"Uma devastação enorme, igual ou pior à de Pedrógão Grande"
17-10-2017 - 06:17
 • Elsa Araújo Rodrigues , Joana Bourgard (fotos)

É o autarca de Vouzela (Viseu) que o diz. No espaço de 24 horas, ardeu 90% do concelho de Vouzela. Rui Ladeira pede ao Governo um plano de apoio semelhante ao de Pedrógão.

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João Lopes e a mulher Donzília estavam em Ventosa, onde vivem, quando receberam um telefonema. Estava tudo a arder e era preciso sair. Pouco passava da meia-noite quando saíram de casa, com os dois filhos pequenos, para a junta de freguesia daquela aldeia no concelho de Vouzela, distrito de Viseu. A vizinhança andava entre a junta e a igreja, a tentar perceber o que se passava.

“As estradas estavam cortadas ao trânsito e havia lume por todo o lado. Isto parecia um inferno”, descreve João. Só mais de duas horas depois, já perto das três da manhã, saíram de Ventosa para Sacorelhe, onde vivem os pais de Donzília. Um trajecto de cerca de cinco quilómetros que João fez com a mulher e os dois filhos. O fogo ainda andava por ali, mas era preciso assegurar o estado dos sogros e dos bens de uma vida. João tem ali uma serração e queria ver de perto o que fogo comera.

O edifício cinzento continua de pé e, à primeira vista, parece intacto. A contrastar com as casas de pedra à volta, negras do fogo. Ficou apenas parcialmente afectado, “do lado onde fecha a oficina, onde estavam umas tábuas a secar”.

Os bombeiros não conseguiram chegar a Sacorelhe, mas João não aponta o dedo à falta de meios. Pelo contrário, põe água na fervura “porque não tinham mãos a medir e não sabiam onde acudir”. Sem bombeiros, a população fez o que podia. “Tentaram salvar o principal, especialmente as vidas humanas e depois ardeu o que tinha que arder”, desabafa João.

Com parte da serração afectada, João e Donzília ainda não estão prontos para avaliar o futuro. É muito cedo para estar a fazer contas, dizem. Para já, há que pensar no dia de amanhã e a palavra de ordem é remediar. “Pelo mínimo”, para começar a trabalhar o quanto antes.

Não havia qualquer hipótese de fazer combate às chamas”

“Sou bombeiro há 36 anos e não me recordo de uma situação destas, não há ideia.” É assim que Joaquim Tavares, comandante dos Bombeiros Voluntários de Vouzela, descreve o avanço do fogo que assola o concelho há mais de 30 horas. Visivelmente cansado, explica a propagação das chamas e enumera os “suspeitos do costume”: a seca, os combustíveis também eles extremamente secos e a humidade relativa do ar muito baixa.

“As condições ideais”, resume Joaquim. Apesar de ter ajudado a evacuar mais de 500 pessoas, reconhece que a velocidade a que o fogo avançava pelo território surpreendeu a população. E tornou o combate às chamas “impossível”. O trabalho foi uma correria atrás da protecção das casas e das populações.

“O nosso objectivo foi alertar as pessoas para saírem, para se porem em segurança porque era muito complicado, não havia qualquer hipótese de fazer combate e fumo era tanto que os meios aéreos não tinham tecto para poderem actuar”, explica Joaquim Tavares.

A corporação tem cerca de 60 homens para um território de 190 quilómetros quadrados de superfície. Os homens são poucos e estão exaustos. Um esforço que a população agradece e tenta retribuir como pode. “As pessoas sensibilizaram-se e têm trazido muitas coisas por auto-recriação”, reconhece o comandante. No quartel não faltam água, fruta, barritas de cereais, bolachas e outra comida para os bombeiros.

Um dia depois da ignição, o concelho continua a arder em cinco frentes, embora menos intensas. Certezas sobre a causa das ignições, “que começaram em dois pontos na zona de Urgueira, no limite do concelho de Vouzela, já perto de Águeda, ainda não há”. Mas Joaquim Tavares avança com uma explicação: “o fogo começou com dois focos distintos, o que me leva a crer que possa ter sido intencional”.

"Devastação"

O presidente da Câmara de Vouzela também não tem provas concretas, mas parece igualmente ter poucas dúvidas sobre o início do fogo. “Não tenho dúvida nenhuma que é mão criminosa e há uma coisa que os nossos agentes da autoridade, os nossos decisores, legisladores têm que assumir: se não houver penas exemplares para quem for apanhado a atear incêndios", diz Rui Ladeira.

O presidente da câmara de Vouzela admite até que tenha havido “uma acção concertada, dadas as outras ignições que houve pela região”. Origem à parte, o que está bem à vista são as consequências do fogo. E Rui Ladeira não esconde a revolta com a destruição no concelho: “tivemos menos vítimas que Pedrogão Grande, mas a devastação é desse nível, ou bem mais grave”.

Centenas de dependências agrícolas destruídas, cerca de uma dezena de pequenas empresas e centenas de postos de trabalho colocados em causa. “Dezenas de aviários destruídos, somos uma zona muito avícola e centenas, milhares de animais, aves”. E também outros animais de pastoreio. Para além da “meia dúzia de carros que arderam, dezenas de alfaias agrícolas”. O presidente da câmara enumera a longa lista de danos materiais e não hesita a fazer comparações.

“Um devastação enorme, para a qual não há palavras, mas que eu digo que é ao nível ou pior do que Pedrogão Grande”, afirma Rui Ladeira. A totalidade dos prejuízos continua por apurar, mas o autarca defende que é preciso o quanto antes. “Temos que pensar no dia seguinte, apesar de ainda estarmos metidos numa aflição”. E sem perder tempo, já fez seguir o pedido para o Governo.

“Há necessidade de rapidamente a tutela fazer uma intervenção de fundo como fez em Pedrogão”, diz Rui Ladeira. Porque é “preciso apoiar os empresários, as famílias, as autarquias, as freguesias”. É preciso encontrar solução até porque “o país já demonstrou que quando se organiza e trabalha em conjunto, há soluções”.

O presidente da câmara pede apoio e solidariedade para um concelho que nas horas mais difíceis esteve praticamente sozinho, “só com os vouzelenses a ajudar”.

“Vouzela é atravessada por quatro nós da A25 e numa primeira passagem, não encontrei duas ou três árvores que tivessem sobrevivido. Está tudo derretido”, resume o autarca.