A Covid-19 fez Paulo Vale, um empresário com negócios em vários ramos, avançar para a construção de uma unidade de produção de máscaras tipo I e II e FFP2, em Vila Real, Trás-os-Montes. O negócio está a crescer, mas há um travão que não está a conseguir controlar. Abriu 20 vagas de emprego para a fábrica construída em 2020, mas em mês e meio apenas conseguiu preencher três.
A dificuldade em atrair e reter mão-de-obra no interior do país é um fenómeno cada vez mais dramático para os empresários de várias regiões. Há mesmo quem já esteja a responder à falta de candidatos com a introdução de máquinas para automatizar várias tarefas.
A Renascença contatou quase uma dezena de associações empresariais do interior e a resposta é sempre a mesma: há falta de pessoas para trabalhar. Esse problema que antes se confinava a alguns setores de atividade é agora transversal.
A desadequação entre o perfil de quem procura trabalho e os empregos que existem é também cada vez mais evidente.
Paulo Vale, aos 60 anos, gerente da BV Trading, confidencia à Renascença que tem urgência em aumentar o número de quadros, sobretudo, de operadores de máquinas. Mas encontrar pessoas para desempenhar funções técnicas na região é uma missão (quase) impossível. Os salários, consente, também não ajudam.
“Às vezes é mais fácil recrutar gente com mais qualificação e com remunerações mais elevadas, do que pessoas com remuneração próxima do salário mínimo porque a alternativa de estar no desemprego é, em grande parte das vezes, mais benéfica. Se se fizer as contas aos transportes, ao tempo que se perde - as pessoas têm ainda que almoçar fora - temos de ser realistas: é pouco tentador”, descreve, assinalando que a proximidade de valores entre salário mínimo nacional e subsídio de desemprego não ajuda a que as empresas sejam atrativas.
No noroeste do país, no distrito de Bragança, Hélder Teixeira, que além da associação empresarial da região (NERBA), também dirige os lagares de azeite de Vila Flor e Carrazeda de Ansiães, traça um cenário muito pouco animador da realidade.
“Neste momento, temos uma desertificação principalmente de trabalho. As pessoas vão tanto para o litoral como para outros países à procura de melhor vida, e nós estamos a ficar com pessoas já com alguma idade, que se reformam e que vêm à procura das origens. Estamos com muito pouca gente aqui na região”, descreve.
Hélder lamenta que os jovens estejam “todos a sair”. Os baixos salários, afiança, são o principal motivo. O empresário fala do desajustamento que existe entre o que o distrito precisa e as competências dos recursos humanos que existem. Há falta de técnicos intermédios, marceneiros, carpinteiros ou serralheiros. “Precisamos deste tipo de profissionais, porque doutores temos alguns, mas as empresas de doutores precisam [de pessoal] com menos frequência”, reflete.
O líder da NERBA diz que os jovens não procuram cursos nas áreas técnicas, e que são as empresas que estão a dar formação a quem chega para trabalhar. E volta a enfatizar. “Precisamos de pessoas para fazer de padeiros, de carpinteiros. Precisamos de pessoas que saibam meter a mão na massa”, ilustra.
Problema transversal
Na região vizinha do Alto Tâmega – que abarca os concelhos de Chaves, Boticas, Ribeira de Pena, Montalegre, Valpaços, Vila Pouca de Aguiar – o presidente da ACISAT, Vítor Pimentel, não hesita em dizer que a falta de mão-de-obra é um problema que se coloca com gravidade nos mais variados setores.
“Se até aqui podia haver mão-de-obra para determinadas áreas e os problemas eram mais setoriais, agora é quase transversal a todos os setores”, avisa.
Mas de seguida, concretiza com um caso prático. Na hotelaria e na restauração há uma procura, por parte dos patrões, de gente qualificada, com formação, mas “não conseguimos atrair pessoas para a região”.
“O interior do país sofre de uma desigualdade muito grande em relação ao litoral. Havendo igualdade de oportunidades em setores básicos como a edução, a saúde e a justiça, dificilmente uma família escolhe vir para o interior em detrimento do litoral. Esse é o maior problema na atração de pessoas e fixação de pessoas”, explica.
Andamos para sul, para uma das regiões com mais baixa densidade populacional do país, e Jorge Pais, presidente do Núcleo Empresarial da Região de Portalegre, também refere a dificuldade dos empresários em encontrar pessoas em setores como eletromecânica, construção civil, estucadores, técnicos de informática ou canalizadores.
Pais fala de uma zona com uma “economia muito frágil”, com uma predominância de microempresas que têm tendência em “proteger-se quando contratam”. “Esta falta de mão-de-obra está relacionada com as caraterísticas sociais e empresariais, como não podia deixar de ser”, identifica.
“Não querem trabalhar”
Na Guarda, a unidade de estruturas metálicas, Metalguarda, é outro exemplo vivo destas dificuldades.
A assessora da direção, Fátima Teixeira, não tem dúvidas em afirmar que o setor da construção é um dos mais atingidos por esta crise de mão-de-obra. “Nos últimos tempos não se consegue mesmo arranjar pessoal para trabalhar. Sabemos que este é um setor de trabalho pesado e o pessoal prefere deixar para última opção”, salienta.
Fátima diz que ultimamente há um problema que está a crescer. “No nosso setor, construção metálica, na serrilharia e na soldadura, se o trabalhador tiver alguma especialização ou experiência é-lhe muito mais rentável estar a receber subsídio de desemprego e fazer uns trabalhos extra. No final recebem muito mais do que se estivessem a trabalhar”, refere.
A assessora da Metalguarda diz que a empresa − que tem obras um pouco por todo o país − teria capacidade para absorver mais 10 pessoas.
Salários e incentivos pouco atrativos
O presidente do Sindicato da Construção Civil, Albano Ribeiro, anui no diagnóstico, mas não nas causas. Concorda que há falta de gente para trabalhar nas obras e culpa as associações do setor que, segundo ele, fomentam o trabalho para os imigrantes.
De seguida, põe a tónica na questão dos salários que não atraem ninguém. “Em Portugal, um engenheiro ganha 960 euros e um carpinteiro 720 euros. O mesmo engenheiro em Espanha ganha cinco mil euros e o mesmo carpinteiro dois mil. As associações empresariais são responsáveis pela saída de trabalhadores do país”, repete.
Orlando Faísca, presidente da associação empresarial da Guarda, a NERGA, aponta várias causas para que o interior seja pouco atrativo para quem trabalha. “Não existe um planeamento em termos de políticas. Temos custos de contexto mais elevados ao nível das portagens. Na mobilidade há um défice de transportes públicos. Tem de haver um choque fiscal, incentivos às pessoas, nomeadamente ao nível do IRS e da habitação”, enumera.
“A nossa política fiscal para as empresas não é aliciante para novos investimentos. Não existem medidas constantes”, sublinha.
Enquanto empresário da área da florestação, de uma unidade que se dedica à desmatação, Orlando sente na pele as dificuldades em encontrar pessoas no dia-a-dia. Tem 10 vagas que não consegue preencher.
A empresa conta quase com 100 funcionários e 20% já são de fora da Guarda. “Estamos a tentar divulgar [as ofertas de emprego]. Não conseguimos satisfazer as nossas necessidades em recrutamentos através do IEFP [Instituto do Emprego e Formação Profissional]”, sublinha.
A questão salarial é um dos pontos muitas vezes referido pelos empresários. Culpam a proximidade de valores entre o salário mínimo e as prestações sociais – subsídio de desemprego e rendimento social de inserção – como argumento para que as empresas tenham dificuldade em contratar.
Muitos dizem que não são contra estes apoios, mas que deviam ser mais fiscalizados para “não promover quem não quer trabalhar”.
João Cota, presidente da Associação Empresarial da Região de Viseu (AIRV), critica: “Muitas vezes, as pessoas são desafiadas para trabalhar para receber o salário mínimo e na cabeça delas compensa ficar em casa. Depende do brio das pessoas”, conclui.
Mais a Norte, em Vila Real, Emanuel Camilo, presidente da associação empresarial do distrito, afirma que o problema não é a falta de pessoas. Afirma que elas existem, mas “não querem trabalhar”.
Muitos dizem que não são contra estes apoios, mas que deviam ser mais fiscalizados para “não promover quem não quer trabalhar”.
João Cota, presidente da Associação Empresarial da Região de Viseu (AIRV), critica: “Muitas vezes, as pessoas são desafiadas para trabalhar para receber o salário mínimo e na cabeça delas compensa ficar em casa. Depende do brio das pessoas”, conclui.
Mais a Norte, em Vila Real, Emanuel Camilo, presidente da associação empresarial do distrito, afirma que o problema não é a falta de pessoas. Afirma que elas existem, mas “não querem trabalhar”.
“É essa a ideia que nos dá. As pessoas fazem seleções nos seus processos de recrutamento e preferem ficar em casa, porque estão a receber o subsídio de desemprego. Temos alguns casos em que nem sequer se chega a discutir a questão salarial, quando percebem que é um trabalho intenso. Não estamos sequer a falar de trabalho duro”, referencia.
Camilo acredita que, muitas vezes, o problema não é salarial, “é o comodismo das pessoas que as leva a ficar em casa”. “Ficam em casa, ou porque têm o subsídio de desemprego ou o rendimento de inserção social”, identifica.
E ilustra esta realidade: “Há um empresário a quem há bem pouco tempo disseram que por mais 50 euros preferiam ficar em casa, porque assim evitavam deslocar-se, apanhar chuva, etc”.
No mesmo distrito de Vila Real, o dono do restaurante “Curva 24”, alusivo ao autódromo local, debate-se depois dos confinamentos com a dificuldade de preencher as duas vagas que tem abertas na equipa que queria que fosse de seis pessoas.
Tem anúncios no IEFP, nas redes sociais e em sites de anúncios de emprego. Mas até agora nada. “As pessoas têm mil e uma desculpas ou argumentos para não trabalhar. Não falam sequer do salário. Às vezes marcam e não vêm. Nunca perguntam o salário. As pessoas não estão interessadas em trabalhar”, sentencia João Grilo.
O empresário acrescenta que alguns dos candidatos estavam a receber o subsídio de desemprego “nos 500 e poucos euros e faziam uns biscates em que ganhavam outro tanto”, e lhe diziam “que se viessem trabalhar tinham de pôr os miúdos na creche”.
Discurso miserabilista
O sociólogo Pedro Estêvão, investigador do Colabor − Laboratório Colaborativo para o Trabalho, Emprego e Proteção Social − rejeita liminarmente este discurso.
Argumenta que “se queremos fixar e atrair pessoas não será com o salário mínimo ou pouco mais do que isso”. E desmonta a tese de que os apoios sociais sejam um desincentivo ao trabalho.
“Os mínimos do subsídio de desemprego não garantiam que os trabalhadores estivessem sequer acima da linha de pobreza. Logo aí vemos o mito da generosidade do subsídio de desemprego em Portugal. Ele não é nada generoso. Pelo contrário, são valores muito baixos”, quantifica.
Em relação à cobertura deste apoio refere também que “não é brilhante”. “O número que efetivamente aufere subsídio de desemprego não ultrapassa os 50%. É mesmo inferior”, lembra o especialista.
Estêvão defende que não são os valores do subsídio de desemprego que estão na raiz dos problemas. “Uma das funções do subsídio de desemprego é ser um regulador do mercado de trabalho, permite que as pessoas não aceitem salários muito, muito baixos”, declara.
O sociólogo critica a resposta dos empresários que passa sempre no sentido de “como é que podemos baixar os salários”.
E assim conclui que é muito complicado manter um sistema, ou um conjunto de atividades que dependem de salários baixos e de condições de trabalho que não são as mais interessantes. “Nesta questão está a chave”, defende.
O dirigente do Sindicato de Hotelaria do Norte, Francisco Teixeira, pensa que a falta de mão-de-obra tem muito a ver com as condições de trabalho que são oferecidas. “Se forem boas ou razoáveis não falta de mão-de-obra”, acredita.
O mesmo diz que só há falta de trabalhadores para quem “oferece salários muito baixos e condições de trabalho muito más”.
“O nosso setor é caraterizado por horários longos e penosos. Os trabalhadores trabalham muitas horas semanalmente, particularmente na restauração. Só têm horas de entrada, não têm horas de saída. As empresas recusam os dois dias de folga semanal”, descreve.
O dirigente sindical dá o exemplo do grupo Vila Galé que “veio reclamar falta de trabalhadores, mas a verdade é que despediu centenas de contratados a prazo, ou que estavam no período experimental, e prestadoras de serviços que ganhavam o salário mínimo nacional”.
E conclui que é natural que esses trabalhadores “que foram tão maltratados” não estejam disponíveis para retomar o trabalho.
Programa para repovoar só paga o transporte
Durante a pandemia, o Governo lançou o programa “Emprego Interior Mais” que visa fixar mais pessoas naquelas regiões do país.
No Alto Tâmega, Vítor Pimentel olha com desconfiança. “Nós precisamos de empresas, não de premiar o emprego”, começa por dizer.
Afirma que oferecer 4800 euros a quem for trabalhar para o interior “é quase como pagar-lhe o camião das mudanças”.
E aponta outras alternativas: “O que precisamos é de que não se fale do 5G no litoral e termos uma série de áreas no interior em que o 4G é uma miragem. Se queremos fomentar o teletrabalho, essas zonas que não têm uma cobertura móvel em condições estão condenadas nas questões do teletrabalho”, refere.
E desfia ainda outras áreas em que era premente agir para a tal discriminação positiva. “Conhecemos o interior do país e este tem condições climatéricas diferentes das do litoral. A energia de aquecimento tem de ter uma taxação diferente. Aqui temos invernos em que há 5,6 7 graus negativos, e um verão seco onde chegamos aos 40 graus”, assinala.
A minguar
A falta de pessoas para preencher os postos de trabalho está já a ter consequências para o tecido empresarial do interior do país e para as economias locais das regiões.
Em Portalegre, Jorge Pais diz que se assiste a “uma pescadinha de rabo na boca”, em que “as coisas são causa e consequência dessa espiral demográfica”. “Não há mais gente porque não há mais postos de trabalho e mais investimento. Mesmo os naturais da região desde há décadas que se veem constrangidos a procurar a vida profissional noutro pontos, seja em Portugal ou no estrangeiro”, refere.
No Alto Tâmega, Vítor Pimentel garante que há casos de perda de investimentos por falta de trabalhadores disponíveis. “Há grupos económicos que chegam a mostrar interesse para o interior, mas a falta de mão-de-obra qualificada pesa”, sublinha.
Na Guarda, o presidente da NERGA garante que houve uma empresa que fez um investimento há um ano na área do calçado e que ainda começou a atividade, mas “queria alavancar o seu negócio e não conseguiu arranjar recursos humanos”.
“Teve de fechar a sua atividade laboral”, assegura Orlando Faísca.
Os atrasos
O atraso na entrega de encomendas e a derrapagem de prazos de obras é um problema bem real. “Há atrasos nas entregas das obras. Eu na minha empresa tenho tido vários problemas de entrega de obras. Estou a fazer um pavilhão na cooperativa de produção de azeite e quem está a fazer a obra está a atrasar a entrega porque diz que não tem pessoas para vir terminá-la”, refere.
Paulo Vale, o empresário de Vila Real que fundou uma unidade de fabrico de máscaras, afiança que “já há encomendas que não conseguimos satisfazer completamente”.
“Ainda há bocado estava um cliente a ligar a dizer que estava com rutura de stock porque eu não estava a conseguir entregar”, afiança.
Em Bragança, Hélder Teixeira refere ainda uma outra consequência. “Há empresas que não fazem expansão do negócio porque não têm funcionários para o fazer”, explica.
Mas há quem esteja a tentar dar a volta à situação. Se não há pessoas, compram-se máquinas.
“Há também uma tentativa de arranjar máquinas, as pessoas estão a tentar mecanizar todas as tarefas possíveis para evitar a necessidade de mão-de-obra. Comprar máquinas específicas que permitam não depender da mão-de-obra para fazer, por exemplo, a colheita da azeitona”, ilustra.
“Há 10 ou 15 anos era feita manualmente, agora 70 a 80% já é feita com máquinas de varejar”, concretiza.
A assessora da direção da Metalguarda diz o mesmo. Estão a mecanizar algumas tarefas: ainda assim não é o suficiente. “Temos bastantes obras em todo o país, e apesar de já haver muita mecanização na nossa área que dá para colmatar algumas falhas. Acabamos por não aceitar tanto trabalho como poderíamos porque não temos capacidade de resposta”, avança.
E soluções?
Mas o interior está condenado a definhar na atratividade laboral? A convicção geral é a de que não. Mas que é necessária ação e não apenas discursos.
“Precisamos de incentivos na diluição dos custos de transporte. Temos esta questão do preço de energia que também não ajuda”, avalia o presidente da Associação Empresarial de Vila Real, Emanuel Camilo.
Outra solução que é avançada pelos empresários é a das “migrações de substituição”. “Temos de atrair gente de fora para vir trabalhar para Portugal”, observa João Cota, líder dos empresários de Viseu, que diz que a região tem conseguido atrair sobretudo brasileiros.
As empresas falam também da necessidade de promover cursos profissionais que vão ao encontro das necessidades reais, seja para serralheiros, para soldadores. Cursos abertos a todas as idades.
“Não só aos jovens, mas também a pessoas de alguma idade que estão capacitadas para trabalhar. Estágios em contexto real de trabalho, através de acordos mútuos entre o IEFP e as empresas. O candidato ficava mais integrado no contexto laboral”, pede Fátima Teixeira da Metalguarda.
A mesma empresa pede ainda que os refugiados que vêm para Portugal possam ter na construção civil uma porta de integração na sociedade e na economia nacional.
Mas há um paradoxo que a realidade está a fazer crescer em muitas regiões do país. O aumento das qualificações académicas deveria levar ao desenvolvimento do interior. Mas não é isso que está a acontecer.
“A formação está a permitir que os jovens atinjam outras expectativas e permite que tenham uma visão maior do universo. Se puderem ter uma melhor vida na França, na Suíça ou no Luxemburgo, não ficam aqui à espera que as empresas melhorem”, remata Hélder Teixeira, presidente da Associação Empresarial do Distrito de Bragança.