“Desistir” é palavra que não existe no vocabulário da jornalista portuguesa Mariana Van Zeller. A repórter premiada, que vive nos Estados Unidos, estreia em fevereiro a terceira temporada da série "Trafficked", no canal National Geographic.
Dos portugueses diz que herdou “o sangue explorador”. Na nova temporada de documentários procurou “infiltrar-se” em vários submundos, desde a venda de armas às barrigas de aluguer. Mariana Van Zeller lembra, em entrevista à Renascença, que “a maior parte das pessoas não sabe as economias informais” representam quase “metade da economia global” e fala da “missão enorme de tentar explorar” estas histórias
Nesta entrevista a partir dos Estados Unidos enquanto pede desculpa pelo seu português já estar algo contaminado pelo inglês, aponta a necessidade de fazer jornalismo nos dias de hoje. “Não existe uma democracia saudável sem jornalistas. Precisamos cada vez mais, e mais agora do que nunca de pessoas que estejam dispostas a uma vida difícil, frustrante às vezes, mas de procura da verdade”, conclui
O que vai revelar esta terceira série de "Trafficked"? Em que é diferente?
Nesta temporada o que tentamos fazer foi olhar para “headlines”. (Já não vivo em Portugal há 20 anos, peço desculpa pelo meu português!). É olhar para notícias que estão diariamente nas nossas televisões, jornais e revistas.
Pode dar exemplos?
Coisas como as “Ghost Guns” que são um problema gigante aqui nos Estados Unidos, a guerra na Ucrânia e estes temas que sabemos que existem e que têm um impacto. Foi mesmo ir procurar o que há por detrás dos títulos, e tentar investigar quem são os responsáveis, como é que esses mundos existem. Infiltramo-nos nestes mundos mais secretos que existem à nossa volta. Foi nisso que foi diferente esta temporada
Como é o trabalho de bastidores, o chegar aos casos? É um trabalho que implica muita investigação e trabalho de equipa?
É o que eu gosto de trabalhar em televisão e em jornalismo televisivo. É o facto de poder trabalhar com uma equipa, e neste caso, uma equipa espetacular que me apoia imenso. Quando vamos para o terreno geralmente somos só 6 pessoas. Sou eu, dois operadores de imagem, um assistente de imagem, uma produtora e um diretor. Mas em termos de pré-produção e pós-produção somos uma equipa de vinte e tal pessoas.
Há casos complicados de acompanhar, há alguma história que possa destacar desta terceira série?
Começo por dizer o que mais me emocionou. Nós fizemos um sobre o chamado "Black Market Babies", sobre a indústria que existe de barrigas de aluguer e descobrimos que o centro de barrigas de aluguer do mundo é na Ucrânia. Havia famílias no mundo inteiro que se tiveram de virar, nos últimos anos, para ali, porque é ilegal em muitas partes do mundo, ou é muito caro e as pessoas não conseguem pagar. Então, têm-se virado para a Ucrânia e para a indústria que existe lá legalizada de barrigas de aluguer.
Que história conta esse episódio?
O que aconteceu é que muitos pais do mundo inteiro, incluindo americanos, quando começou a guerra na Ucrânia, ficaram com os bebés presos nas barrigas destas mulheres ucranianas e elas não podiam sequer sair do país, porque mal passassem para a Polónia, que seria um país seguro vizinho, aí eram tratadas como se fossem traficantes de menores e as crianças iriam pertencer ao Estado, embora fossem de pais biológicos americanos ou de outros países europeus. Então, nós tivemos a oportunidade de ir à Ucrânia com um pai e uma mãe de São Francisco, dos Estados Unidos, que durante anos tentaram engravidar e não conseguiram.
Mesmo antes da guerra tinham conseguido arranjar esta barriga de aluguer de uma mulher ucraniana. Depois começou a guerra e conseguimos estar com eles quando conheceram e seguraram o bebé deles pela primeira vez. Foi um momento, super emocionante, isto no meio de um país em guerra. Depois vê-los a trazer o bebé para uma zona segura, acho que foi um momento em que nós, trabalhando sobre estes mercados negros onde vemos sempre produtos que provocam feridas ou que são mesmo mortais para outras pessoas, neste caso vimos um "produto" que traz tanta alegria e esperança para o futuro. Foi espetacular.
Mas há histórias menos felizes?
Houve casos chocantes como, por exemplo, ver um grupo de "gângsteres" ligado ao cartel mexicano, a 10 minutos de minha casa, nos Estados Unidos, em Los Angeles, a criarem e a construírem um arsenal de armas que nessa mesma noite, vimos a venderem a outras pessoas. Um dos compradores, não gostou de nós estarmos lá com camaras, estava mal disposto nessa noite, começou a gritar connosco. Conseguimos sair em segurança, mas foi um momento super difícil, ele estava armado!
Conseguimos sair em segurança e vim a saber que nessa mesma noite, ele usou as "Ghost Guns" que são armas não rastreáveis, que tinha acabado de comprar, e usou essa arma contra outra pessoa e foi preso nessa mesma noite. Foi chocante para mim, ver a distribuição destas armas que estão a ser encontradas em locais de crime, nos Estados Unidos, mas não só, também na Europa. E saber que não há forma nenhuma em que as autoridades conseguem ligar essas armas a alguém, porque não têm identificação qualquer, e que há uma proliferação gigante destas armas.
Já houve situações que a levaram a pensar em desistir?
Não, de maneira nenhuma. O nosso trabalho como jornalistas é continuar. Claro que eu digo sempre que não há uma história, no mundo, que valha a segurança ou uma vida como a minha ou de alguém da minha equipa, mas há sempre momentos como o que estava a contar em que temos que reequilibrar e pensar o que é que fizemos aqui que não podemos fazer na próxima vez, porque foi uma situação muito insegura para todos nós. Perigosa, mesmo!
Há sempre uma reavaliação da nossa segurança, mas não há momentos em que pensemos que temos de desistir. Aliás, alguns destes canais de acesso demoram meses, e até anos, para conseguirmos. São anos e anos de contatos que temos, há histórias, reportagens e episódios que já começamos a filmar, mas que depois temos de parar, porque não dá para ser agora. Não vai ser agora que vamos conseguir aceder, mas continuamos a tentar. Há histórias que tentamos fazer na primeira temporada e que só agora é que conseguimos na terceira. Há sempre uma evolução, mas desistir não existe no nosso vocabulário.
Há um lado de missão para si?
Claro que sim! Há um lado enorme de missão. A maior parte das pessoas não sabe que estas economias informais, é metade da nossa economia global! São estas economias informais, estes mercados negros e cinzentos. Sabemos tão pouco sobre eles! Há organizações, há redes inteiras que estão focadas só em saber cada alto e baixo da economia legal. Esta economia ilegal faz praticamente metade da economia mundial, por isso é uma missão enorme de tentar explorar, de tentar colocar o foco nestas partes mais secretas do mundo, mas que têm um impacto enorme nas nossas vidas diárias.
O que há de alma portuguesa em si, no meio de tudo isto?
No sangue de explorador que tenho! Acho que em tudo o que me move. Tenho, aliás um filho chamado Vasco, por causa do Vasco da Gama. É um sangue de explorador enorme que tenho e o que eu faço, é muito parte da exploração. Não é a explorar o mundo geograficamente de forma horizontal, mas é verticalmente, indo ao fundo destes mundos secretos, estes submundos que estão escondidos e que a maior parte das pessoas não conhece, mas que têm um grande impacto na nossa vida. E eu estou sempre, e nesta nova temporada que vai sair para o ano, a quarta temporada que estou a filmar agora, filmamos parte de um episódio em Portugal.
E pode revelar sobre o que trata?
Acho que não, infelizmente, não!
O jornalismo está cada vez mais ameaçado, quer por pressões políticas, quer pela falta de condições económicas. O que é que uma jornalista com a sua experiência diz a um jovem que está a dar os primeiros passos no jornalismo?
Que precisamos de vocês! Acho que é o momento da História em que precisamos mais de jornalistas. Acho também que é um momento da História em que os jornalistas estão mais sobre ataque, seja pela quantidade de jornalistas que são assassinados todos os anos, ao fazer o seu trabalho, ou que morrem em situações de risco, mas também pelo facto de termos tido aqui nos Estados Unidos e no caso de Bolsonaro e de outros presidentes à volta do mundo, pessoas que gostam de nos chamar "fake news".
Esta ideia de que podemos viver numa sociedade sem jornalistas, é impossível. Não existe uma democracia saudável, não existem sociedades saudáveis sem jornalistas. Precisamos cada vez mais, e mais agora do que nunca de pessoas que estejam dispostas a uma vida difícil, frustrante às vezes, mas de procura da verdade, sempre.
Convive com esse submundo de crime, com pessoas que vivem uma realidade paralela. Como se regressa a casa, à vida normal?
O maior engano que as pessoas têm sobre o tipo de reportagens que faço ou sobre o tipo de pessoa que eu sou, é que a perspetiva que eu tenho do mundo é muito deprimente, porque vejo estes mundos todos tão escuros, e miséria a acontecer no mundo. Mas acho que é muito o oposto.
Os 20 anos em que tenho estado a fazer reportagem nestes mercados negros, o que me tem ensinado é que mesmo as pessoas que consideramos os nossos maiores inimigos, os maiores criminosos, traficantes são pessoas como nós. Que têm o mesmo tipo de sonhos e aspirações, de objetivos que nós temos, mas que pela falta de oportunidades e de desigualdades que existem no mundo acabam por ir para esta vida do crime. Isso para mim, tem-me dado uma experiência e uma perspetiva super positiva do mundo.
Mesmo nos cantos mais escuros do nosso mundo ainda conseguimos encontrar pessoas com quem conseguimos estabelecer uma ligação, conseguimos encontrar pessoas que se podem redimir e com quem nos podemos relacionar. Eu acho que isso para mim, é importante. Acho que se todos compreendermos isso, especialmente os Governos e autoridades no mundo, entendemos que a solução não passa por investir dinheiro para pôr estas pessoas nas prisões. Na guerra contra a droga que existe aqui nos EUA investe-se milhões de dólares. Se entendermos as motivações, o que leva estas pessoas a estas vidas, só assim é que vamos conseguir resolver estes mercados negros.