Entre os kits e os tiques da família socialista
30-07-2019 - 19:05

Na polémica dos kits antifogo e das golas inflamáveis, das duas uma: ou há incompetência ou nos tomam a todos por patetas e isso talvez já mereça a demissão. Mas a lei para isto não prevê coisa nenhuma.

A lei das incompatibilidades, na sua formulação em vigor, é clara: os titulares de cargos públicos que detenham mais de 10% de uma empresa não podem concorrer com ela a quaisquer concursos públicos. E o seu artigo 8, nº 2, diz que o mesmo se aplica a “cônjuges, ascendentes, descendentes”, etc.

Ou seja, o filho de um secretário de Estado, detendo 20% de uma empresa, não pode concorrer a concursos públicos, sejam eles ou não da área sob tutela do pai. É o caso de Nuno Neves, filho do secretário de Estado da Proteção Civil, José Artur Neves, que tendo uma empresa de construção (ZERCA) não só concorreu a vários concursos públicos como os ganhou.

Parece-me um exagero esta leitura literal. Aliás, a nova lei, que já passou pelo crivo da Presidência da República, ainda que com reservas do Presidente, entrará em vigor na próxima legislatura não prevendo o mesmo impedimento. Mas dizem os juristas contactados pela Renascença que a lei atual é clara e para aplicar.

O Tribunal Constitucional não é sequer para aqui chamado porque ninguém fez nenhuma declaração que possa ser considerada falsa.

Então, quem deve aplicar a lei? A resposta aparentemente é que quem a deve aplicar é o próprio, demitindo-se. Mas como ele já comunicou às redações que não o fará, porque acha que isso não faz sentido nenhum, teremos um problema. Quem o fará demitir-se? Obviamente Costa, propondo a exoneração ao Presidente.

Conhecendo o chefe do Governo, é melhor esperarmos sentados. Quanto a mim, se efetivamente pai e filho agiram separadamente não vem dali mal ao mundo. Já outra coisa seria provar-se existir efetiva intervenção do pai a favor do filho.

Uma demissão automática por causa dos negócios do filho parece-me só tonto. Aliás, em plena época de combate aos fogos até um secretário de Estado da Proteção Civil muito ineficaz faz alguma falta. A dois meses das legislativas, não é fácil encontrar alguém capaz de oferecer o corpo às chamas.

Outra coisa é a abertura do inquérito da Procuradoria-Geral da República ao caso das golaa inflamáveis. Essa só peca, como sempre, por tardia e confessemos que já cá faltava. Como o Departamento Central de Investigação e Ação Penal (DCIAP) tem pouquíssimo que fazer, vale sempre a pena abrir um novo inquérito.

Aqui, sim, há matéria de sobra porque na polémica das golas antifumo (altamente inflamáveis!) até agora apenas se demitiu um técnico adjunto do mesmo secretário de Estado.

Ou seja, como alguém tinha de se demitir, a escolha recaiu, como sempre, sobre o menor na escala dos eventuais implicados: o líder do PS Arouca que era, simultaneamente, o especialista do gabinete do secretário de Estado da Proteção Civil e o homem que sugeriu a essa mesma Proteção Civil quais as empresas a consultar, incluindo a que foi escolhida para ajuste direto pós-consulta prévia. Percebido?

A empresa (Foxtrot), criada uns meses antes dessa encomenda, dedicada ao "turismo de aventura" e à restauração, não sendo da especialidade, foi uma das sugeridas e tinha a vantagem de o dono ser o marido da presidente da Junta de Freguesia de Longos (candidata apoiada pelo PS). Entre a ideia do kit antifogos e a concretização do mesmo não foi preciso sair do grande circuito da grande família socialista. Não costuma ser crime, mas desta vez deu nas vistas.

Mas o mais espantoso é que o próprio secretário de Estado, que numa primeira reação disse não ter nada a ver nem com as empresas nem com a sua escolha, nem sequer com as encomendas, nem com o kit, porque tudo passara pela Proteção Civil, foi rápido a aceitar a demissão do ajudante, logo no dia a seguir. E foi lesto a instaurar um grande inquérito para apurar o sucedido com a adjudicação do produto que, segundo o "Jornal de Notícias", se fizera “acima do preço de mercado”. Azar dos azares, o assessor auto-acusou-se.

Contudo, há um ano, no programa da Júlia Pinheiro da SIC, ao fazer a apresentação das vantagens do dito kit, o próprio secretário de Estado José Artur Neves tomou contacto em direto com todo o seu conteúdo, admitindo com toda a naturalidade que o “gorro de proteção antifumo” não era produzido em nenhuma “matéria especial”, como julgava a apresentadora: “Não, não”, disse, para que não restassem dúvidas. E acrescentou ainda, ele ou alguém ao seu lado, “ e deve ser humedecido”...

Ainda assim, não disse que o “gorro antifumo” estava ali a título meramente exemplificativo de um qualquer lenço de algodão ou de outro material resistente ao fogo (um mero pano da loiça, por exemplo), como nos tentaram convencer na sexta-feira em que rebentou a polémica, que foi dito tim-tim por tim-tim, em todas as apresentações e a cada um dos utilizadores.

Candidamente, à pergunta de Júlia Pinheiro sobre se a gola era anti-inflamável, o demonstrador falou só da falta de água. Fica, portanto, clarinho que o próprio governante (e não o senhor Joaquim de baixa literacia a quem a gola iria ser entregue…) achava que o material fornecido era mesmo inflamável, mas para ser usado. Bastava dar-lhe um banhinho. O povo diz, e bem, que "a verdade vem sempre à tona de água".

É por isso que o problema não está sequer no preço pago (segundo o JN) muito acima do preço de mercado. Não está apenas na falta de transparência da adjudicação (por consulta direta a empresas cuja especialidade estava muito longe de ser a devida, e aparentemente recém-criada para o efeito). Também não se restringe à relação obviamente de proximidade ao partido do Governo, o especialista presidente da concelhia do PS que indica o marido da presidente da junta eleita com o apoio desse mesmo partido.

Está, sobretudo, em que ninguém, em todo o processo, se questionou sobre aquela coisa óbvia sobre a qual a apresentadora se indagou mal viu a gola: num kit antifogo, isto é de uma matéria especial, certo? Errado. E constatado o erro, resolvido ali no estúdio com a simples passagem do pano por água. Mais ninguém se perguntou sobre o caso.

À saída da SIC, ao secretário de Estado, acompanhado por alguém da Proteção Civil, não lhe ocorreu perguntar: "Então aquela gola não devia ser de outro material qualquer?" Ou sugerir: "Talvez seja melhor tirar o gorro do saco não vá alguém usar aquilo e pôr-se a combater o incêndio no quintal com aquilo na cabeça…" E a emenda acaba pior que o soneto.

Não. Há um ano, Júlia Pinheiro perguntou o óbvio e a resposta já podia ter sido: não, não e não. Essa gola não é antifogo, nem sequer antifumo, e é bom não confundir! “Isso está aí só para ninguém se esquecer de levar um pano a tapar a cara, mas outro pano, de algodão e, claro, devidamente humedecido para fazer efeito.”

Se o secretário de Estado, há um ano, não o explicou assim, querem agora convencer-nos de que os agentes que foram mostrar à aldeia da D. Emília como funcionava o kit se esqueceram de lhe dizer que o pano era para guardar como recordação dos agentes da Proteção Civil?

Isto, sim, prova que das duas uma: ou há incompetência ou nos tomam a todos por patetas e isso talvez já mereça a demissão. Mas a lei para isto não prevê coisa nenhuma. E é pena.