Em Vilar de Lordosa, no concelho de Viseu, a centenas de quilómetros do Parlamento, que discute esta quarta-feira o estado da Nação, Belarmino Almeida, de 69 anos, sai de sua casa com a mangueira às costas até chegar à bica onde jorra a água que há de encher o tanque de 500 litros que tem na garagem.
O construtor civil aposentado precisa de ajuda para a rotina diária. “Portanto, agora, abasteço com esta mangueira que tenho aí, com este funil, ponho naquela bica, que tem água suficiente, e encho o depósito. Todos os dias tenho de encher para tomarmos banho, para utilizar na cozinha. Isto é cansativo. uma trabalheira. É muito trabalho e sempre foi assim. Não há forma disto de mudar. Temos água em cima, na estrada principal. Está lá lacrada, por um pouco metiam na aldeia, mas não a metem”, lamenta Belarmino.
Este habitante de Vilar de Lordosa sublinha a acrescida dificuldade quando se encontra sozinho em casa. “Quando a minha filha ou o meu filho não estão, tenho de esperar que cheguem. Chegamos, às vezes, às 10 da noite a estar a encher isto. E esta fonte no verão seca, agora ainda deita mais ou menos, mas em agosto fica seca”, aponta.
Na mesma freguesia, mas na localidade de Pousa Maria, também não existe rede de água pública.
“Lavamos a roupa na casa do nosso vizinho”
Mas mesmo com o tanque cheio, não há capacidade para ligar a máquina de lavar a roupa. A filha de Belarmino, Meiline Almeida, de 24 anos, pega na roupa suja e vai à casa do vizinho.
“Nós temos um vizinho na estrada principal que tem uma máquina de lavar, nós temos a chave da garagem deles, e quando precisamos vamos lá lavar a roupa, porque de momento não conseguimos ter máquina de lavar, porque a forma que nós temos água não nos possibilita ter a máquina de lavar, o tanque não chega, ou seja, nós tínhamos de encher o depósito em vez de uma vez por dia, se calhar duas ou três vezes por dia, o que é impensável para nós, por isso é que nós pedimos o favor”, conta Meiline, recordando que quando a mãe era viva, a roupa era lavada à mão.
A casa do vizinho fica aqui a 200 metros e é “mesmo amizade” que ajuda esta família. “Na altura eu nem queria aceitar muito bem isso, e ele ficava zangado se a gente lá não fosse. E, portanto, agradeço-lhe isso. Quando ele precisa de alguma coisa, ajudo no que ele precisa”, conta Belarmino.
“Por 40 ou 50 mil euros" a obra estava feita
Na freguesia de Lordosa, pelo menos cerca de 60 agregados familiares não têm saneamento básico e alguns nem acesso à rede de água pública, confirma José Manuel Pereira, o presidente da junta de freguesia.
O autarca não esconde a indignação: “fazer saneamento é uma obra não visível, fica enterrada. E muitas vezes os autarcas entusiasmam-se mais com obras que tenham mais brilho e que caiam nos olhos dos cidadãos e dos munícipes, no dia-a-dia".
"É uma questão de saúde, uma questão de qualidade de vida, uma questão ambiental e tudo isto tem uma importância muito grande e eu não compreendo como é que se prefere fazer grandes obras megalómanas de milhões e milhões e milhões e se deixam e se continuam a deixar para trás necessidades básicas das pessoas e das populações. Isso, para mim, é uma coisa inaceitável”, declara José Manuel Pereira.
O presidente da junta explica à Renascença os custos que comportaria o investimento na sua freguesia. “Têm sido feitas algumas coisas positivas, está uma ETAR em construção em Galifões, que é um sinal muito positivo e um investimento significativo por parte da Câmara. Nós temos a localidade de Pousa Maria em que o serviço do SMAS, Serviço Municipalizado de Águas e Saneamentos de Viseu, tem o projeto feito, tem tudo orçamentado e por 40 ou 50 mil euros não se avançar com uma obra dessas que permita as pessoas terem água em casa, é inaceitável”, conclui.
Governo central sem noção
Além do abastecimento, o presidente de junta de freguesia de Lordosa alerta para a questão ambiental. “Nós temos muitos resíduos pelo país fora, principalmente no interior, que não são devidamente tratados. Hoje em dia, todos nós falamos muito, mas nós não temos o devido tratamento dos nossos resíduos. E eu temo que nos próximos anos vamos ter surpresas, porque começam a existir pessoas que vão fazer levantamentos, onde é que os resíduos são tratados, e nós vamos ter muitas surpresas de resíduos que são lançados em linhas de água, que estão a poluir o ambiente e que não são conhecimento do Governo Central”, denuncia José Manuel Pereira.
Presidente de junta de Lordosa desde setembro de 2021, José Manuel Pereira assume que a freguesia com cerca de 2.300 habitantes tem sido muito procurada por pessoas interessadas em comprar habitações ou construírem, pela proximidade ao centro da cidade de Viseu e, por isso, lamenta estes constrangimentos.
“Estamos a falar de um problema que tem décadas. Portanto, em 2024, nós queremos ligar a máquina da roupa e não conseguimos lavar roupa porque não temos água, queremos tomar um banho no final do dia e temos de ir buscar água a fontes para nos socorrer, é uma situação que já não se coaduna com os dias de hoje”, defende o autarca, assumindo ser um problema que afeta “para cima de 60 agregados familiares, pessoas são mais”.
Cansados de promessas, os habitantes mais velhos queriam poder viver para ver a água e o saneamento básico chegar a casa, mas parece impossível.
“Foi toda a vida promessas, mas não passou disso, era eu miúdo e já se falava no saneamento e meter água, e eu dizia, ainda hei de morrer e sem colocarem água pública, cá estou a ver que morro mesmo sem ela vir”, lamenta Belarmino.