É paquistanês o homem que abre a porta à Renascença. Shahbaz (nome fictício, porque não quer ser identificado) mostra o primeiro de sete quartos. Há três beliches e seis colchões, com cobertores, mochilas e roupa — tudo amontoado. Há restos de comida e garrafas de refrigerante, quase vazias, tanto nas camas como no chão. Por baixo dos beliches estão alinhados chinelos e sapatilhas.
São três da tarde e a esta hora só Hansa está no quarto, a revisitar os seus documentos. Vive ali há dois meses e ainda não tem emprego. “Sou do Sri Lanka. Estou a tratar de alguns documentos. Trabalhava em Lisboa [na construção] mas mudei para o Porto e estou à procura de um novo trabalho.”
Na visita guiada pela casa, Shahbaz explica que tem operado Alojamentos Locais em todo o mundo. Até que lhe falaram de Portugal. "Sou um homem de negócios e tenho gerido hostels em todo o mundo, sobretudo no Dubai. Descobri que havia uma grande oportunidade de negócio nesta área em Portugal, e decidi vir para o Porto."
Shahbaz gere o hostel visitado pela Renascença e mais dois Alojamentos Locais, todos na zona de Arca d'Água. Garante que está tudo legal: tem licença para operar, existe uma lotação máxima, mas diz que nunca houve fiscalização. “As autoridades sabem que temos espaço no hostel para 25 pessoas. Assinámos o contrato comercial e depois ninguém cá veio verificar e ver as condições”.
Este paquistanês cobra 200 euros ao mês por colchão. Quando a casa está cheia, há 25 colchões ocupados. Ou seja, são cinco mil euros, se todos pagarem. “Temos pessoas do Brasil, da India, Sri Lanka, Paquistão, Argélia, Marrocos, Tunísia... Enfim, chegam sobretudo destes países”.
E são acordes árabes que se ouvem ao abrir a porta de outro quarto. Mais três beliches e seis colchões. Mais pratos com restos de comida e garrafas de plástico vazias, numa mesa improvisada. E um tacho no chão. Dois imigrantes estão a almoçar, outro está deitado, a ouvir musica. Chama-se Brahim, vem de Marrocos e também está à procura de trabalho na área da construção. "Cheguei há três meses. Não gosto de viver aqui. Não é bom. Veja... isto não é viver. E pagamos 200 euros por uma cama”.
A cama é todo o espaço de que dispõem. Não há armários para guardar a roupa, não há mesas nem cadeiras.
Shahbaz garante que ainda há uns meses "as condições eram muito boas e era tudo novo", mas diz que alguns hospedes deixaram má memória e destruíram as mobílias. "Passados dois ou três meses as coisas já parecem velhas", queixa-se.
O paquistanês conta que metade dos migrantes que lhe batem à porta não arranjam trabalho — e, quando arranjam, são trabalhos precários e mal pagos. "Diria que, se tivermos cá 25 pessoas, metade não encontra trabalho. E a outra metade tem o salário mínimo."
Do mesmo dá conta o inquilino português que a Renascença encontra noutro quarto. Como os outros, Pedro paga 200 euros por um colchão. É o tradutor de serviço para os que não falam português e vai vendo o entra e sai de vários migrantes — e as desilusões laborais constantes com os patrões. "Alguns pagam, outros não lhes pagam. Outros fogem. Dão-lhes para aí 100 euros durante um mês e mais nada. Porque não têm contratos assinados, principalmente na construção."
Uma realidade testemunhada por quem lida mais de perto com estas populações, no terreno. Mariana Rozeira é diretora do Centro São Cirilo — uma comunidade jesuíta de inserção social de imigrantes e refugiados no Porto — e fala em números crescentes de migrantes "em situação de sem-abrigo" ou a viver "em condições muito precárias".
"Na cidade do Porto não há nenhuma resposta social de alojamento direcionada para migrantes, com exceção do Centro São Cirilo", assegura. Mas o centro só tem capacidade para acolher um máximo de 18 pessoas de cada vez.
"Uma pessoa que trabalha um mês e no fim não lhe pagam, esse contrato não é legal. A ACT e a AIMA não têm capacidade para andar a fazer controlo dessa situação", afirma Mariana Rozeira.
A Renascença pediu esclarecimentos à Autoridade para as Condições do Trabalho e à AIMA. Uma semana depois ainda não obteve resposta.
Já o inspector-geral da ASAE, Luis Lourenço, reconhece que seria "humanamente impossível" fiscalizar todos os alojamentos locais do Porto. "Não conseguimos chegar a todos os operadores económicos", lamenta. No ano passado, a ASAE visitou "cerca de 70 operadores económicos sobre esta matéria", no concelho do Porto.
A Renascença questionou também a Câmara Municipal do Porto sobre o acompanhamento que é feito destes espaços. De acordo com um "powerpoint" remetido pela autarquia, os seus fiscais fizeram, no último ano, perto de 2500 vistorias.
É só a ponta do iceberg: De acordo com site do Registo Nacional de Turismo, em todo o concelho do Porto estão registados mais de 10 mil Alojamentos Locais (onde se inserem os hostels).
"Já fiz muitas visitas domiciliárias a hostels onde há três beliches duplos por quarto e 500 euros por cada colchão. É desumano", sublinha a diretora do centro São Cirilo.
Desumano e com episódios recentes de violência, como aquele que se registou no Bonfim, quando um grupo de indivíduos invadiu uma residência de imigrantes e os agrediu. Duas das vítimas tiveram de receber tratamento hospitalar. Mariana Rozeira não absorve a tese de que os ataques se explicam pela sensação de insegurança nalgumas zonas do Porto. "Os dados estatísticos que tenho é que a violência diminuiu, as queixas relativamente a migrantes são muito pontuais", sustenta. O que tem subido, diz a responsável, é o discurso xenófobo e racista.
O mesmo indicam os mais recentes dados do Relatório Anual de Segurança Interna (RASI), segundo o qual Portugal registou em 2023 um agravamento da ameaça ligada aos extremismos políticos, sobretudo de extrema-direita, e os crimes de ódio continuam a crescer. O relatório, já entregue no Parlamento, revela também um aumento do tráfico de vítimas para exploração laboral, refletindo-se num aumento de 150% dos crimes de tráfico de pessoas e de 300% no auxílio à imigração ilegal. De acordo com os mesmos dados, a criminalidade a grave subiu 5,6%.
"Eu aceito que uma pessoa que vive na cidade do Porto veja o número crescente de migrantes, mês após mês, e, de facto, isto é uma realidade, sem dúvida nenhuma", admite a responsável, que diz compreender que "isso possa dar uma perceção de insegurança por haver mais pessoas em situação de sem-abrigo". Mas acrescenta: "Se isso depois se traduz em crimes concretos [praticados por migrantes], acho que não."
A Renascença solicitou à Direção Nacional da PSP dados atualizados sobre a criminalidade praticada por imigrantes. Queríamos saber, por exemplo, se a perceção de insegurança descrita por alguns portuenses tem tradução em dados concretos — ou se se trata de mera sensação gerada pela desconfiança no desconhecido. A PSP respondeu, por e-mail, que de momento "não dispõe dos dados" solicitados, "não sendo oportuno prestar quaisquer outras declarações tendo em conta os recentes eventos, que se encontram em investigação por outro órgão de polícia criminal."
Na leitura de Shahbaz, o paquistanês que gere o hostel visitado pela Renascença, a atual situação resulta de uma falsa sensação de insegurança, perante o desconhecido, e pede que os ataques contra imigrantes sejam condenados. "Esperamos que não volte a acontecer e que as autoridades tomem as ações legais necessárias contra os responsáveis pelos incidentes", afirma. O empresário argumenta que é importante realçar "a importância dos imigrantes para a economia dos países", dando o exemplo de casos como "os Estados Unidos e o Reino Unido" para defender que "todos crescem quando têm imigrantes".
Regressemos, então, às histórias de vida na casa de partida. Kamel é marroquino e multiplica-se em vários empregos. "Trabalho com pintura, jardinagem, estafetas, com Glovo", explica. Paga impostos e tem a situação regularizada, aguardando o avançar do processo para obter autorização de residência.
Kamel fez uma longa viagem, aos ziguezagues, para entrar na União Europeia.
"Eu paguei a pessoas para me transportarem para outro país, para que eu pudesse entrar nos países da União Europeia." Foram cinco mil euros em 2018.
"Passei da Turquia para Grécia, Albânia e todos os países da Europa de Leste, até chegar a França. De França fui para Espanha e daí até Portugal."
O dono do hostel corrobora que "existe uma grande máfia a envolver as pessoas que lhes arranjam falsos vistos e falsas ofertas de emprego" e que é assim que só assim muitos migrantes "conseguem entrar na Europa". Mas recusa que ele próprio seja um elo nessa cadeia de exploração. "Não fazemos tráfico humano, de todo. Não temos qualquer contacto com as pessoas para virem para aqui", assegura, adiantando que as pessoas encontram os hostels que gere através de anúncios em plataformas como "o Idealista e o Facebook Marketplace".
Foi assim que Kamel encontrou uma cama no Porto — onde, hoje, não dorme tranquilamente. Este marroquino sente-se inseguro, num dos países mais seguros do mundo. "Neste momento, desde que houve estes problemas de imigrantes e gente portuguesa e outras, começámos a não ter segurança", assegura.
Na leitura de Mariana Rozeira, o problema agravou-se "desde que houve alguma movimentação de alguns quadrantes políticos contra a migração".
"Sente-se que o discurso de ódio tem crescido e as manifestações têm crescido também por todo o país", nota.
"Passámos de um país que é conhecido como bom acolhedor, de braços abertos, para um país que tem discriminação dentro dele."
O problema, insiste Mariana, não é a imigração. O problema é a falta de respostas sociais e de um apoio à integração em Portugal. A diretora do Centro São Cirilo sublinha que Portugal até tem "uma lei migratória muito boa, que permite às pessoas regularizarem-se no espaço Schengen e viverem em Portugal com mais segurança do que nos seus países de origem", mas diz que não foram criadas as condições para a mesma ser aplicada devidamente. "Tínhamos que ter criado no país um apoio social e de integração destas pessoas mais estruturado. Não temos", denuncia.
[Artigo atualizado às 11h50 de 29 de maio com os mais recentes dados do RASI]