​Jacinta, vida entregue pelos pecadores
11-05-2017 - 20:49
 • Eunice Lourenço

Gostava de fazer ecoar o nome de Maria pelos campos, mas morreu sozinha na cidade. Jacinta ficou impressionada com a visão do Inferno e entregou o seu sofrimento pelo Papa e pela conversão dos pecadores.

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“O meu cunhado está metido em trabalhos. A Jacinta pôs-se lá com umas conversas”. Foi assim que um tio dos pastorinhos chegou a casa na noite de 13 de Maio. Tinha ido a casa de Manuel Pedro Marto combinar o trabalho do dia seguinte e tinha assistido à inconfidência de Jacinta que não conseguiu cumprir o compromisso com o irmão e a prima Lúcia de não divulgar o que tinham visto.

Com apenas sete anos, a menina mais nova da casa não tinha conseguido conter o entusiasmo com a Senhora “brilhante de luz” que tinha visto na Cova da Iria. A notícia correu tão rápida nas redondezas que, um mês depois, mais de 60 pessoas terão ido ao local indicado pelos pastorinhos, a 13 de Junho.

Mas o que marcou profundamente a pequena pastorinha foi a visão, a 13 de Julho, do Inferno e a revelação do que viria a ficar conhecido como o terceiro segredo de Fátima. Jacinta entregou-se, então, à penitência, oferecendo sacrifícios e o seu posterior sofrimento pela conversão dos pecadores.

Jacinta foi a quinta filha de Manuel Pedro Marto e de Olímpia de Jesus Santos, mas tinha ainda mais dois irmãos mais velhos de um anterior casamento da mãe. É um desses irmãos que traça o retrato de uma menina caprichosa e mimada. “Era um bocadinho teimosa, mas como era a mais nova de todos e também a mais querida desculpávamo-la. Depois do trabalho, o meu irmão mais velho e eu vínhamos a correr, a ver quem chegava primeiro e a levava para brincar. A Jacinta era magrita alegre e brincalhona”, contou, em 1954, no processo sobre os irmãos, Manuel dos Santos Rosa, nascido em 1895.

“Livrar almas do inferno”

Embora existam algumas versões diferentes sobre as datas, o mais comummente aceite é que Jacinta nasceu a 11 de Março de 1910 e foi baptizada a 19 do mesmo mês. “Gostava de ouvir o eco da sua voz regressado do fundo dos vales e a palavra que mais gostava de gritar e ouvir o eco era 'Maria'”, lê-se na nota biográfica da “Enciclopédia de Fátima”.

As descrições falam do seu olhar doce e meigo, com olhos grandes e castanhos, muito vivos e de um coração terno e compassivo que viria a dedicar a Deus e aos pecadores. Com cerca de cinco anos terá começado a ir com os rebanhos e o irmão Francisco para os campos e, em 1916, vêem por três vezes um anjo. No ano seguinte, vêem Nossa Senhora. Ao contrário do irmão, que nunca ouviu o que a Senhora dizia, Jacinta ouvia e ouviu, a 13 de Julho, o segredo que não podiam contar a ninguém excepto a Francisco.

Mais do que ouviu, foi o que viu que a impressionou: a visão do Inferno e do sofrimento dos pecadores e a visão de uma Igreja de mártires liderada por um bispo vestido de branco.

O amor aos pecadores e o zelo pela sua conversão torna-se uma característica muito marcante na vida espiritual de Jacinta e marca uma diferença com o seu irmão. “Enquanto a Jacinta parecia preocupada com o único pensamento de converter pecadores e livrar almas do Inferno, ele parecia só pensar em consolar a Nosso Senhor”, escreve Lúcia nas suas Memórias.

“Encontramos nesta criança uma sensibilidade que não é, simplesmente, uma reacção superficial e sensorial às imagens fortes com que é confrontada. É verdadeiramente uma disposição para se deixar tocar por dentro, para se impressionar no fundo de si mesma, sofre porque outros sofrem e isso inquieta-a. Nas suas interrogações não encontramos manifestação de qualquer curiosidade mórbida, mas apenas o desejo de captar e compreender o alcance desse mal e a realidade do sofrimento que isso representa”, lê-se em “Implicações éticas da compaixão”, a comunicação do padre e teólogo Vítor Coutinho, incluída no livro “Jacinta, do encontro à compaixão”.

Foto: Santuário de Fátima

“Partilha a responsabilidade pela existência de um mal que não deveria ter lugar. É de uma verdadeira compaixão que aqui falamos. A existência universal do mal não é motivo para se resignar, mas para escolher aquela forma de solidariedade que lhe é possível”, acrescenta Vitor Coutinho, apontando algumas dessas formas de solidariedade praticadas por Jacinta como os gestos para com os doentes, a partilha dos poucos bens que tinha com os mais pobres.

Amor ao Papa

O interesse pelo Papa, figura que antes nem saberia quem era, foi levado a Jacinta por dois padres que foram interrogar os pastorinhos e lhes pediram que rezassem pelo Santo Padre. A Jacinta perguntou quem era e eles explicaram e disseram que o Papa precisava muito de orações. Desde então, a menina viva e caprichosa passou a oferecer sacríficos e sofrimentos por aquele homem vestido de branco que era o Papa.

“Naquela menina tão frágil ardia um grande coração que pulsava cheio de amor. A mística do amor pelos pecadores, pela Igreja, pelo Santo Padre, é a característica da Jacinta, o que é tanto mais impressionante quanto se trata de uma simples e inocente criança de sete anos”, analisa o professor e teólogo Jacinto Farias num texto sobre a espiritualidade dos pastorinhos incluído nas actas do congresso dedicado a Jacinta no centenário do seu nascimento.

“O tempo em que vivemos não acolhe da forma mais positiva os conceitos e a realidade do sacrifico e dos sacrifícios”, reconhece outro dos participantes no mesmo congresso, Emanuel Matos Silva. Este padre explica que a palavra significa tornar alguma coisa sagrada, ou seja, oferecer algo a Deus e estabelecer uma relação com Ele.

Jacinta tentou passar longos períodos de tempo em adoração diante do sacrário para descobrir o que pode ser ocasião de sacrifício. Também passava horas prostrada a repetir a oração que o Anjo lhes tinha ensinado: “Meu Deus eu creio, adoro, espero e amo-vos. Peço-vos perdão para o que não crêem, não adoram, não esperam e não vos amam.” Entre as suas mortificações e penitências também estava, por exemplo, beber o leite e recusar as uvas apetitosas que a mãe lhe dava.

Modelo para médicos e doentes

Jacinta oferece tudo a Deus: a prisão em Agosto, as saudades dos pais, as calúnias de que os pastorinhos vão sendo algo ao longo de 1917, as suas orações e, por fim, as dores e a vida.

Em Dezembro de 1918, adoeceu com a gripe pneumónica, tal como quase toda a sua família. Os seus pais, aliás, sofreram a morte de quatro filhos em dois anos (Francisco, Jacinta, Florinda e Teresa). Jacinta não chorou quando o irmão morreu, a 4 de Abril de 1919, e dizia que não deviam chorar porque Francisco tinha ido para o Céu. Também ela tinha a certeza de que iria para o Céu, mas dizia que Nossa Senhora lhe tinha dito que ficaria mais algum tempo na terra para a conversão de mais pecadores.

“Jacinta sabia, intuitivamente, que Deus lhe dera a vida por amor, que recebera a vida por amor e por amor ela quer restituir a Deus a sua vida inocente”, considera Paolo Molinari, padre jesuíta que foi postulador da causa de Francisco e Jacinta.

Entre Julho e Agosto de 1919 esteve internada no hospital de Ourém, onde foi submetida a tratamentos dolorosos, mas que não resultaram. Voltou para Aljustrel e ainda iria, doente, várias vezes à Cova da Iria, a cavalo de um burro.

Foto: Santuário de Fátima

A última vez foi a 13 de Janeiro de 1920. No dia 21 iria para Lisboa, onde seria internada no Hospital da Estefânia a 2 de Fevereiro. Pelo meio, ficou hospedada no Orfanato de Nossa Senhora dos Milagres, na Estrela. Tanto no hospital, como no orfanato, que é hoje o convento das clarissas, terá visto Nossa Senhora várias vezes.

“Chegou ao hospital num estado muito grave”, disse num depoimento para o processo dos pastorinhos o médico que a operou. Jacinta sofria de pleuresia, inflamação das pleuras pulmonares. “Pleuresia da grande cavidade esquerda, fistulizada; osteíte das 7ª e 8ª costelas do mesmo lado”, foi o diagnóstico inscrito no seu registo médico.

A operação serviu para retirar o pus e deixou-lhe uma ferida aberta do lado esquerdo. A debilidade impediu a aplicação de anestesia geral. “A anestesia local em tecidos que estão já muito inflamados causa um sofrimento muito grande”, disse na altura o médico Castro Freire.

“O sentido espiritual com que vivia a doença e a forte relação ao Senhor não lhe diminuíam o sofrimento. Por isso, não esconde a dor da solidão, que parece ser o seu maior tormento”, afirma a irmã Ângela Coelho, médica e postuladora da causa dos pastorinhos, que acrescenta: “Ao dar respostas generosas, movida pela sua 'compaixão pelas multidões' que viu sofrer, Jacinta pode ser modelo também para os profissionais de saúde e para todos os que cuidam de doentes. Por outro lado, ao sofrer a sua doença com 'sentido reparador', é modelo também para os que experimentam a doença e a solidão.”

Depois de pequenas melhoras, Jacinta piorou e acabou por morrer na noite de 20 de Fevereiro de 1920. Antes, confessou-se e pediu para receber a comunhão, que o padre prometeu levar-lhe no dia seguinte.

Foi amortalhada, como pedira, vestida de branco e azul como Nossa Senhora. Depois de ter sido visitado por muita gente na igreja dos Anjos, em Lisboa, o corpo foi levado de comboio para Ourém onde foi sepultada num jazigo disponibilizado pelo Barão de Alvaiázere.


O QUE OUTROS DISSERAM SOBRE JACINTA

“Era um bocadinho teimosa, mas como era a mais nova de todos e também a mais querida desculpávamo-la. Depois do trabalho, o meu irmão mais velho e eu vínhamos a correr, a ver quem chegava primeiro e a levava para brincar. A Jacinta era magrita alegre e brincalhona.” Manuel dos Santos Rosa, um dos irmãos mais velhos de Jacinta, nascido em 1895

“Era fraquita e miúda de cara, muito viva, alegre e brincalhona.” Glória de Jesus, irmã de Lúcia

“A pequena gostava muito de ir, à noitinha, para uma eira que tínhamos em frente da casa, ver o lindo pôr-do-sol e o céu estrelado que se lhe seguia. Entusiasmava-se com as lindas noites de luar. Porfiávamos para ver quem era capaz de contar as estrelas que dizíamos serem as candeias dos anjos. A lua era a [candeia] de Nossa Senhora e o Sol a de Nosso Senhor, pelo que a Jacinta dizia às vezes: ‘ainda gosto mais da candeia de Nossa Senhora, que não nos queima, nem cega; e a de Nosso Senhor, sim'”. Irmã Lúcia

“Bastante alta para a sua idade, um pouco delgada, sem poder dizer magra, de rosto bem proporcionado, tez morena, modestamente vestida, o seu aspecto é o de uma criança saudável, acusando perfeita normalidade no seu todo físico e moral.” Padre Manuel Nunes Formigão, que conduziu os primeiros inquéritos eclesiásticos aos pastorinhos


O QUE JACINTA DISSE:

“Gosto tanto de dizer a Jesus que o amo. Quando lho digo muitas vezes, parece que tenho um lume no peito, mas não me queimo.”

“Sinto a Nosso Senhor dentro de mim. Compreendo o que me diz e não o vejo nem oiço; mas é tão bom estar com ele.”

“Se eu pudesse meter no coração de toda a gente o lume que tenho cá dentro no peito e a queimar-me e a fazer-me gostar tanto do Coração de Jesus e do Coração de Maria!”

“Havemos de rezar e fazer muitos sacrifícios pelos pecadores.”

“Nosso Senhor está triste, porque Nossa Senhora disse para não o ofenderem mais, que já está muito ofendido e ninguém faz caso.”

“[Para Lúcia] Se tu fosses comigo! O que mais me custa é ir sem ti. Se calhar, o hospital é uma casa muito escura, onde não se vê nada e eu estou ali a sofrer sozinha.”

“Não se aflija minha mãe; vou para o Céu.”