o que se passa à nossa volta com realismo.