"Tratado de paz das Coreias é a probabilidade mais forte" na cimeira Trump-Kim
27-02-2019 - 06:26
 • José Bastos

"Tratado de paz será o pilar para o início de um processo negocial muito complexo sobre o programa nuclear norte-coreano", antecipa o investigador universitário para quem "a escolha de Hanói tem um inegável simbolismo".

Trump chegou a Hanói de avião, no Air Force One. Kim Jong-Un optou por um método menos convencional nestas cimeiras: o comboio. Mas, a partir do jantar desta quarta-feira, os Presidentes dos Estados Unidos e da Coreia do Norte vão tentar fazer avançar o processo de negociação iniciado em junho do ano passado, em Singapura.

Se no verão a cimeira valia por si - um aperto de mãos era um progresso assinalável -, desta vez, em Hanói, a vaga declaração sobre o abandono do programa nuclear de Pyongyang de junho passado terá de dar lugar a passos mais objetivos sob pena de perda de credibilidade para os Estados Unidos. Assim se resume a expetativa de muitos analistas em Washington.

Ainda assim, José Pedro Teixeira Fernandes especialista em geoestratégia defende "ser difícil sair algo de muito concreto quanto à desnuclearização da Coreia do Norte". "Na melhor das hipóteses talvez surja um caminho negocial", diz o analista, em entrevista à Renascença.

"Um tratado de paz sobre a guerra das Coreias será a possibilidade de resultado mais palpável da cimeira de Hanói", defende o investigador de Ciência Política e Relações Internacionais.

Um roteiro para a desnuclearização da Coreia do Norte com passos concretos e verificáveis é o principal desafio da cimeira de Hanói?

A cimeira do ano passado em Singapura teve um momento de grande simbolismo quanto mais não seja por colocar pela primeira vez frente a frente diretamente e em negociações o presidente dos Estados Unidos e da Coreia do Norte, mas na realidade o que daí saiu foi pouco em termos concretos. Isto obviamente excetuando o facto concreto em si mesmo notável dessa aproximação até ao ponto de haver conversações diretas.

A expetativa agora é a de o processo comece a avançar com passos concretos e não apenas no plano simbólico - e o simbólico foi importante. A questão é saber em que medida esses passos concretos são mesmo possíveis, porque da parte de Trump o que se percebe é que há uma grande aposta em demonstrar à opinião pública norte-americana que, ao contrário de tantos outros presidentes anteriores, ele consegue solucionar a questão da Coreia que já vem desde os anos 50.

Trump precisa de uma vitória em política externa falhada por anteriores presidentes. De resto, no discurso sobre o Estado da União Trump disse que se não tivesse sido eleito os Estados Unidos estariam em guerra com a Coreia do Norte.

É evidente que a frase contém muito exagero, é uma hipérbole típica de Trump, mas mostra um problema persistente na política internacional e também um objetivo do presidente que até se encaixa no seu perfil psicológico. Trata-se da ideia de que ele consegue fazer coisas que nunca ninguém conseguiu antes na liderança dos Estados Unidos por ser um negociador implacável e imbatível. Ao mesmo tempo se olharmos para a política interna norte-americana Trump entrou agora na segunda fase do seu mandato e já prepara a recandidatura. Todos os fatores contam neste processo.

Já da parte da Coreia do Norte temos a procura do reconhecimento internacional da sua situação particular e, até certo ponto, já conseguiu alguns ganhos nesse terreno e, certamente, a estratégia é retardar o mais possível as concessões que terá de fazer se quiser entrar numa negociação do seu programa nuclear, afinal a chave disto tudo.

Penso que será difícil sair algo de muito concreto no processo de desnuclearização. Na melhor das hipóteses talvez haja aqui um princípio de caminho negocial. Até porque estamos a falar de uma questão particularmente complexa até ultrapassando os Estados Unidos a e a Coreia do Norte envolvendo de uma maneira óbvia a China e a Coreia do Sul, mas também o Japão e a própria Rússia. Portanto, há aqui uma quantidade de actores de primeira e segunda linha envolvidos em todo o processo e que também terão, à sua maneira, uma palavra a dizer.

Nas exigências de Pyongyang a mais óbvia é o levantamento parcial das sanções, mas aí Trump vai ter de convencer o Congresso...

Esse é outro problema crucial deste processo. Há sempre uma questão chave na negociação que é o ritmo das concessões que cada parte impõe. No caso da estratégia da Coreia do Norte é a de sempre retardar o mais possível os passos concretos. A ideia é ficar sempre com uma chave na mão de poder reverter o processo à medida das conveniências. Não sei se este quadro se voltará a repetir, mas todo o historial aponta nesse sentido.

Trump tem ainda esse problema adicional: o de que qualquer concessão que possa acordar politicamente nesta cimeira de Hanói ter de ser confirmada internamente pelo Congresso dos Estados Unidos. Pode não ser uma tarefa nada fácil com as lutas políticas internas que temos, neste momento, nos Estados Unidos.

A China não está na cimeira, mas é decisiva. Kim Jong-Un e Xi Jiping reuniram a 10 de janeiro e encontraram-se quatro vezes no último ano.

Se houvesse dúvidas - que não há - esse dado confirmaria a influência da China. A China é naturalmente aqui um ator crucial, embora não estando diretamente nas negociações, mas é chave.

Todo o regime da Coreia do Norte não poderia ter chegado ao ponto a que chegou na situação atual sem o apoio de Pequim.

Como funciona a equação chinesa com a Coreia do Norte? Com uma Coreia do Norte nuclear os Estados Unidos têm pretexto para reforçar a presença na região.

Esse é apenas um dos ângulos na crise vista de Pequim. Por um lado, se a presença do nuclear na Coreia do Norte permite aos Estados Unidos argumentarem com a necessidade da sua presença, ou até do reforço, na Ásia Pacífico fazendo o dois em um, a contenção da Coreia do Norte e depois da China, por outro lado, Pequim também tem aqui uma questão a ser usada como moeda de troca.

Este é o lado interessante, mas de elevada complexidade do tema. Há um lado que também implica oportunidades interessantes de negociação. A China tem uma série de pontos a negociar com os Estados Unidos, desde comerciais a diplomáticos e é um ator central.

De resto, multiplicam-se sinais de que a guerra comercial possa estar a caminho de um entendimento. No domingo, Trump ampliou a suspensão temporária do aumento de 10% e 25% das tarifas para depois de 1 de março.

Não seria tão optimista em relação a uma guerra comercial com fim à vista. A guerra comercial China-Estados Unidos vai ter muitos episódios e temos estado a assistir apenas a um deles. Talvez este 'primeiro episódio' possa ter aqui um primeiro fim, mas é provisório, porque há causas mais estruturais a explicar um conflito mais abrangente.

Mas certamente é um fator a ter em conta no cálculo da China sobre a pressão à Coreia do Norte. Em jogo estarão também as concessões que os Estados Unidos poderão fazer na área comercial com a China. Mas a própria Rússia também conta muito e tenta jogar directamente no cenário oferecendo aqui uma possibilidade de ‘sobregarantias’, assegurando que pondo-se fim a um programa nuclear ficaria depois a gerir centrais nucleares para fins pacíficos. Portanto, o próprio Vladimir Putin tem aqui, em segunda linha, um terreno onde quer marcar influência.

Para além do início de um processo de negociações sobre o nuclear com progressiva retirada de sanções dos Estados Unidos há um outro elemento que pode sair desta cimeira de Hanói. É que nunca foi formalizado um tratado de paz sobre a guerra da Coreia.

Houve o armistício de 1953 com a linha de divisão das duas Coreias que é, no fundo, o que está a funcionar, mas formalmente não foi assinado um tratado de paz. Não sei se este não será o pilar para marcar o início de um processo que crie depois alguma confiança para a negociação que será certamente muito complexa sobre o programa nuclear. Este tratado de paz talvez seja a possibilidade de resultado mais palpável da cimeira de Hanói.

Porquê Hanói para a cimeira? A escolha do Vietname, em tempos um inimigo mortal dos Estados Unidos, tem um inegável simbolismo. Há também quem refira que a Coreia do Norte olha para o Vietname como o exemplo a seguir...

Estas escolhas nunca são fruto do acaso. Nos contactos diplomáticos para marcar uma cimeira desta magnitude, nas pré-negociações, o próprio local é objeto de uma primeira discussão. Até porque o local tem simbolismo e tudo na política a este nível tem elevadas cargas simbólicas. No caso do Vietname até começava por uma certa dose de ironia. Para quem, como eu, cresceu com a guerra do Vietname como o exemplo de um certo fracasso militar e político dos Estados Unidos não deixa de ser irónico que Hanói seja o palco desta negociação.

Percebe-se no implícito que a mensagem é: 'os Estados Unidos conseguem fazer a paz e os inimigos do passado olham-nos de outra forma. De uma forma até importante para o equilíbrio de poderes na Ásia-Pacífico. O Vietname faz isso. Porque não agora a Coreia do Norte começar a pensar no mesmo?'

Há também aqui uma desconfiança histórica do Vietname em relação à poderosa China - que a Coreia do Norte também poderá partilhar. Do lado de Trump há a imagem poderosa de velhos inimigos transformados em amigos e parceiros de negócios.

O caso do Vietname é mesmo o caso particular do Vietname. Por razões históricas há, de facto, uma rivalidade com a China. Há questões fronteiriças até nos anos 70 depois do fim do conflito com os Estados Unidos e com toda a ascensão da China há espaço para o sentimento nacionalista. O Vietname vê a presença dos Estados Unidos na região como um elemento de equilíbrio numa relação crescentemente de poder e influência da China na Ásia-Pacífico. Para os chineses é apenas o regresso ao que eles consideram um padrão histórico normal, mas essa é a perspetiva chinesa e não a dos seus vizinhos.

Agora em que medida a Coreia do Norte poderá tendencialmente adotar o modelo político económico vietnamita? Estes casos têm paralelismos, mas também têm grandes especificidades. Apesar de tudo a Coreia do Norte está mais ligada à China e tem outro tipo de relação histórica com Pequim que não é exactamente a mesma do Vietname.

Até porque a Coreia do Norte tem aqui uma questão com o Japão que no plano histórico é muito forte. É um elemento que condiciona a relação de Pyongyang com Pequim e que o Vietname já não tem. Há aqui matéria comum relativa à vitimização das invasões japonesas na Manchúria e depois a segunda guerra mundial e as atrocidades cometidas pelo exército japonês. Esta questão está presente na China e nas Coreias, mas não tanto no Vietname.

Há especificidades muito particulares destes estados, mas o quadro geral das negociações pode apontar um caminho de sucesso e de bem estar e imagino que Kim Jong-Un, por muito boa que queira a relação com a China procure ainda manter um máximo de autonomia estratégica possível e reforçando a sua economia está também a aumentar essa autonomia.