Arturo Pérez-Reverte: “A pandemia tornou-nos mais egoístas”
16-09-2020 - 14:27
 • Maria João Costa

Acaba de lançar em Portugal, pela Asa, o livro “Uma História de Espanha”, que espera ser “útil” para devolver às novas gerações a memória e o interesse pela História. O escritor espanhol diz-se “menos preocupado com a pandemia, do que com as suas consequências”. Defende que uma federação ibérica seria "uma ferramenta de poder e pressão política muito eficaz na Europa" e que o "erro grave" de Espanha foi quando Filipe II não instalou a capital da Ibéria em Lisboa.

Não queria falar da pandemia, mas já fora da gravação da entrevista com a Renascença, o escritor espanhol Arturo Pérez-Reverte quis saber como estava a situação em Portugal, e em particular em Lisboa, onde quer regressar. Sobre a escalada de casos positivos de Covid-19 em Espanha, o autor de 69 anos recusa comentar, mas diz estar muito preocupado com os efeitos sociais e económicos da pandemia. Teme mesmo convulsões sociais.

Numa altura em que está a lançar em Portugal o livro “Uma História de Espanha”, o escritor que já foi repórter denuncia que “os programas educativos estão a desmontar a memória histórica da Europa” e receia o regresso dos totalitarismos. Um dos autores mais lidos no país vizinho, diz que se Portugal e Espanha fossem uma “federação” teriam mais peso político na Europa e não seriam “desprezados” pelos países do norte.


O que o motivou a escrever “Uma História de Espanha”? É um livro alternativo e num tom pouco académico, sobre a História do seu país.

Não pretende ser um livro académico. É um livro absolutamente subjetivo, informal e divertido. O que me motivou a escrever foi o facto de nos últimos tempos a História estar a desaparecer dos programas de educação, não só em Espanha e Portugal, mas em toda a Europa. Os programas educativos estão a desmontar a memória humanística e histórica da Europa. Entre os jovens há grandes lacunas e desconhecimento da História. Pensei que seria divertido para os jovens, e mesmo para os menos jovens, contar a História de uma forma amena e sobretudo sugerir-lhes que há muitos assuntos interessantes que podem encontrar em livros “sérios”, para que se interessem pela História.

Ao longo do livro, fala da pulsão dos espanhóis para a guerra civil. Não há como mudar essa pulsão?

Creio que é um impulso suicida, histórico e Ibérico. Não é só em Espanha. A questão é que Portugal teve a sorte de se manter um pouco à margem, pelo seu perfil Atlântico. Ficou livre desse impulso suicida. Nós temos! E as razões são complexas. Espanha é um lugar muito complicado, foi fronteira durante muito tempo entre duas civilizações, a muçulmana e a cristã. Depois é um país que teve muito azar politicamente. O peso da igreja e da inquisição foi terrível. Nunca houve uma revolução, como em França que limpasse as estruturas medievais e muitas delas subsistem até hoje, ao século XXI. Além disso é um país complicado em termos geográficos, muito compartimentado. Isso faz com que sejamos um país azarado, no entanto, a sua História é fascinante, com momentos bonitos, e terríveis, muitos dos quais partilhamos com Portugal. Pensei que isto era uma boa matéria, o problema é que o mundo atual perdeu a memória. Qualquer tentativa de devolver a memória, acho que é útil.

Faz poucas referências a Portugal em “Uma História de Espanha”. Portugal é irrelevante para a história de Espanha?

Menciono Portugal várias vezes. Sobretudo, o que digo é que a História de Espanha, não é a História da Ibéria. É uma coisa que menciono no livro muitas vezes. Como sabe, eu, tal como o meu amigo Saramago, sou iberista. Acredito mesmo que a separação geográfica entre Espanha e Portugal é meramente acidental. Fazemos parte do mesmo espaço. Para mim, a zona ibérica é um espaço por onde passaram muitos povos, línguas, etnias muito variadas e tem uma História fascinante. Espanha e Portugal partilharam grande parte dessa História. O que digo sempre, é que o erro grave de Espanha foi quando Filipe II não instalou a capital da Ibéria junto ao Atlântico e deu uma projeção atlântica aos impérios português e espanhol, esquecendo a Europa com a qual não tínhamos nada a ver.

Mas há um sentimento de inveja, que também considera muito típico dos espanhóis?

Ainda hoje, no século XXI, penso que há um erro muito grande nas nossas relações. Creio que Espanha e Portugal não deveriam ter uma unidade política, mas terem uma federação e organismos que criassem maior coordenação entre ambos. Seriamos muito mais poderosos. A nossa voz na Europa seria ouvida de uma forma muito mais eficaz. Esse norte da Europa que despreza tanto o sul, pensaria melhor antes de nos desprezar como nos desprezam. Acho que Portugal e Espanha juntos seriam uma ferramenta de poder e pressão política muito eficaz na Europa. Não o aproveitamos, insisto, em grande parte por culpa dos espanhóis que se viraram de costas para Portugal, como se ele não existisse.

O que representa para si Portugal, hoje?

Portugal continua a ser um refúgio. Quando a Espanha for por água a abaixo, como está agora neste momento muito perturbado, gosto de pensar que tenho lugar em Portugal. Posso ir refugiar-me entre gente com quem me sinto bem. É um refugio de retaguarda. Dessa forma, alegro-me por Portugal não estar misturado com o caos social, político, económico e cultural em que vive a Espanha, neste momento.

No livro desvaloriza várias vezes as identidades catalã e basca, que hoje em dia parecem tão acentuadas. Porquê?

A questão é que Espanha nunca soube resolver o problema da herança medieval. Espanha, como todos os reinos medievais, surgiu com imensos condicionamentos regionais e privilégios feudais. Em França tudo isso, no século XVIII, com a Revolução Francesa, foi liquidado e criaram uma igualdade de direitos e obrigações para todos. Em Espanha, isso não aconteceu e por razões complexas, subsistiram todos esses focos medievais de privilégios. Esses problemas, nunca resolvidos, hoje em dia estão de novo a surgir e a complicar a já difícil situação política espanhola.

Espanha vive de novo dias de tensão. É um ‘caldo’ para a guerra civil? ou seja, o clima é de uma guerra civil não armada?

Acho que não! Eu cobri muitas guerras civis como repórter e reconheço-as muito bem. O que há é o perigo de uma degradação económica e social e, se isso acontece, há distúrbios nas ruas, insegurança e problemas. O que se passa é que no final, tudo isso abre caminho aos totalitarismos. A mim, o que me dá medo não é a guerra civil. Tenho medo que a crise acabe por trazer de novo movimentos totalitários, porque as pessoas, depois do caos, dos conflitos na rua e da delinquência, querem segurança, ordem e paz. Isso, os regimes totalitários sabem vender como uma mercadoria fácil. Temo que isto nos leve, não agora, mas no espaço de uma geração a um regresso das formas autoritárias e à perda da liberdade que durante tanto tempo e com tanto sofrimento, os europeus e também os espanhóis, conseguimos.

Considera a ideia de Espanha anterior às identidades autonómicas? É ainda um fator de união?

Espanha já não pode unir-se. O momento de unir a Espanha, foi no século XVIII com a Revolução Francesa. Foi o último momento em que Espanha poderia ter tentado essa unidade política, sempre tentada e nunca conseguida. Perdida essa oportunidade, já não se pode aplicar os métodos dos séculos XVIII e XIX. É impossível, não se pode voltar atrás. Não se pode retirar às autonomias espanholas, o poder que lhes deste. A insularidade e a divisão em dezassete Espanhas políticas, já não pode voltar atrás. Acho difícil essa unidade. Nem sei se seria boa, porque são poucos os que pedem essa unidade. Espanha chegou a um lugar muito difícil e muito complicado. O que acontece é que fomos demolindo e destruindo o processo de transição que foi admirável e exemplar. Estamos a destruir um sistema que era útil e não temos nada melhor. Estamos de mãos vazias e isso torna-me pessimista. Como tenho 69 anos, já não me preocupo, mas fico apreensivo pelas novas gerações.

Faz várias referencias aos livros da escola do franquismo por onde aprendeu História. Hoje os jovens espanhóis aprendem uma história menos ‘inquinada’?

Agora, em Espanha, tudo se transformou numa armada política. E há uma coisa muito grave. Na minha juventude, há 30 ou 40 anos, as universidades eram lugares de debate político. Debatias com o adversário, gente de quem discordavas, sentavas-te e discutias. Havia um debate intelectual do qual saiam luzes, inteligência e conclusões úteis para a convivência comum. Agora, não. Agora, por razões diversas queremos o adversário silenciado. Não queremos ouvir os que não pensam como nós. Queremos que não fale, que se cale!

As redes sociais agravam essa falta de debate?

As redes sociais são uma ferramenta terrível para calar e silenciar. As redes sociais não proporcionam o debate. Agora não queremos o adversário convencido, queremo-lo exterminado. Isto é terrível, porque substituímos o debate político, pelas considerações fáceis e temos as considerações históricas nas mãos de demagogos que manipulam as redes sociais com quatro "tweets" e as pessoas são iludidas e seguem estes falsos profetas. Encontramos um mundo de analfabetos conduzido por analfabetos. Isto é muito perigoso e dá-me medo.

Qual a saída?

Acho que só há uma solução para isto: Educação e Cultura! Criar novas gerações lúcidas, críticas e preparadas intelectualmente para poder debater e distinguir o que é, ou não, sério. Mas os livros de estudo fomentados por estes analfabetos de Bruxelas, estes políticos que estão longe da realidade e que estão a moldar a educação e a cultura na Europa e em Espanha, estão a causar danos. Em Espanha estão a crescer gerações de jovens desorientados, órfãos à mercê do primeiro que chegue e diga que é seu pai!

Como estão a ser os dias de pandemia em Espanha, os números não param de subir. Como vê a atual situação?

Eu prometi não falar da pandemia. Quando isto começou há uns meses, disse para mim mesmo, não vou falar disto! E não o quero fazer, porque já se fala muito e eu não quero somar a minha voz ao coro. Mas há uma coisa que posso dizer. Preocupa-me menos a pandemia do que as suas consequências.

Porquê?

Morrer, todos vamos morrer. Ficar doente, todos vamos ficar doentes. Sempre houve epidemias e mortes. Passei a minha vida como repórter a ver gente a morrer de várias maneiras. Isso não me preocupa muito. Faz parte da vida. O que me preocupa são os resultados posteriores. A crise, a economia, o desemprego, a tristeza de uma sociedade completamente manchada pela incompetência dos políticos que agravam os danos desta pandemia. Isso sim, preocupa-me muito.

Que repercussões podem ter as consequências?

Preocupa-me que o mundo, e Espanha, estejam a perder a capacidade de viver com normalidade. Isso significa que vão acontecer grandes convulsões nas próximas gerações. Os miúdos não serão iguais, vão viver de uma forma pouco solidária. A pandemia, em vez de gerar o mais nobre do ser humano, e dos espanhóis, neste caso, está a criar o menos nobre, o egoísmo, a não solidariedade. Não gosto disso! Preocupa-me as consequências.

As novas gerações sofrerão as marcadas do isolamento.

Sim, repare, a guerra civil fez melhor aos espanhóis, porque os fez sofrer. É como aconteceu em Portugal, com a ditadura. Que bonito que foi abril! As pessoas tinham sofrido e descobriram o valor da liberdade, do diálogo, da alegria, da vida, de se abraçarem na rua, unir-se numa causa comum. As pessoas estavam felizes e não queriam repetir a ditadura. Em Espanha foi igual. As pessoas que sofreram, são boas porque sofreram coletivamente. Na pandemia as pessoas sofrem individualmente. A pandemia faz-nos sofrer cada um em sua casa, encerrados, longe dos outros. Isso faz com que o sofrimento não seja socialmente produtivo e bom. Afastou-nos dos outros, em vez de nos aproximar. A compaixão e caridade que antes sentia um homem que passou a guerra civil, a ditadura, ou a guerra colonial em Moçambique ou em Angola, esse sentimento de humanidade que cria dor quando não estás com os teus, a pandemia tornou-os mais egoístas. Nesse sentido, é um sentimento muito negativo do qual pouco ou nada de positivo podemos retirar.

Está já a trabalhar num novo livro, “Linha de Fogo” sobre a guerra civil espanhola?

Sairá no final de outubro. É um livro muito duro de 680 páginas. É um romance que escrevi porque as pessoas que viveram a guerra civil, que sofreram, já morreram e agora há gerações de políticos que estão a manipular a guerra civil como arma política. Como os jovens perderam a memória direta da guerra civil, não sabem o que foi, acreditam em tudo o que os políticos dizem. Eu quis recuperar um relato feito com os testemunhos daqueles que estiveram na luta, recupero memórias familiares, documentais e pessoais para devolver às novas gerações esses relatos que estão a ser manipulados.