"Governo pode não ter alternativa aos confinamentos alargados" para travar aumento de contágios
22-10-2020 - 21:37
 • André Rodrigues

Esta quinta-feira foram registadas mais de 3.200 novas infeções por Covid-19 em Portugal. Se a tendência de subida não for invertida, diz o médico Gustavo Tato Borges, o Governo poderá ser forçado a impor medidas drásticas “para ajudar as pessoas a tomar as decisões corretas”. A boa notícia é que isso pode ajudar a travar o avanço da gripe sazonal; o vírus já circula, mas a atividade ainda é "esporádica".

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O vice-presidente da Associação dos Médicos de Saúde Pública considera prematuro antecipar o que poderá ser a época da gripe sazonal 2020-2021, após ter sido registada atividade gripal esporádica na semana de 12 a 18 de outubro, e nenhuma atividade de síndrome gripal desde 28 de setembro.

De acordo com o Boletim de Vigilância Epidemiológica da Gripe, divulgado esta quinta-feira pelo Instituto Dr. Ricardo Jorge, a Rede Portuguesa de Laboratórios para o Diagnóstico da Gripe detetou apenas um caso positivo da gripe do tipo B, que se traduz numa taxa de incidência da síndrome gripal (SG) de 12,8 por 100 mil habitantes.

O mesmo relatório indica que “a mortalidade por todas as causas está de acordo com o esperado” e que não foi reportado nenhum caso de gripe pelas 21 unidades de Cuidados Intensivos que enviaram informação.

Essa atividade reportada pelo Instituto Ricardo Jorge é ainda muito inicial e está em linha com o que se verificou nos últimos anos”, assinala Gustavo Tato Borges à Renascença.

Por outro lado, o especialista em Saúde Pública admite que “Portugal poderá uma época da gripe mais tranquila do que noutros anos”, fruto das medidas que estão a ser implementadas para o combate à pandemia, “nomeadamente o distanciamento físico, o uso de máscara e a higiene das mãos, que podem ter um impacto positivo no controlo da gripe”.

O reverso da moeda é o aumento exponencial de casos de Covid-19, que preocupa Tato Borges.

Esta quinta-feira foram registados mais 3.270 rastreios positivos em Portugal e um número recorde de internados. E caso a tendência não mude, Gustavo Tato Borges admite que o Governo poderá ser forçado a impor mais confinamentos e mais alargados no território, para além dos três concelhos do distrito do Porto que, a partir desta sexta-feira, entram em "confinamento parcial".

O vírus da gripe já circula em Portugal, mas com uma atividade "esporádica", tal como é classificada pelo Instituto de Saúde Dr. Ricardo Jorge. Na última semana, de 12 a 18 de outubro, a Rede de Diagnóstico reportou apenas um caso e, entre 28 de setembro e 11 de outubro, não foram reportados quaisquer casos positivos de gripe. A partir destes dados, podemos estar otimistas em relação à época da gripe sazonal 2020-2021?

Essa atividade reportada pelo Instituto Ricardo Jorge é ainda muito inicial e está em linha com o que se verificou nos últimos anos. Por isso, ainda é cedo para determinar como é que a época gripal se vai comportar este ano.

No entanto, devemos ter em atenção que o número de casos de gripe vai começar a aumentar nas próximas semanas, de acordo com a experiência dos últimos anos.

"Ou temos uma mudança radical de comportamento da população em matéria de contactos sociais, a par da capacidade para diagnosticar e isolar mais depressa os casos positivos, ou então será inevitável avançarmos [para confirnamentos alargados]"

Só que as medidas que estão a ser implementadas para o combate à pandemia - nomeadamente o distanciamento físico, o uso de máscara e a higiene das mãos - podem ter um impacto positivo no controlo da gripe e, assim, podemos ter um inverno tranquilo em termos de casos de gripe.

Isso aconteceu precisamante durante a época gripal do Hemisfério Sul.

Correto. Com as medidas de confinamento e distanciamento, verificou-se que, praticamente, não houve casos de gripe no inverno do Hemisfério Sul.

A diferença é que a generalidade dos países do Hemisfério Sul aplicou medidas de confinamento prolongado, à semelhança do que aconteceu em Portugal entre março e maio. Nesta altura, estamos a começar a época mais crítica para as doenças respiratórias e estamos a trabalhar, a ir às escolas, a contactar uns com os outros. Acredita que conseguiremos atingir resultados idênticos na mitigação da gripe, por via da prevenção da Covid-19?

Creio que não teremos um resultado tão espetacular como teve o Hemisfério Sul, exatamente pela diferença que assinalou. Neste momento, apesar de algumas limitações, nós estamos a conviver e a circular nos nossos contactos sociais.

Com as medidas que estão a ser implementadas neste momento, e as futuras que, em princípio, vão ser tomadas pelo Governo - que não terá outra opção - é possível que a nossa época gripal este ano seja muito mais reduzida do que foi nos últimos tempos, permitindo que haja um alívio da procura dos serviços de saúde relativamente a esta patologia.

Mas estamos a falar apenas de uma possibilidade, uma variável que teremos de introduzir na análise desta época gripal. Mas acredita-se que, à partida, poderemos ter um inverno mais tranquilo da pandemia da gripe.

Mas o desafio é controlar a gripe com uma forte transmissão ativa da Covid-19. Como é que isso se faz?

Por isso é que devemos ter cuidado com a pressão sobre os nossos serviços de saúde. A Síndrome Gripal e a Covid-19 têm sintomas muito parecidos, pelo que o grande problema vai ser destrinçar entre quem tem Covid e quem tem gripe e, em função disso, as medidas que terão de ser implementadas.

E que consequências é que isso poderá ter?

As mais imediatas são os possíveis atrasos de diagnóstico, podendo haver alguma continuidade da transmissão do vírus da gripe, exatamente por atraso no diagnóstico do síndrome gripal, em contrapartida com a Covid-19.

Mas, também aqui, há uma diferença: a síndrome gripal é menos suscetível de ser assintomático do que o Covid. É menos falível a sua deteção...

... Correto, quem tem gripe não passa por ela sem sintomas e isso é uma vantagem em relação à transmissão da doença e, como nós estamos mais apreensivos em relação a quem tem tosse, febre ou outra dificuldade respiratória, pode acontecer que a preocupação que seja Covid faça com que a pessoa se retraia, faça menos contactos, fique mais tempo em casa e, portanto, haja menos transmissão da gripe na comunidade.

Há pouco mencionou eventuais futuras medidas que, em princípio, vão ser tomadas pelo Governo, porque não terá opção, no contexto da Covid-19. Que tipo de medidas?

Nós estamos a assistir a um aumento considerável de casos nos últimos dias e semanas e precisamos de arranjar alguma forma de travar esta subida.

"As pessoas continuam a assumir que ir a casa de familiares é um momento normal e sem perigo quando, de facto, é nos eventos familiares que se registam mais contágios"

Se não é possível fazê-lo através da mudança de comportamentos das pessoas, que ou não mudam os seus hábitos, ou não percebem quando se colocam em risco, precisamos de ajudar estas pessoas a tomar as decisões. E isso significa, em alguns momentos, restringir a sua liberdade.

E por isso, creio que, se as coisas não melhorarem nos próximos tempos, é possível que tenhamos alargar algumas medidas.

Por exemplo, a proibição de sair do nosso concelho de residência poderá ser uma realidade que não dure só durante um feriado ou um fim de semana; por outro lado, as pessoas poderão ser obrigadas a regressar a casa, ao tal dever de recolhimento, e isso pode ser alargado de uma forma geral e não apenas aos três concelhos da região Norte que, neste momento, são abrangidos por esta medida (Paços de Ferreira, Lousada e Felgueiras).

Será mesmo inevitável?

Os números indicam-nos que sim. Ou temos uma mudança radical de comportamento da população em matéria de contactos sociais, a par com a capacidade para diagnosticar e isolar mais depressa os casos positivos, ou, então, será inevitável avançarmos para isso.

A uma escala mais alargada?

Pelo menos, as regiões metropolitanas de Porto e Lisboa e outros grandes centros urbanos como Braga, Guimarães, Paços de Ferreira e Matosinhos vão ter que aplicar medidas mais drásticas de restrição da mobilidade social.

Caso contrário, vamos continuar a ter estes números elevados, sem inverter a curva ascendente de novos casos que já está a criar uma pressão insustentável nos cuidados de saúde primários e, também, nos cuidados de saúde hospitalares.

Se não queremos parar o SNS é preciso fazer alguma coisa.

Mas a mobilidade social não pode ser restringida indeterminadamente. Quando fomos forçados ao confinamento, os números estabilizaram em baixo, mas o levantamento das restrições trouxe o cenário a que agora assistimos, de aumento descontrolado de casos. Quem ou o quê que falha?

O que está, verdadeiramente, a falhar é a estratégia de comunicação do Governo e da DGS.

Nós temos tido mensagens contraditórias desde o início da pandemia. Houve eventos que foram autorizados e outros, nas mesmas condições, que não foram. Agora, estamos a testar o regresso dos adeptos aos estádios de futebol, quando os números de novas infeções estão altíssimos.

E não foi explicado às pessoas o quê que significa estar em risco para desenvolver a doença.

"As medidas que estão a ser implementadas para o combate à pandemia podem ter um impacto positivo no controlo da gripe. Podemos vir a ter um inverno tranquilo em termos de casos de gripe"

As pessoas continuam a assumir que ir a casa de familiares é um momento normal e sem perigo quando, de facto, é nos eventos familiares que se registam mais contágios.

É aí que entra, também, aquela ideia de que só acontece aos outros.

Sim, o relaxamento, que acontece, também, nos locais de trabalho.

Temos todas as recomendações para usarmos os equipamentos de proteção, as desinfeções e tudo mas, depois, na pausa, vale tudo. As pessoas tiram as máscaras quando falam umas com as outras, deitando por terra o esforço daquela empresa para minimizar o impacto da pandemia.

O mesmo acontece nas escolas. É um sítio onde se passa muito tempo em contacto entre crianças e jovens mas esquecemo-nos de dizer aos jovens que eles continuam a ter contactos com pessoas que lhes podem transmitir a doença e que, por isso, o local mais seguro é a sua própria residência.

E esta é uma regra válida para toda a comunidade: o único espaço onde as pessoas podem relaxar é em casa quando só lá estão os seus familiares diretos, aqueles que residem naquela casa e não qualquer outra pessoa que, apesar de ser da família, não vive ali.

É essa mentalidade que falta às pessoas e quem tem responsabilidade sobre as empresas, sobre os espaços comerciais, precisa de ter uma capacidade de fiscalizar forte para que possamos continuar a ajudar as pessoas a perceber quais são os comportamentos de risco e que devem ser, a todo o custo, evitados.