Vamos comer melhor depois da Covid-19?
14-09-2020 - 13:35
 • Sandra Afonso

A despesa com alimentação foi a única que aumentou durante o confinamento. As consultoras já antecipam mudanças de hábitos de consumo ligadas à pandemia.

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O medo persiste porque a Covid-19 mata e intensifica-se porque, associada a outras complicações, mata ainda mais. O vírus ganha força com a idade do doente, ou a falta dela, a fragilidade, qualquer imperfeição nas defesas ou excesso. O termo habitualmente empregue são “outras patologias associadas” ou “comorbilidades”, ou seja, quando ao novo coronavírus se junta a outra doença ou condição – está criada a tempestade perfeita.

Um destes riscos, cada vez maior entre a população portuguesa, é a obesidade. Sim, os portugueses estão a ficar cada vez mais obesos. O excesso de peso é causa de mortalidade e, associado à Covid-19, acelera a ação do vírus.

Segundo o último Inquérito Nacional de Saúde (2019) do Instituto Nacional de Estatística, 16,9% da população adulta (com 18 anos ou mais) é obesa, mais de metade (53,6%) tem excesso de peso. A situação é mais grave no caso das mulheres, a partir dos 55 anos e nas classes mais desfavorecidas e com menos escolaridade. No entanto, não são só os adultos que lutam com a balança. Um relatório da Health at a Glance, da Organização para a Cooperação e Desenvolvimento Económico (OCDE), revela que 67,6% da população portuguesa acima dos 15 anos tem excesso de peso ou é obesa. Portugal é o quarto país da OCDE com a população mais obesa.

Ágata Roquette, formada em nutrição e engenharia alimentar, diz à Renascença que durante os 15 anos em que dá consultas "são cada vez mais os pacientes enviados por médicos por questões de saúde, seja por colesterol alto, ácido úrico elevado, problemas de coluna/articulações/ joelhos, diabetes, apneia do sono, etc". A Direção Geral da Saúde acrescenta que “a obesidade está ligada a uma grande mortalidade e morbilidade, sendo que as complicações associadas podem ser responsáveis por 5 a 10% dos custos de saúde”.

Um estudo recente da Universidade da Carolina do Norte, encomendado pelo Banco Mundial, alerta que a obesidade pode diminuir a eficácia da vacina contra a Covid-19. Por outro lado, nos infetados obesos o risco de morrer aumenta 48%, o risco de internamento sobe 113% e têm mais 74% de possibilidade de serem admitidos nos cuidados intensivos, uma percentagem partilhada por aqueles que têm excesso de peso.

Regressar à comida verdadeira – Realfooding

“A actual situação está a sensibilizar muitas pessoas, percebemos que estamos mais vulneráveis, o que nos faz repensar e dar mais atenção à saúde”, diz Carlos Ríos. O nutricionista espanhol dá a cara pelo movimento realfooding, um estilo de vida que defende a exclusão dos ultraprocessados da alimentação.

Carlos Ríos acredita que esta pandemia vai trazer mudanças, “antes vivíamos em piloto automático, num remoinho, o coronavírus obrigou-nos a parar, o que nos faz pensar no que é importante”, acrescentou. Durante uma videoconferência, sobre o impacto da pandemia, defendeu ainda que os consumidores vão passar a viver tão preocupados com a saúde como a segurança, a estabilidade ou o dinheiro.

Este nutricionista e dietista conta já com milhares de seguidores, é um influencer em guerra aberta contra a indústria alimentar, basta recomendar determinado produto e este esgota. Começou no Facebook, mas já está presente em várias redes sociais e até tem uma aplicação (myrealfood) e uma academia (realfooding), onde dá consultas.

Criou o movimento em 2017, mas no livro “Coma Comida Real”, editado pela Planeta, defende que apenas deu voz às ideias da mãe e das avós. Afinal, o conceito é simples, defende os produtos frescos, quanto mais simples o rótulo, melhor.

Já todos estamos familiarizados com o conceito de “comida de plástico”, escreve Carlos Ríos, mas nem sempre conseguimos identificar estes produtos e os perigos que representam. Podem as bolachas integrais, os sumos detox ou o fiambre light ser junk food? O nutricionista defende que sim, os alertas escondem-se nos extensos rótulos, onde se escondem os açúcares em variadas formas, as farinhas refinadas, os óleos vegetais, os aditivos e o sal.

O que é então a comida real? Segundo Carlos Ríos, são “todos aqueles alimentos que passam por processamentos bastante reduzidos ou cujo processamento industrial não deteriore a qualidade da composição ou interfira de forma negativa com as propriedades saudáveis presentes no alimento de forma natural”.

O nutricionista não se cansa de explicar como os ultraprocessados estão a envenenar a população e a empurra-la para uma morte lenta, uma indústria que vive muito do marketing e da publicidade, que se apoia na adição. Ainda assim, também o realffooding admite o pecado, porque ninguém é perfeito, o dietista deixa até 10% do plano alimentar para a comida processada.

No livro, nas redes sociais, nas consultas, o fio condutor dos argumentos de Carlos Ríos é sempre o mesmo – devolver a comida real à população, pela saúde, com base em informação e conhecimento científico.

Mudanças no consumo e nos hábitos alimentares

Na China, o primeiro país a ser afetado, os consumidores estão hoje mais preocupados com a saúde e os hábitos alimentares. Se se mantiver a tendência, em que o gigante asiático parece antecipar o que vai acontecer no ocidente, podemos esperar um comportamento semelhante em Portugal.

Segundo o INE, a única despesa das famílias que aumentou durante o confinamento foi a alimentação, a conta chegou mesmo ao valor mais alto dos últimos 25 anos.

A consultora Nielson antecipa já que vão surgir “novas oportunidades”, impulsionadas pelas mudanças que a Covid-19 trouxe. Ágata Roquette lembra que “muita gente finalmente teve tempo para si própria, programou melhor as refeições, treinou mais (caminhadas ou treinos on line), abrandou o ritmo de trabalho, conseguiu cozinhar melhor para a família sem recorrer a comida rápida. No entanto, a maioria, por estar tanto tempo em casa, comeu mais, fez mais bolos, nunca vi tanta gente a fazer pão caseiro!”

João Otávio, Client Development Manager da Nielsen, defende que “vão conquistar importância os momentos de consumo em casa, a procura por retalhistas com a capacidade de entrega ao domicílio – com destaque para produtos biológicos e frescos, que crescem a oferta no online em Portugal – e a possibilidade de comunicar diretamente com os consumidores através de canais digitais”.

É o regresso dos consumidores à terra e ao local? Muitos pequenos produtores já estão a posicionar-se para tirar partido desta onda, empurrados pela crise pandémica. Alguns juntaram-se em sites partilhados, que oferecem entregas ao domicílio por zonas ou tipo de produtos, outros dinamizaram páginas que já definhavam.

A Biorgani é um destes casos: antes da Covid-19 o negócio atravessava uma fase “menos boa”, agora aumentaram os produtores biológicos associados à plataforma, em vez de subcontratarem as entregas investiram em duas carrinhas próprias e aumentaram a oferta. Além dos produtos frescos, já disponibilizam também mercearia e bolos e preparam-se para vender refeições, tudo biológico. À Renascença, Catarina Salta, uma das fundadoras, admite que o grande empurrão foi o coronavírus: “Com a pandemia começámos a ter um volume extraordinário de procura, os produtores precisavam de nós para escoar os produtos. As encomendas cresceram 50%, até mais no pico do surto.”

Os consumidores regressaram, entretanto, às lojas, mas mantêm-se também nas plataformas on-line, pelo menos para já.

A procura pelo saudável explica também muito do sucesso de blogs e influencers, que partilham pratos e snacks saudáveis, uma tendência que continua em crescimento. Mas “ser saudável não significa que não leve ao aumento de peso ou à não diminuição do peso”, alerta a nutricionista Ágata Roquette. “Para perda de peso as doses, mesmo de alimentos saudáveis, têm que ser controladas. É o caso do azeite, frutos secos, abacate, mel, etc . Não tenho dúvidas que sejam saudáveis mas também não tenho dúvidas que em excesso nos levem ao aumento de peso”, acrescenta.

Entre a primeira vaga e o medo de uma segunda, a primavera passou despercebida, com o verão chegou a corrida a soluções que aliviassem a balança. Agora regressa o medo e a incerteza, até que uma ou várias vacinas possam trazer alguma normalidade de volta. Para quem vive em permanente luta com o peso, a pandemia só trouxe mais urgência a esta guerra. Mas, sejamos justos, quem tem de trabalhar para manter o peso, esteve sempre em desvantagem nesta pandemia.