Os donos da meritocracia
21-03-2018 - 06:56

Passos Coelho já não é, politicamente, nada; mas continua a ser a obsessão dos muitos que, na política, se sentem ensombrados ou ameaçados pela sua vitória eleitoral em 2015.

Há um mês, quando Pedro Passos Coelho se retirou da cena política, fiz aqui um pró-memória das circunstâncias e realizações do seu governo. Não era minha intenção voltar a falar dele tão proximamente. Mas não resisto a fazê-lo perante a vozearia mais recente. O pretexto foi o anúncio de que Passos iria refazer a vida regressando à docência universitária. Os zelotes de serviço levantaram logo uma barragem viral de críticas: que o homem não pode ser professor, que não tem nada para ensinar (ou ainda pior, que iria ensinar doutrina “neoliberal”), que é um escândalo a equiparação a catedrático, que houve nepotismo no convite do ISCSP, etc.

Para a esquerda, Passos deveria ir… não se sabe bem para onde! Se fosse para um cargo internacional, era indecoroso, depois dos males infligidos à pátria; se fosse para a vida empresarial, haveria compadrio; se fosse para a consultoria, era para ser lobista, como Paulo Portas; se fosse para um banco, seria para encher os bolsos, como Durão Barroso. Se, por hipótese absurda, ele decidisse montar uma banca de venda de castanhas assadas no Rossio, o PCP logo o denunciaria por concorrência à classe operária, o BE por estar a ofender a “cultura identitária” dos(as) verdadeiros(as) vendedores(as) de castanhas, e o PS mandaria a ASAE fiscalizar-lhe o negócio! E por aí fora…

O problema não é Passos ir para o ISCSP, ser equiparado a catedrático, ou ter ou não currículo. O ISCSP faz muito bem em recrutá-lo. A ser catedrático, será como convidado (como outros ex-políticos, de diferentes partidos, o foram ou são), e não com um ordenado de exclusividade, e não pertencerá nunca à carreira docente. Experiência prática, ao mais alto nível da vida pública e política, não lhe falta, e as universidades também recrutam destes especialistas. Quanto à precariedade contratual que abunda nas universidades, ela é, sem dúvida, assunto importante; mas deve ser tratado noutra sede. A esquerda sabe isto. E aos mais esquecidos convém lembrar que Passos já deu aulas no ensino superior (no ISCE, durante cinco anos), e que, em 1999, não pediu a subvenção vitalícia a que tinha direito por lei, quando encerrou a sua carreira de deputado, não tendo hoje esse rendimento. Da sua biografia só se diz o que convém.

A contratação universitária é apenas um pretexto para continuar a denegri-lo. Passos Coelho já não é, politicamente, nada; mas continua a ser a obsessão dos muitos que, na política, se sentem ensombrados ou ameaçados pela sua vitória eleitoral em 2015. Para além disso, parece que em Portugal a meritocracia só pode estar à esquerda. Há dias, a propósito deste caso, alguém clamava que só a esquerda providenciara figuras com relevância internacional (Soares e Guterres), obliterando que Freitas do Amaral foi Presidente da Assembleia Geral da ONU e Durão Barroso Presidente da Comissão Europeia. E vale a pena lembrar outro exemplo, conhecido, deste enviesamento moralista – e elitista, com o que há de irónico em o elitismo preconceituoso estar à esquerda. José Saramago, militante do PCP, foi de serralheiro mecânico a Prémio Nobel da Literatura: ascensão notabilíssima (e é verdade). Cavaco Silva, militante e líder do PSD, foi de Boliqueime a Primeiro-Ministro e Presidente da República: ascensão ínvia ou imerecida, que nunca apagou nele o provincianismo e a incultura (o que não é verdade). Pretensa dona da meritocracia, a esquerda é muito seletiva e maniqueísta, e pouco igualitária, afinal, na avaliação alheia. Onde é que já se viu um professor universitário ser liberal e viver em Massamá? Não: para receber a aprovação dos bem-pensantes, Passos Coelho precisaria, no mínimo, de confessar em público um “mea culpa” e talvez mudar-se para uma luxuosa casa na Rua Castilho…