Filipe quer casa, mas ninguém lha constrói
28-06-2021 - 08:00
 • Fábio Monteiro

Empresas não conseguem dar resposta à procura devido à falta de mão de obra. Após a crise de 2008, muitos trabalhadores saíram de Portugal. E agora não vão voltar. Sem imigração, não será possível fazer a “substituição geracional” que não está a acontecer, defende Ricardo Pedrosa Gomes, presidente da Associação de Empresas de Construção e Obras Públicas e Serviços.

Filipe Castro quer casa, mas ninguém lha constrói. O enfermeiro de 38 anos mora, juntamente com a esposa e filho, num apartamento alugado nos arredores de Lisboa, e anda há dois anos a tentar encontrar um empreiteiro que lhe reabilite uma casa de pedra, numa aldeia do concelho de Alenquer, para que se possa mudar para lá.

Em outubro de 2019, Filipe submeteu o projeto na câmara. E logo teve sinais da senda que estava para começar. “Procuramos uma série de empreiteiros e na altura acabamos por obter uma semi-resposta de alguém que era nosso conhecido, porque todos os outros disseram: 'não temos tempo, não temos tempo'”, conta. Depois, intrometeu-se a pandemia.

Devido a atrasos provocados pelo novo coronavírus, o projeto da nova casa só recebeu luz verde por parte do município em abril deste ano. Filipe contactou então seis empreiteiros (só um foi visitar a obra e já este mês). Um disse: “Não vamos dar orçamento tão rapidamente. E mesmo dando orçamento não sabemos quando é que vamos conseguir.” Outro pediu para ser contactado em outubro. Todos avisaram: “Antes do ano que vem, 2022, sem mês concreto, nunca iriam conseguir iniciar a obra”. ´

Segundo Filipe, uma das coisas que os empreiteiros mais se queixam “é da falta de pessoal”. “Hoje em dia não é fácil ter pedreiros. Eu não tinha noção disto. A verdade é que há desemprego e etc., mas um pedreiro, embora não seja propriamente uma formação académica requer experiência e tempo de formação do aprender fazer. E eu já percebi que há essa dificuldade”, explica.

Muitos portugueses emigraram “durante o tempo da crise e naquela fase em que muitas empresas faliram”. “Uma das dificuldades que eles referem é: ‘não temos pessoal que chegue. Mesmo que consigamos ter material, nós não temos pessoal, portanto, esqueça’”, diz Filipe.

Até quando, então, terá que esperar?

Foram e não voltaram

Em Portugal, existe uma narrativa que pulula de boca em boca, que por vezes aparece em novelas e que por isso sobrevive no imaginário popular, que dita “não se pode confiar em empreiteiros”, que “é preciso andar sempre em cima deles” para que prazos e orçamentos sejam cumpridos. Este tipo de afirmações, numa possível interpretação benigna, são expressões de frustração, porventura devido a más experiências. Afinal, existirá bem pelo qual alguém seja mais zeloso do que o cuidado pela a própria casa?

O problema destas frases feitas é que, na larga maioria dos casos, encobrem estereótipos de classe. O setor da construção raramente tem quem fale por ele na praça pública, o que leva a um desconhecimento das suas dinâmicas, e não possui pedigree intelectual. Não é à toa que ainda há quem use como insulto: “Vai trabalhar para as obras.” Ou que crianças sejam apoquentadas com a premissa: “Estuda, se não vais trabalhar para as obras.”

Quando o empreiteiro disse a Filipe Castro que havia muita falta de mão de obra e que, devido à crise, muitos trabalhadores haviam emigrado, não o estava a enganar. Aliás, estava a traçar um retrato bastante sucinto e preciso do setor da construção, neste momento, em Portugal.

“Não tenho dúvidas nenhumas que para pequenas empreitadas é muito difícil encontrar hoje empresas e pessoas. E nas empresas de maior dimensão os preços estão de facto a subir, porque as empresas podem escolher”, atesta Ricardo Pedrosa Gomes, presidente da Associação de Empresas de Construção e Obras Públicas e Serviços (AECOPS), à Renascença.

Com a “oferta a dominar a procura”, “se uma pessoa quer hoje fazer uma moradia a pensar ela custa o mesmo que ela imaginou há um ano, não vai encontrar uma empresa, porque se calhar essa empresa conseguiu encontrar hoje um prédio para fazer a pagarem-lhe preços que são muito mais interessantes, do que se concentrar na moradia”, avisa ainda.

Segundo o representante da AECOPS, “curiosamente, o problema [da falta de mão de obra] foi atenuado pela pandemia”, com o abrandamento relativo do crescimento da construção.

E a realidade que o país atravessa hoje está profundamente relacionada com a crise financeira de 2008, em que o mercado imobiliário foi um dos mais afetados. Na época, muitas empresas de construção fecharam portas, “desapareceram”; outras “passaram a ter uma componente maioritária, quase exclusiva, de atividade internacional”.

A retoma da construção, nos últimos cinco anos, foi alavancada em muito “investimento estrangeiro”, “já que o investimento público esteve sempre muito controlado e propositadamente retardado”. Em 2018 e 2019, “começou-se logo a sentir uma pressão grande de falta de mão de obra”. E as empresas portuguesas já não tinham capacidade para dar resposta.

“Por um lado, as empresas ainda continuavam a ter bastante atividade internacional. Por outro, os trabalhadores que, por mote próprio, se tinham virado para os mercados europeus, e de facto tinham garantia de trabalho aí, não querem voltar, pois o diferencial salarial é muito significativo entre os países do norte da europa e Portugal”, explica.

Chegados a 2021, o problema da falta de mão de obra ressurgiu ainda com maiores dimensões. Tal como Portugal, muitos países têm nos seus Programas de Recuperação e Resiliência (PRR), “uma componente de atividade do setor da construção”. Portanto emigrantes portugueses que estejam lá a trabalhar vão continuar por lá. “Os salários deles vão aumentar lá. E o gap para Portugal tornará ainda mais difícil conseguir que eles retornem aqui. Portanto, o tal problema estrutural veio para ficar”, diz.

Quem consegue recrutar?

Fernando Almeida, gerente do grupo de construção Fenomenal, que opera maioritariamente na Bélgica, saiu de Portugal há nove anos. E como muitos empresários emigrados, não pretende voltar.

“Apesar de trabalhar como empresário em Portugal desde 1990, estou na Bélgica há nove anos. Porquê? Foi na altura de 2009, 2010, 2011, houve escassez de trabalho, com a crise. Fui para a Bélgica e só tenho pena de não ido mais cedo meia dúzia de anos. Tenho 59 anos e enquanto a Bélgica estiver assim, dificilmente venho trabalhar a 100% para Portugal”, diz à Renascença.

De acordo com o empresário, na Bélgica “consegue-se trabalhar melhor, não há tanta burocracia em papelada”, mas o problema da falta de mão de obra é o mesmo. “Não é um problema de salários. Neste momento, 95% da minha atividade é na Bélgica. Procuro pessoas também cá [na Bélgica], pessoas que estejam inteiradas na sua área de trabalho, na categoria profissional, e não é pelo salário. Posso querer um trabalhador a ter um bom salário e mesmo assim não o consigo”, nota.

Questionado se, por exemplo, conseguiria acomodar 100 novos profissionais de um momento para o outro – caso estes estivessem disponíveis no mercado -, nem hesita. “No espaço de um mês meto-os todos a trabalhar na Bélgica. Estou muito bem estabelecido na Bélgica. Tenho uma carteira de clientes belgas muito bons. Não consigo mais trabalho mesmo por falta de mão de obra”, afirma.

Márcia Soares, da Furor Lógico, dá a mesma resposta. A empresa a operar na Holanda faz recrutamento e construção para fora de Portugal. Ainda recentemente, lançou um anúncio de um eletricista para trabalhar na Bélgica. Caíram muitas candidaturas, mas a larga maioria das parecia “não saber para o que se estava a candidatar”.

“Pedíamos alguns elementos para análise e grande parte dos trabalhadores não possuíam currículos, o que dificultava o processo. Acabamos por rejeitar o trabalho, porque percebemos que não seria viável”, conta.

À caça de talento, Márcia segue alguns grupos no Facebook do setor da construção. Porquê? “As pessoas que realmente são boas, os bons profissionais, acho que já não estão em Portugal. Acho que já todos saíram.”

Vistos de colarinho azul

Para Ricardo Pedrosa Gomes, da AECOPS, Portugal deve apostar na imigração, numa espécie de programa de “vistos de colarinho azul”. No curto prazo, é única forma de conseguir combater a escassez de mão de obra na construção civil, colmatar a “substituição geracional” que não está a acontecer.

Sem surpresas, o trabalho da construção “não é apelativo nem atrativo para as gerações mais jovens”. Somado a isto, “a determinada altura, sendo um setor que absorvia pessoas sem nenhum tipo de formação, grande parte dessas pessoas, que antes estavam disponíveis para a construção, procuraram emprego no turismo”. A lógica dessa mudança é simples: “É mais interessante ser empregado de balcão que andar a carregar tijolos.”

A falta de mão de obra “não se vai resolver sem a vinda de imigrantes, pelo menos no tempo que precisamos para responder à pressão que o mercado está a colocar”, garante. Em particular, Ricardo defende que se deve privilegiar a dinâmica que já existe com alguns países da CPLP. “Em muitos casos, são pessoas que estão a trabalhar há anos em empresas portuguesas”, nota.

O recurso à imigração não é algo novo em Portugal. Há pelo menos duas décadas que a construção civil do país dependente da imigração. A Expo 98 foi erguida com o contributo de muitos cidadãos vindos da Roménia. Entre 2001 e 2003, a imigração dos países da Europa de Leste – Rússia, Roménia, Ucrânia, Moldávia - aumentou muito significativamente, em parte devido à construção dos estádios para o Euro 2004.

Hoje, na empresa de armação de ferro de Mário Pereira (nome fictício), com sede na zona de Braga, cerca de 60% da sua equipa já são imigrantes – maioritariamente cidadãos guineenses e indianos. “Precisamos muito de mão de obra estrangeira. Acredito que hajam empresas a trabalhar em armação de ferro que só tenham mão de obra estrangeira, imigrantes. Os portugueses, digamos assim, procuram outros setores de atividade”, afirma.

A contratação de imigrantes, todavia, tem alguns contratempos práticos, faz questão de lembrar. “Após cumprirem o período de contrato e conseguirem acesso à nacionalidade, quase todos vão embora de Portugal”, explica. Durante uma inspeção do Serviço de Estrangeiros e Fronteiras (SEF), Mário já foi mesmo acusado de estar “a vender nacionalidades”. “Estou a cumprir a lei ponto por ponto, dando todos os direitos, e depois dizem-me destas coisas”, queixa-se.

Mais: Mário compreende o porquê da saída dos imigrantes. “O interesse deles é ganhar dinheiro. Igual a nós [portugueses] quando fomos para a França, Suíça, Alemanha. Ou seja, se ganham aqui mil euros por mês - por exemplo -, mas têm uma oferta para ganhar 1200 para a Alemanha, no mesmo dia deixam a empresa”, diz.

Repetição de problemas

Por estes dias, Filipe Castro está preocupado e tem razões para tal. Os ziguezagues da busca por um empreiteiro que está a viver são praticamente iguais à experiência da irmã, que também está, por estes dias, a tentar recuperar uma casa em Alenquer.

A irmã de Filipe encontrou “um pedreiro” que contrata “outras empresas, chamando pessoas de ali e acolá. Um vem fazer os alicerces, outro vem fazer as paredes.” Foi a única pessoa que conseguiu arranjar, remediou-se. “Ela estava na expectativa de já ter começado a casa e ainda não começou. Desde janeiro que a casa ia começar, mas ainda não avançou”, conta.

O enfermeiro sabe que a maré não está a seu favor. Devido à escassez de matérias-primas, provocada pela pandemia, há muitos orçamentos a derrapar. Ou seja, os 120 mil euros que Filipe contava desembolsar – empréstimo ao banco incluído - para construir uma casa à medida das suas necessidades podem agora não ser suficientes.

“Há um ano e meio, [o empreiteiro] disse que podia ficar à volta de 150 mil euros. Fizemos alguns ajustes no projeto para que ficasse dentro do orçamento que era possível para nós [120 mil]. Neste momento, não sei quanto é que fica. Nessa altura, falamos que os orçamentos mais baixos rondavam os 600 e os 700 o metro quadrado, e neste momento já há gente a fazer por volta dos 1000 o mais barato. Esta pessoa que deu o orçamento, ainda na semana passada foi lá, e contou-me que o ferro tinha aumentado desde dezembro cerca de 40%”, diz.

Mesmo que os astros se alinhem, que encontre um empreiteiro e orçamento não derrape, Filipe Castro poderá sair da casa que tem alugada, na melhor das hipóteses, lá para 2023.

Confrontado com este cenário, o enfermeiro fica durante alguns segundos em silêncio. Um pouco a contragosto, acaba por dizer: “Não estaria a contar com isso. Isso seria complicado, porque estou numa casa arrendada, o contrato vai acabar. Portanto, o senhorio vai querer renegociar o custo do aluguer. Não, dois anos não. Se quer lhe diga, agora que me levantou essa hipótese, é que fiquei a pensar que podia realmente ser.”