Pandemia levou empregada doméstica ao desemprego. "Pela primeira vez, soube o que era a fome"
08-05-2020 - 11:00
 • Ana Rodrigues

Liliana Sousa e o marido tiveram de pedir comida, para alimentar os dois filhos, após ter perdido o emprego, em março: “Não há luxos, mas comida nunca faltou às crianças. Até agora."

Sem trabalho nem ordenados desde o início de março, devido à pandemia da Covid-19, a família de Liliana Sousa, empregada doméstica de Almada, vive, pela primeira vez, em situação de pobreza.

Liliana vive com três pessoas, no Monte da Caparica: os dois filhos, de 8 e 12 anos, e o marido. O confinamento inesperado veio acentuar as fragilidades de quem já estava habituada a esticar o dinheiro para chegar até ao fim do mês e Liliana confessa que, desta vez, teve "medo".

"Muito medo. Não é fácil ter de pedir para comer. Quem teve de alimentar quatro pessoas com meio frango. Não é fácil. E o pior é quando até esse meio frango acaba”, conta, em entrevista à Renascença.

O trabalho como empregada de limpeza em casas particulares sempre chegou para pagar as contas. Porém, devido à pandemia, as clientes a quem foi “fiel durante tantos anos fecharam as portas”.

“Tiveram medo. Nem um telefonema me fizeram a perguntar se os meus filhos precisavam de alguma coisa”, revela Liliana.

A verdade é que o receio de contágio ou a existência de casos positivos do novo coronavírus levou muitas famílias a dispensar os empregados domésticos, levando o Ministério do Trabalho a anunciar que esta decisão não pode ser acompanhada do corte da remuneração auferida por estes trabalhadores.

Liliana até compreende “que as patroas tenham medo”, mas, sem direito a qualquer subsídio, só quer que “este pesadelo termine depressa". Até porque, depois de ter sido dona de um café, foi limpar casas. Nunca “fugiu ao trabalho” e tudo o que tem comprou a custo: “Não há luxos, mas comida nunca faltou às crianças. Até agora."

O "agora" a que Liliana se refere foi o dia 16 de março, quando, logo pela manhã, teve de “espalhar o resto do leite do pacote pelas taças dos miúdos”. “Foi muito mau. Foi o deitar a doer a barriga e levantar a doer a barriga. E saber que não há nada em casa para comer. Não é fácil”, assume.

Foi nas redes sociais que Liliana encontrou ajuda


Já em desespero, Liliana resolveu pedir ajuda. Estendeu a mão a várias instituições, como foi o caso da Camara Municipal de Almada e do Banco Alimentar contra a Fome, mas foi nas redes sociais que encontrou "a ajuda inesperada e emocionante" de gente sem rosto.

“A comida começou a chegar. As pessoas mandaram cabazes e até computadores para os meus filhos poderem fazer os trabalhos de casa. Foi incrível. Não estava nada à espera de tanta solidariedade de pessoas que não me conhecem. Foi a nossa salvação”, diz.

Chegaram paletes de leite, fruta e legumes, arroz, farinha, carne e peixe. Tudo o que esta família precisava. O resto das contas, contudo, “está tudo por pagar”.

“Desde fevereiro que não pago nada. Quando vierem cortar, vieram. O que é que hei-de fazer?", questiona.

As contas da água e da luz estão em atraso. Diz Liliana que também para a bilha do gás “não há dinheiro” e recorda as duas semanas em que teve de aquecer água no fogão para dar banho aos filhos.

“Foi horrível. Nunca pensei passar por isto. Uma amiga teve pena e comprou uma bilha de gás, mas quando acabar, não sei o que vamos fazer”, reconhece.

Liliana não esconde as dificuldades das crianças


Liliana sabe que não é a única a passar por isto. No bairro onde mora, conhece outras famílias a viver situações parecidas com a sua. Tenta ajudar quando pode, mas confessa que, agora, não pode fazer muito. A prioridade “é não deixar que a fome volte a entrar em casa”.

Os mais pequenos sabem o que se passa: “Não lhes escondo nada. Eles comem o que há no armário. Se há, há. Quando tenho, compro tudo e até uns miminhos para os miúdos, mas quando não há, como é agora, eles já sabem que não podem pedir."

Não pedem e sabem que, muitas vezes, têm de esperar. O filho mais velho diz que não gosta de estar fechado em casa e de ver os pais tristes “por causa da falta de comida”. Quando encontra a mãe mais calada, conta-lhe “coisas alegres para ela se rir”, mas sabe que, às vezes, quando quer comer alguma coisa, “tem de esperar”.

“Ou é o meu irmão, ou é o meu pai. Ou é a minha mãe. E eu tenho de esperar que venha mais comida. Tenho de esperar”, conclui.

No último estudo feito pelo Observatório de Economia e Gestão de Fraude, em 2015, verificou-se que a economia paralela valia 27,29% do PIB oficial, o correspondente a 49 mil milhões de euros -- um valor capaz de suportar o orçamento do Ministério da Saúde durante cinco anos. Este ano, o mesmo Observatório prevê que a dimensão será ainda maior.

[notícia atualizada às 11h04]